quinta-feira, 21 de março de 2019

Retiro Quaresmal - A liberdade para a qual Cristo nos libertou

Meditação XIII - quinta-feira da II semana da Quaresma

Reze o Salmo 118/119,97-104
Leia, agora, Gl 3,8-14

1. Vimos, na meditação passada (cf. Gl 3,8s), que o Apóstolo ensinou que aqueles que vivem pela fé, como Abraão, recebem a bênção de Abraão e vivem na bênção. Talvez seja bom reler os tópicos 2 e 3 da meditação anterior.
Agora, no v. 10, São Paulo faz uma afirmação surpreendente: “Os que são pelas obras da Lei, esses estão debaixo da maldição!” Que significam estas palavras? A Lei de Deus, Lei santa, dada a Moisés no Sinai, seria fonte de maldição? Certamente, não! Aqui, Paulo se refere aos judeus que, apegados às obras da Lei, obras milimetricamente codificadas pela tradição oral, julgavam-se justos e autossuficientes diante de Deus e esperavam dessas práticas merecer como pagamento a salvação. Atenção para o que diz o Apóstolo: não diz “os que são pela Lei”, mas “os que são pelas obras da Lei”, isto é, os que colocam a confiança nessas obras!
Mas, com base em que o Apóstolo afirma tal coisa? Com base na própria Lei, pois está escrito na Lei: “Maldito todo aquele que não se atém a todas as prescrições que estão no livro da Lei para serem praticadas” (v. 10b; cf. Dt 27,26). Portanto, a própria Lei afirma ser maldito quem não cumpre toda a Lei! Assim, com tantas prescrições e quase reduzida pelos rabinos a prescrições minunciosas - as obras da Lei -, a Torá, a Lei de Moisés, tornou-se um jugo pesado demais, um jugo insuportável! Como ninguém conseguiria cumprir sempre e totalmente tantos preceitos, os que colocam sua esperança de salvação, de justificação, no cumprimento das obras da Lei estão debaixo da maldição.

2. Pareceria que o raciocínio de Paulo é meio forçado e sua visão sobre as obras da Lei seria demasiada negativa e exagerada. Não é assim! Primeiro: o Apóstolo faz exegese, isto é, interpretação das Escrituras como os rabinos daquele tempo faziam, usa o mesmo método de estudo das Escrituras que eles usavam. Depois, somente para que você, caro Irmão, possa compreender o que se tornou a Lei no judaísmo, leve em consideração estes pontos:

a) A palavra Torá (Lei, na tradução da Bíblia grega usada por judeus e cristãos) significa “ensinamento” e, para os judeus, pode referir-se ao Pentateuco, a todo o Antigo Testamento ou, ainda, a toda a tradição judaica! Imagine, pois, o volume de preceitos, de minúncias, de obrigações! Os rabinos judeus contam na Torá 613 mandamentos! Assim, quem procura a justificação, a salvação pela Torá, deve cumprir todos estes preceitos sob pena de maldição!

b) Os judeus chegam a afirmar que Deus estuda a Torá no céu; ela existe antes do mundo existir e foi usada por Deus como planta para a obra da criação! Observe, caro Irmão, como foi dando uma importância à Lei, foi absolutizando-a de um modo que a salvação estaria nela e no cumprimento dos seus preceitos! Jesus nunca aceitou isto: acusava os rabinos de invalidarem a Palavra de Deus, o espírito mesmo da Lei com essas extrapolações. Leia Mt 15,1-14; Mc 7,1-13. A esta Lei reinterpretada como uma infinitude de preceitos detalhistas, o Senhor Jesus chama de modo pejorativo de “vossa lei” (Jo 8,17; 10,34), bem diferente dos “mandamentos”do Pai: “Eu sei que o Seu mandamento é Vida eterna!” (Jo 12,50). Aí sim! E os mandamentos caminham e se resumem num só foco, numa só realidade: “Este é o Seu mandamento: crer no Nome do Seu Filho Jesus Cristo e amar-nos uns aos outros, conforme o mandamento que Ele nos deu!” (1Jo 3,23) Pois bem, tampouco São Paulo aceitava esta absolutização da Lei e dos preceitos! A Lei compreendida como prática de preceitos termina em legalismo e soberba autossuficiência que fecha para Deus; bem diferente da Lei de Deus compreendida e vivida como participação na sabedoria providente de Deus: esta leva à confiança humilde no Senhor e à disposição de acolher na fé o Cristo Jesus! Portanto, todas estas extrapolações, todas estas tradições e práticas que terminaram por sobrecarregar e obscurecer o sentido genuíno da Lei foram plantadas pelos homens, pelos rabinos. A sentença do Senhor é clara: “Toda planta que não foi plantada por Meu Pai celeste será arrancada! Deixai-os! São cegos conduzindo cegos!” (Mt 15,13s)

c) Para os judeus, somente o Messias poderia revelar totalmente o sentido interior da Torá, isto é, da Lei de Moisés. Os cristãos concordam plenamente com isto! Somente o Cristo Jesus, que é o Messias, é a plenitude da Lei, pois “a Lei foi dada por meio de Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1,17). Efetivamente, as Escrituras de Israel dão testemunho Dele, do Senhor Jesus Cristo, santo Messias, e para Ele preparou Israel (cf. Lc 24,27; Jo 5,39; Gl 3,25).

3. Para arrematar e fundamentar o seu raciocínio, Paulo cita as Escrituras, e as cita com o Antigo Testamento grego (chamado de LXX ou septuaginta), que é o mais longo, como o dos católicos, ainda hoje usado na Igreja de Cristo: “O justo viverá pela fé” (Gl 3,11; Rm 1,17; cf. Hab 2,4). Ou seja, aquele que é agradável a Deus, aquele que é justificado, o é pela fé, fé no Deus que deu a Abraão e a nós o verdadeiro Isaac, Jesus Cristo, nosso Senhor!
Então, enquanto quem coloca sua confiança na Lei espera a Vida e a salvação do cumprimento de preceitos, aquele que coloca a sua confiança no Deus de Abraão, Nele crendo, coloca sua esperança em Jesus o Salvador, imolado por nós como Isaac (cf. Gn 22,9-18; Rm 8,32).

4. No v. 13, o Apóstolo faz a proclamação triunfante: “Cristo nos resgatou da maldição da Lei tornando-Se maldição por nós!” Outra afirmação impressionante! O que quer dizer? Cristo nos resgatou a todos, judeus e gentios, dos preceitos da Lei de Moisés. Aos gentios também, porque sem Cristo, o único modo de entrar para a Aliança seria tornar-se judeu, subjugando-se aos preceitos, às obras da Lei. Não entrando para o Povo de Israel segundo a carne, viviam sob a lei do pecado provocado por uma consciência obscurecida e pelas paixões que os escravizavam. Vale muito a pena ler Rm 1,18-32. Aí se encontra a situação deplorável dos gentios de toda a humanidade de ontem e de hoje sem Cristo – e até de certos cristãos de nome, que defendem de modo cego, pagão e sacrílego todo tipo de pecado e torpeza, colocando tudo na conta da misericórdia, aviltando e fazendo pouco do amor de Deus revelado na Cruz do Senhor!

5. Demos ainda um passo adiante: Como Cristo nos resgatou da Lei? Ele assumiu o nosso débito, a nossa incapacidade de suportar o fardo dos preceitos: morrendo pendurado na Cruz por nós todos, como se fosse um maldito – a própria Lei afirma ser maldito o que morre pendurado num madeiro (cf. v. 13; Dt 21,23). Certamente, esta realidade material – a morte pendurado no madeiro – exprime uma profunda realidade espiritual: fazendo-Se realmente homem, plenamente um de nós, foi solidário conosco e “tomou sobre Si as nossas dores, carregou-Se com os nosso pecados, de modo que o castigo que nos dá a paz caiu sobre Ele e por Suas chagas fomos curados” (cf. Is 53). Assim, assumindo a nossa maldição, Ele, o Bendito do Pai, o Filho Amado, o Eleito (cf. Mt 3,17; 17,5; Jo 3,35; 5,20), apagou na Cruz todas as nossas transgressões em relação à Lei e seus preceitos e a todos os nossos pecados (cf. Cl 2,14; Ef 2,1-5), para que a bênção de Abraão, através do Cristo, novo Isaac, se estenda aos gentios, como fora prometido a Abraão, o crente, pai de todos os que creem (cf. vv. 13s)! Sim, verdadeiramente o Senhor nosso pode ter compaixão de nós, filhos de Adão, judeus ou gentios, que gememos debaixo do fardo da Lei de Moisés e da lei do pecado. Ele pode realmente nos dizer as comoventes palavras de Mt 11,28-30.

6. Finalmente, São Paulo apresenta a finalidade última de fé em Jesus Cristo: crendo, “pela fé, recebamos o Espírito prometido”... Explicando: crendo em Jesus nosso Senhor, judeu ou gentio é Nele batizado e, no Batismo, recebe o Seu Espírito Santo, que impregna interiormente o crente da Vida divina do próprio Cristo imolado e ressuscitado, dá ao crente os próprios sentimentos do Cristo Jesus, transfigurando mais e mais o crente, sobretudo pela participação na Eucaristia, até a plena configuração ao Senhor, ao verdadeiro Filho-Isaac, na Glória eterna (cf. Rm 8,11)! Tudo isto é realizado pelo Espírito Santo recebido no Batismo, sacramento da fé! E este Espírito, como já disse anteriormente, é a Lei verdadeira (cf. Rm 8,2), a Lei dinâmica (cf. Rm 8,14-17), a Lei interior (cf. Rm 8,9), a Lei do amor (cf. Rm 5,5; 13,8-10), não mais de preceitos pesados e exteriores!

7. Reze o Sl 18/19,8-15. Medite rezando na promessa do Espírito já feita no tempo da Antiga Lei. Leia Ez 36,26; 37,14; 39,29; Jl 3,1-5. Pense um pouco: sua vida religiosa é centrada em preceitos exteriores ou na experiência profunda da intimidade exigente, amorosa e criativa de se deixar impregnar e guiar pelo Espírito do Cristo? Só quem se deixa guiar pelo Espírito pertence a Cristo...


2 comentários:

  1. Aguardo que essas meditações se tornem mais um livro

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  2. Boa noite Dom Henrique. Quero saber sobre uma leitura, tem JL,2,28. Sei que é Joel. Mais o capítulo 2 vai até o versivers 27.

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