sábado, 29 de junho de 2019

Homilia para a Solenidade de São Pedro e São Paulo

At 12,1-11
Sl 33
2Tm 4,6-8.17-18
Mt 16,13-19

“Eis os santos que, vivendo neste mundo, plantaram a Igreja, regando-a com seu sangue. Beberam do cálice do Senhor e se tornaram amigos de Deus”. – Estas palavras que o Missal Romano propõe como antífona de entrada desta Solenidade, resumem admiravelmente o significado de São Pedro e São Paulo. A Igreja chama a ambos de “corifeus”, isto é, líderes, chefes, colunas. E eles o são.

Primeiramente, porque são Apóstolos. Isto é, são testemunhas do Cristo morto e ressuscitado. Sua pregação plantou a Igreja, que vive do testemunho que eles deram.
Pedro, discípulo da primeira hora, seguiu Jesus nos dias de sua pregação, recebeu do Senhor o nome de Pedra e foi colocado à frente do colégio dos Doze e de todos os discípulos de Cristo. Generoso e ao mesmo tempo frágil, chegou a negar o Mestre e, após a Ressurreição, teve confirmada a missão de apascentar o rebanho de Cristo. Pregou o Evangelho e deu seu último testemunho em Roma, onde foi crucificado sob o Imperador Nero.
Paulo não conhecera Jesus segundo a carne. Foi perseguidor ferrenho dos cristãos, até ser alcançado pelo Senhor ressuscitado na estrada de Damasco. Jesus nosso Senhor fê-lo apóstolo. Pregou o Evangelho incansavelmente pelas principais cidades do Império Romano e fundou inúmeras Igrejas. Combateu ardentemente pela fidelidade à novidade cristã, separando a Igreja da Sinagoga. Por fim, foi preso e decapitado em Roma, também sob o Imperador Nero.

O que nos encanta nestes gigantes da fé não é somente o fruto de sua obra, tão fecunda. Encanta-nos igualmente a fidelidade ao Senhor e ao mandato que Dele receberam no Espírito Santo. As palavras de Paulo servem também para Pedro: “Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé”.
Ambos não se pouparam, sendo perseverantes e generosos na tremenda missão que o Senhor lhes confiara: entre provações e lágrimas, eles fielmente plantaram a Igreja de Cristo, como pastores solícitos pelo rebanho, buscando não o próprio interesse, mas o de Jesus Cristo. Não largaram o arado, não olharam para trás, não desanimaram no caminho... Ambos experimentaram também, dia após dia, a presença e o socorro do Senhor. Paulo, como Pedro, pôde dizer: “Agora sei, de fato, que o Senhor enviou o Seu anjo para me libertar...”

Ambos viveram profundamente o que pregaram: pregaram o Cristo com a Palavra e a vida, tudo dando pelo seu Senhor. Pedro disse com acerto: “Senhor, Tu sabes tudo; Tu sabes que Te amo”; Paulo exclamou com verdade: “Para mim, viver é Cristo. Minha vida presente na carne, eu a vivo na fé do Filho de Deus, que me amou e Se entregou por mim”.
Dois homens, um amor apaixonado: Jesus Cristo! Duas vidas, um só ideal: anunciar Jesus Cristo! Em Jesus nosso Senhor eles apostaram tudo; por Jesus nosso Senhor, gastaram a própria vida; da loucura da Cruz e da esperança da Ressurreição de Jesus nosso Senhor, eles fizeram seu tesouro e seu critério de vida.

Finalmente, ambos derramaram o Sangue pelo Senhor: “Beberam do cálice do Senhor e se tornaram amigos de Deus”. Eis a maior de todas a honras e de todas as glórias de Pedro e de Paulo: beberam o cálice do Senhor, participando dos Seus sofrimentos, unindo a Ele suas vidas até o martírio em Roma, para serem herdeiros de Sua glória. Eis por que eles são modelo para todos os cristãos; eis por que celebramos hoje, com alegria e solenidade o seu glorioso martírio junto ao Altar de Deus! Que eles intercedam por nós na glória de Cristo, para que sejamos fieis como eles foram.

Hoje também, nossos olhos e corações voltam-se para a Igreja de Roma, aquela que foi regada com o sangue dos bem-aventurados Pedro e Paulo, aquela, que guarda seus túmulos, aquela, que é e será sempre a Igreja de Pedro. Alguns cheios de ignorância ou má fé, dizem, deturpando totalmente a Escritura, que ela é a Grande Prostituta, a Babilônia. Nós sabemos que, para além das humanas fraquezas de seus pastores e filhos, ela é a Esposa do Cordeiro, imagem da Jerusalém celeste.
Conhecemos e veneramos o ministério que o Senhor Jesus confiou a Pedro e seus sucessores em benefício de toda a Igreja: ser o principal pastor de todo o rebanho de Cristo e a primeira testemunha da verdadeira fé Naquele que é o “Cristo, Filho do Deus vivo”. É missão inarredável dos Bispos de Roma, aos quais chamamos de Papa, a tremenda responsabilidade de, na comunhão do Colégio dos Bispos, manter a inteira Igreja na proclamação incansável de Cristo como o Messias esperado por Israel, o Filho bendito do Pai, o Ungido com o Espírito, o Salvador universal, Caminho, Verdade e Vida do mundo! Sabemos com certeza de fé que a missão de Pedro perdura nos seus sucessores em Roma. Como Bispos da Igreja de Pedro e de Paulo, eles devem ter sempre a gravíssima responsabilidade de serem sinais e artífices da unidade da Igreja de Cristo na verdadeira e perene fé apostólica e na caridade entre todas as Igrejas diocesanas com seus Bispos e todos os fieis para que a Esposa do Cristo Jesus cresça sempre mais neste mundo como o único Corpo de Cristo.

Rezemos, hoje, pelo Papa. Que Deus lhe conceda saúde de alma e de corpo, sabedoria espiritual, retidão na fé, constância na caridade e clareza para proclamar sempre e de modo inequívoco o Cristo como único Senhor da Igreja e Salvador da humanidade e do mundo inteiro. E a nós, o Senhor, por misericórdia, conceda permanecer fieis até a morte na profissão da fé católica, a fé de Pedro e de Paulo, pala qual, em nome de Jesus, “Cristo Filho do Deus vivo”, os Santos Apóstolos derramaram o próprio sangue.

Ao Senhor, que é admirável nos seus santos e nos dá a força para o martírio, a glória pelos séculos dos séculos. Amém.


sexta-feira, 28 de junho de 2019

Coração de homem, Coração de Deus

Hoje, ainda ligada às festas pascais, do Cristo morto e ressuscitado por nós, a Igreja celebra o Coração de Jesus. É uma festa de sentido belo e profundo.
Na Sagrada Escritura, a palavra coração (lebou lebab), indica o íntimo do homem, o núcleo mais profundo de sua consciência. Dizer coração é dizer a personalidade, os sonhos, os sentimentos, os pensamentos de alguém. Coração, no sentido bíblico, é muito mais do que coração no nosso português corrente, que indica somente sentimento, afeto.

Coração de Jesus significa, então, a personalidade humana do Salvador: Seus pensamentos, Seus sonhos, Seus projetos, Seu amor, Seus sentimentos, Suas solidões e lutas – tudo quanto o Filho de Deus feito homem viveu humanamente por nós e como nós.
Assim, olhando o caminho humano de Cristo, Sua aventura entre nós, iniciada no ventre da Virgem e terminada na Cruz, nós podemos descobrir de modo humano o Coração do próprio Deus. Isto mesmo: o Coração de Cristo é Coração de homem e, ao mesmo tempo, revela o Coração do Pai!
O que descobrimos nesse Coração? Doçura, amor, compaixão, misericórdia, capacidade de se comover, abertura para as misérias e dores alheias. Portanto, contemplar o Coração de Jesus é descobrir o quanto o nosso Deus é amor, ternura e piedade. Daí o convite do próprio Jesus: “Vinde a Mim; aprendei de Mim: Eu sou manso e humilde de coração! Achareis descanso para vossas vidas!”

A melhor imagem para compreendermos o mistério do Coração de Jesus é a do Cristo crucificado, morto, com Seu lado traspassado, do qual vertem a água do Batismo e o sangue da Eucaristia.
A imagem é forte: uma vida entregue totalmente por amor, que abre o coração para nos agasalhar e nos saciar com a graça dos sacramentos, dando-nos Vida sempre nova. Eis, no Coração de Jesus: um Deus que Se esgota por amor, sem jamais desistir de amar e dar a Vida! Deus surpreendente, Esse que Se manifesta no Coração do Salvador!

Num mundo estressado, que nos faz tantas vezes experimentar o desamparo, o desânimo, o medo e a incapacidade ante os desafios da existência, aprendamos a nos refugiar naquele Coração, lado aberto, traspassado por nosso amor!
Basta de prepotência! Basta de autossuficiência! Basta de pensarmos que nos bastamos a nós mesmos e podemos ser felizes sozinhos, prescindindo do amor de Deus!
Seja o Coração de Cristo o nosso modelo de verdadeira humanidade; seja o nosso refúgio, seja o nosso amparo, seja o início da nossa alegria de ter um Deus-amor na terra que será nosso Deus-descanso no Céu!

Jesus, manso e humilde de Coração, fazei o nosso coração semelhante ao Vosso!


quinta-feira, 27 de junho de 2019

Descobrir no Silêncio a Palavra

"Quem possui a palavra de Jesus, este em verdade, pode ouvir o Seu silêncio, a fim de ser perfeito". Esta encantadora afirmação de Santo Inácio de Antioquia, Bispo e Mártir do século I, é cheia de profundo significado, capaz de dizer-nos muito ainda hoje.

Estamos acostumados a buscar o Senhor na Sua Palavra. Obviamente, Palavra do Senhor são as Escrituras Santas: “Tua palavra é lâmpada para os meus pés, e luz para o meu caminho” (Sl 118/119,105). Mas, palavras do Senhor para nós, de certo modo, é tudo quanto nos vai acontecendo e nos fazendo divisar a presença de Deus, que conduz a nossa vida. Dizemos que Deus nos falou quando conseguimos perceber um sentido, uma mensagem na realidade a nossa volta. Isso é um grande passo: aprender a escutar o Senhor nas Suas palavras, poder dizer: “Tudo me fala de Ti...” como a Virgem ouvinte e crente, que tudo conservava no coração (cf. Lc 2,19).

Mas, e quando tudo parece sem sentido? E quando o aparente e tremendo absurdo desaba sobre nós ou sobre o mundo a nossa volta? E quando gritamos, sem resposta: Minha garganta está pegada ao pó! Dá-me a vida pela Tua palavra!” (Sl 118/119,25)Eis a ocasião para ainda um passo maior, mais perfeito: quando não compreendemos, quando tudo parece sem sentido, noite fechada, quando tudo parece silêncio de Deus para nós; quando, angustiados e quase sufocados, exclamamos: "Onde está Deus? Cristo meu, por que Te escondes?" Pensemos, por exemplo, no silêncio de um fracasso, de uma doença absurda, de uma humilhação, de uma falta, de uma chaga moral, de morte prematura de alguém a quem amamos... Também aí, é necessário aprender a escutar Aquele que nos fala na Palavra e nos fala no Silêncio: "Quem possui a palavra de Jesus, este em verdade, pode ouvir o Seu silêncio, a fim de ser perfeito" - este o sentido da frase de Santo Inácio de Antioquia. Quando escreveu tal pérola preciosa, ele mesmo estava sendo levado para Roma por dez soldados, para ser jogado às feras. Ele, santo bispo e mártir de Cristo, foi perfeito, pois soube escutar o Senhor na Palavra e no tremendo Silêncio... Ele pôde dizer como o justo Jó: “Ainda que Ele me matasse, Nele esperarei e defenderei diante Dele o meu caminho” (13,15 – tradução da Vulgata).

A escuta perseverante da Escritura Sagrada, a oração silenciosa diante do Senhor, a prática piedosa e ungida dos sacramentos, a capacidade de calar o coração nos diversos acontecimentos e situações da existência, tudo isso vai nos ensinando a compreender a linguagem de Deus que envolve também o momento silencioso da Cruz e da Sepultura do Cristo. “Tremei e não pequeis, refleti no vosso leito e ficai em silêncio. Em paz me deito e logo adormeço, porque só Tu, Senhor, me fazes viver em segurança” (Sl 4,5.9). Eis: o Senhor nosso, Jesus Cristo, falou-nos pela palavra de Seus discursos, de Seus milagres, de Suas belíssimas parábolas. Mas, não esqueçamos que nos falou eloquentemente no silêncio da Sexta-feira Santa e do Grande Sábado da Sepultura.

Um dos grandes desafios dos cristãos de hoje é saber colher a Palavra do Senhor precisamente no Seu Silêncio. Todo mundo – até os pagãos – falam de Deus quando ficam curados, quando conseguem emprego, quando realizam um desiderato. Mas, e quando nada dá certo? E quando vem o tsunami, a seca, a violência, o fracasso? Que belo, que fecundo, que serviço inestimável ao mundo aprender a colher a Palavra do Salvador nesses pesados silêncios e comunicá-la, como luz e esperança ao surdo, loquaz, superficial e agitado mundo de hoje.

Aliás, de um modo ou de outro, foi sempre essa uma das mais nobres tarefas dos cristãos: de Maria de Nazaré, que tudo guardava no coração e, depois de se encher do silêncio de Deus, tornava-o Palavra de força, solicitude e esperança; de Inácio de Antioquia, que gritou a Palavra do Cristo ao ser devorado pelas feras no Coliseu de Roma; de João Paulo II Magno, marcado pelo, sem poder falar ao final da sua vida, de Bento XVI, agora recolhido num silêncio profundo e doloroso... “Eis o que recordarei ao meu coração e por que eu espero: o Senhor é bom para quem Nele confia, para aquele que O busca. É bom esperar em silêncio a salvação do Senhor é bom para o homem suportar o jugo desde a juventude. Que esteja solitário e silencioso quando o Senhor o impuser sobre ele; que ponha sua boca no pó: talvez haja esperança! Que dê sua face a quem o fere e se sacie de opróbrios. Pois o Senhor não rejeita para sempre: se Ele aflige, Ele Se compadece segundo Sua grande bondade. Pois não é de bom grado que Ele aflige os filhos dos homens” (Lm 3,21.25-33).

Ouçamos novamente, pois, as sábias palavras de Santo Inácio: "Quem possui a palavra de Jesus, este em verdade, pode ouvir o Seu silêncio, a fim de ser perfeito". Que o Cristo, nosso Deus, nos faça perfeitos, cristãos maduros, capazes de ouvi-Lo nos silêncios que a vida nos prepara.

Para concluir, umas palavras estupendas do Cardeal Ratzinger, que iluminam bem o que quero exprimir:

“O mistério terrível do Sábado Santo, seu abismo de silêncio, adquiriu em nosso tempo uma realidade opressiva. De modo que isto é o Sábado Santo: o dia do ocultamento de Deus, o dia daquele paradoxo inaudito que nós exprimimos no Credo com as palavras “desceu à mansão dos mortos”, desceu para dentro do mistério da morte. Na Sexta-feira Santa, ainda se podia olhar para o Transpassado. O Sábado Santo está vazio, a pesada pedra do sepulcro novo encerra o defunto, tudo já passou, a fé parece estar definitivamente desmascarada como fanatismo. Nenhum Deus salvou esse Jesus que se arvorava em Filho Dele. Todos podem ficar tranquilos: os prudentes, que inicialmente haviam titubeado um pouco em seu íntimo, na dúvida de que talvez tudo não fosse verdade, agora sabem que tinham razão. 
Sábado Santo: dia do sepultamento de Deus; não é isso, de maneira impressionante, o nosso dia? O nosso século não começa a ser um grande Sábado Santo, dia da ausência de Deus, no qual até os discípulos têm um vazio congelante no coração, que aumenta cada vez mais, e por isso se preparam, cheios de vergonha e angústia, para voltar para casa, e se dirigem taciturnos e destroçados, em seu desespero, para Emaús, sem se dar conta em hipótese alguma de que Aquele que acreditavam morto está entre eles?  
Deus morreu e nós O matamos: será que nós percebemos mesmo que essa frase é tomada quase ao pé da letra pela tradição cristã, e que nós muitas vezes em nossas “Vias-sacras” já repetimos algo semelhante sem nos darmos conta da gravidade tremenda do que dizíamos? Nós O matamos, encerrando-O no invólucro rançoso dos pensamentos habituais, exilando-O numa forma de piedade sem conteúdo de realidade e perdida entre frases feitas ou preciosidades arqueológicas; nós O matamos por meio da ambiguidade da nossa vida, que estendeu um véu de escuridão também sobre Ele: de fato, o que mais poderia ter tornado Deus problemático neste mundo, senão a problematicidade da fé e do amor daqueles que creem Nele?
A escuridão divina deste dia, deste século que se torna em medida cada vez maior um Sábado Santo, fala à nossa consciência. Nós também estamos implicados nela. Mas, apesar de tudo, ela tem em si algo de consolador. A morte de Deus em Jesus Cristo é ao mesmo tempo expressão de Sua radical solidariedade conosco. O mistério mais obscuro da fé é ao mesmo tempo o sinal mais claro de uma esperança que não tem limites. E mais uma coisa: só por meio da derrota da Sexta-feira Santa, só por meio do silêncio mortal do Sábado Santo, os discípulos puderam ser levados à compreensão do que Jesus era realmente, e do que a Sua mensagem significava na realidade. Deus tinha de morrer para eles, para que pudesse realmente viver neles. A imagem que haviam formado de Deus, na qual haviam tentado comprimi-Lo, tinha de ser destruída para que eles, a partir das ruínas da casa derrubada, pudessem ver o céu, e o próprio Deus, que continua a ser sempre o infinitamente maior. Nós precisamos do silêncio de Deus para experimentar novamente o abismo da Sua grandeza e o abismo do nosso nada, que viria a se escancarar se não fosse Ele.
Há uma cena no Evangelho que antecipa de maneira extraordinária o silêncio do Sábado Santo e parece, portanto, mais uma vez ser o retrato do nosso momento histórico. Cristo dorme numa barca, que, agitada pela tempestade, está para afundar. O profeta Elias zombou uma vez dos sacerdotes de Baal, que inutilmente invocavam em alta voz o seu deus para que fizesse descer o fogo do sacrifício, exortando-os a gritarem mais forte, pois podia ser que seu deus estivesse dormindo. Mas Deus não dorme realmente? O escárnio do profeta não diz respeito também, no fundo, àqueles que creem no Deus de Israel e que viajam com Ele numa barca que está para afundar? Deus dorme enquanto Suas coisas estão para afundar, não é essa a experiência da nossa vida? A Igreja, a fé, não se parecem com uma pequena barca que está para afundar, que luta inutilmente contra as ondas e o vento, enquanto Deus está ausente? Os discípulos gritam no desespero extremo e sacodem o Senhor para despertá-Lo, mas Ele Se mostra admirado e repreende a pouca fé deles. Mas é diferente para nós? Quando passar a tempestade, nós perceberemos o quanto a nossa pouca fé estava cheia de tolice.
Todavia, ó Senhor, não podemos deixar de sacudir-Te, Deus que estás em silêncio e dormes, e de gritar-Te:
acorda, não vês que estamos afundando?
Desperta, não deixes que dure eternamente a escuridão do Sábado Santo,
deixa cair um raio de Páscoa também sobre os nossos dias,
acompanha-nos quando nos dirigimos desesperados para Emaús, para que o nosso coração possa acender-se ao nos aproximarmos de Ti.
Tu, que guiaste de maneira oculta os caminhos de Israel para seres finalmente homem com os homens,
não nos deixes no escuro,
não permitas que a Tua palavra se perca no grande desperdício de palavras deste tempo.
Senhor, dá-nos a Tua ajuda, pois sem Ti afundaremos. Amém”.


quarta-feira, 26 de junho de 2019

A imensa graça de conhecer-Te, ó Jesus

Senhor Jesus, pela Tua graça, fui encontrado por Ti
e Te encontrei na minha vida.
Tu me amaste primeiro e eu experimentei o Teu amor!

Vi Teu amor na Tua vida feita doação;
vi Teu amor em cada gesto, em cada palavra, em cada milagre...
Vi Teu amor na Tua Cruz e na Tua Ressurreição.

Senhor Jesus, contemplando-Te, Senhor meu,
aprendo o que significa aquela palavra tão misteriosa: “Deus é amor”!

Ajuda-me a compreender esse amor tão grande;
faze-me dele enamorar-me completamente,
trazendo-o sempre diante de mim e aconchegado no meu coração. Amém.


terça-feira, 25 de junho de 2019

Um amor que abarque o mundo inteiro

Senhor meu Amado, preenche-me, inunda-me do Teu amor!

Quero, assim, responder ao Teu amor,

quero viver escondido nele,

fazendo da minha existência uma resposta ao Teu amor!


Faze do meu coração um ninho de amor no qual Tu possas habitar.

Faze de minha pobre vida escondida um canto apaixonado de amor ao Teu amor.


Que eu nunca perca de vista, em todos os momentos de minha vida, que Tu me amaste primeiro.

Assim, em Ti, no Teu regaço de amor, eu encontre forças de amar sem esperar nada em troca,

sem buscar nenhuma compensação humana,

porque Tu me amaste primeiro!

Dá-me a graça, portanto, de amar meus irmãos e todo o mundo
com o amor mesmo que Tu derramaste no meu coração.
Assim, meu amor terá a marca da eternidade. Amém.


sábado, 22 de junho de 2019

Liberta-me para Te amar

Senhor meu, amor de minha alma!

Abro-Te humildemente o meu coração

para que o tomes e nele purifiques o meu amor.


Que ele seja somente energia de doação, de oblação, de oferta gratuita

a Ti somente e aos outros por amor de Ti.

Dá-me a coragem das disciplinas e a generosidade de deixar-me purificar no cadinho da vida.


Que eu nunca perca de vista

o objetivo de todo amor verdadeiramente grande e humanizador:

ser reflexo daquele amor que se manifestou na Cruz

e ser resposta a Ti, que nos amaste primeiro.

Senhor Jesus, liberta-me para o amor! Amém.


Homilia para o XII Domingo Comum - ano c

Zc 12,10-11;13,1
Sl 62
Gl 3,26-29
Lc 9,18-24

A Palavra que hoje escutamos coloca-nos diante da questão fundamental de nossa fé: quem é Jesus de Nazaré?
Sejamos espertos; estejamos atentos a um detalhe importantíssimo: Jesus, nosso Senhor, distingue a pergunta sobre a opinião do mundo daquela outra, que realmente importa: a pergunta sobre a fé dos discípulos.
“Quem diz o povo que Eu sou?” E as opiniões são humanas e, portanto, incompletas, parciais, superficiais e até mesmo errôneas, por vezes, absurdas: “Uns dizem que és João Batista; outros, que és Elias; mas outros acham que és algum dos antigos profetas que ressuscitou”. Ainda hoje é assim: o mundo não poderá jamais compreender Jesus Cristo em Sua profundidade e verdade última. Uns acham-no um sábio; outros, um iluminado, ou um filósofo, ou um humanista, ou um revolucionário romântico, do tipo Che Guevara, ou um embusteiro, ou um louco; outros acham-no, sinceramente um alienado ou um falso profeta... Em geral, o mundo atual, vê-Lo quase como um mito, bonzinho, romântico, mas sem muita serventia prática...

Mas, Jesus, nosso Senhor, pergunta aos discípulos, pergunta a nós: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” A resposta de Pedro é perfeita, é completa: “Tu és o Cristo, o Ungido, o Messias de Deus”. Esta resposta não veio da lógica humana, da inteligência ou da esperteza de Pedro. Em Mateus, Jesus afirma-o claramente: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi carne ou sangue que te revelaram isso, e sim o Meu Pai que está nos Céus” (Mt 16,17). A afirmação do Senhor é clara, direta e gravíssima: carne e sangue, isto é, a só inteligência humana, a humana razão e perspicácia, não podem alcançar quem é Jesus! Somente na revelação do Pai, isto é, somente na experiência da fé da Igreja, iluminada e sustentada pelo Espírito do Cristo, nós podemos ter acesso ao mistério de Senhor Jesus, à Sua realidade profunda. Portanto, não nos deve surpreender se o mundo tem dificuldade de crer realmente, de aceitar seriamente o Cristo e as exigências do Seu Evangelho!
Atenção! Com toda a sinceridade e franqueza, não devemos nos importar muito com o que as revistas e as ciências (história, sociologia, antropologia...) dizem a respeito de Jesus Cristo. Elas, por vezes, podem até fazer algumas observações interessantes, mas de modo algum conseguem penetrar no núcleo do Seu mistério; ficam sempre no limiar, na soleira. Jamais a fé de um cristão irá basear-se em dados científicos! Isto seria uma tola e óbvia armadilha!
Então, é na escuta fiel e devota da Palavra, na oração pessoal, na vida da comunidade eclesial, no empenho sincero e sacrificado de viver o Evangelho com suas exigências e, sobretudo, na celebração dos santos Mistérios que podemos fazer uma experiência autêntica de Quem é Jesus, o Cristo do Pai. Não cremos simplesmente no Jesus de Nazaré que a ciência ou a história podem apreender; cremos no Cristo Senhor crido, adorado, experimentado e anunciado pela Igreja, a partir do testemunho dos apóstolos; testemunho que lhes custou a própria vida!

Mas, tem mais ainda! O núcleo do mistério de Cristo é o mistério de Sua Cruz. Observe-se bem: assim que Pedro afirma que Jesus é o Messias, Ele pontua, precisa, esclarece que tipo de Messias Ele é: O Filho do homem deve sofrer muito, ser rejeitado... deve ser morto e ressuscitar ao terceiro dia”. Eis! Somente na Cruz o discípulo pode reconhecer em profundidade o seu Senhor. Mas, a Cruz não é um teoria; é uma realidade em nossa vida e na vida do mundo: a cruz da solidão, do fracasso, da doença, das lágrimas, da pobreza, da morte... Somente quando abraçamos na nossa cruz a Cruz de Cristo, podemos, então, compreendê-Lo: “Se alguém Me quer seguir, quer ser Meu discípulo, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-Me!”
Fora da cruz, fora do seguimento de Cristo até o fim, não há verdadeiro conhecimento do Senhor, não há a mínima possibilidade de uma verdadeira comunhão com Ele. São Paulo nos emociona, quando afirmou: “O que era para mim lucro eu o tive como perda, por amor de Cristo. Mais ainda: tudo eu considero perda, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por Ele, eu perdi tudo e tudo tenho como esterco, para ganhar a Cristo e ser achado Nele, para conhecê-Lo, conhecer o poder da Sua Ressurreição e a participação nos Seus sofrimentos, conformando-me com Ele na Sua Morte, para ver se alcanço a ressurreição” (Fl 3,7-11). É preciso que rejeitemos claramente um cristianismo bonzinho, almofadinha, burguês, bem comportadinho, que agrade ao mundo e com ele procure um diálogo irenista e superficial!
O cristianismo é radical, é escandaloso, na sua essência, é incompreensível ao mundo “A linguagem da Cruz é loucura para aqueles que se perdem!” (1Cor 1,18) – Será que não andamos meio esquecidos disso? E, no entanto, “para aqueles que se salvam, para nós, é poder de Deus” (1Cor 1,19). Na fé, contemplamos a Cruz do Senhor, tão dura para Ele e para nós, e vemos nela a fonte de purificação e de Vida de que fala a primeira leitura da Missa de hoje. Do Coração amoroso e ferido do Cristo, brota a Vida do mundo e o sentido último da nossa existência. As palavras são impressionantes: “Derramarei um Espírito de graça e de oração... Eles olharão para Mim. Quanto ao que traspassaram, haverão de chorá-Lo, como se chora a perda de um filho único, e hão de sentir por Ele o que se sente pela morte de um primogênito. Naquele dia, haverá uma fonte acessível para a ablução e a purificação”. Compreedamos, não duvidemos: a fonte é o lado aberto do Cristo, o Seu Coração traspassado; é Ele o Filho único, o Traspassado, o Primogênito. Dessa Fonte bendita jorram os Sacramentos da Igreja, pelos quais nos é dado o Santo Espírito do Senhor, Ele que vem “pela água e pelo sangue” (1Jo 5,6)!

Eis o escândalo: não cremos nas soluções e modismos e alarmismos humanos, não cremos que a globalização trará a salvação, não cremos que a ciência salve o ser humano dos demônios e monstros do seu coração, não cremos que a tecnologia nos faça mais felizes, não cremos que o esporte traga a paz universal ou seja vida, não esperamos que o prazer e o poder nos saciem o coração! Não somos idólatras para a perdição! Cremos que Jesus é o Cristo; cremos que pela Sua Encarnação, Cruz e Ressurreição Ele nos deu uma Vida nova, uma torrente de Vida na potência do Seu Espírito Santo. Cremos que Jesus é a nossa Verdade, o nosso Caminho e o sentido último da realidade. Por isso Nele fomos batizados, Dele nos alimentamos e Nele queremos viver.

Quando levarmos isto a sério, seremos cristãos e iluminaremos o mundo. Que o Senhor no-lo conceda por Sua misericórdia. Amém.


quinta-feira, 20 de junho de 2019

O inestimável dom de uma Presença de amor

Nesta quinta-feira celebramos Corpus Christi. Eis alguns pensamentos, inspirados em textos do Magistério eclesial, para nos preparar para a Solenidade do Corpo do Senhor.
A presença do Cristo Jesus no sacramento da Eucaristia foi querida por Ele próprio para permanecer junto do homem e oferecer-Se como seu alimento, seu companheiro, seu sustento e também para manter-Se no seio da Igreja. No mistério admirável da Presença eucarística, cumpre-se a promessa do Senhor: “Eu estou convosco todos os dias até o fim dos tempos!” (Mt 28,20) A resposta do homem a tão grande dom é a fé na presença real e substancial do Senhor nas espécies eucarísticas.

De todas as dimensões da Eucaristia, aquela que é central e põe à prova a nossa fé é o mistério da presença real do Senhor nas espécies consagradas.
Com toda a tradição da Igreja, acreditamos que, sob o pão e o vinho, está realmente presente Jesus, nosso Senhor e Deus. Essa presença chama-se “real”, não por exclusão, como se as outras formas de presença não fossem reais, mas por antonomásia, por excelência, já que por ela se torna substancialmente presente Cristo completo na realidade do Seu Corpo e do Seu Sangue. Por isso, a fé pede-nos para estar diante da Eucaristia com a consciência de estar na presença do próprio Cristo presente de modo tão real quanto está nos Céus, no seio da Santa, Indivisa e Consubstancial Trindade.
Esta presença do Senhor possui um significado que ultrapassa, e muito, o de puro simbolismo. A Eucaristia é mistério de presença, mediante o qual se realiza de modo excelso e surpreendente a promessa que Jesus fez de ficar conosco. É necessário, portanto, evitar aquelas afirmações que se fazem contrárias à transubstanciação e à presença real, entendendo-as num sentido apenas simbólico, bem como comportamentos e atitudes concretas que revelem implicitamente essa convicção errônea. Por vezes tem-se a impressão que, na liturgia, alguns, sobretudo sacerdotes, se comportam como animadores, mais preocupados em chamar a atenção do público para a sua pessoa, do que ser servos de Cristo, chamados a levar os fieis à união com o Senhor. Tudo isto obviamente tem reflexos negativos no Povo de Deus, que corre assim o risco de ficar confuso na compreensão e na fé da presença real de Cristo no Sacramento.

Na Tradição da Igreja criou-se uma verdadeira e própria linguagem dos gestos litúrgicos, orientada a exprimir retamente a fé na presença real de Cristo na Eucaristia, tais como a cuidadosa purificação dos vasos sagrados depois da comunhão ou quando caem no chão as Espécies eucarísticas, a genuflexão diante do sacrário, o uso da bandeja na distribuição da comunhão, a substituição regular das hóstias conservadas no sacrário, a colocação da chave do sacrário em lugar seguro, a postura respeitosa e o recolhimento do celebrante em consonância com o caráter transcendente e divino do Sacramento. Omitir ou descurar tais sinais sagrados, que contêm e indicam um significado mais profundo e vasto que o seu aspecto exterior, esvaziaria o sentido sagrado da Eucaristia e a consciência profunda que a Igreja sempre teve da presença real do Cristo no Sacramento do altar.

Em todos os sacramentos, Jesus Cristo atua através de sinais sensíveis que, sem mudarem de natureza, adquirem uma capacidade transitória de santificação. Na Eucaristia, contudo, Ele está presente com o Seu Corpo e Sangue, Alma e Divindade, dando ao homem toda a Sua Pessoa e a Sua Vida.
No Antigo Testamento, o Senhor Deus, através dos Seus enviados, indicava a Sua presença na nuvem (shekhinà), no tabernáculo, no Templo. Com o Novo Testamento, na plenitude do tempo, veio habitar entre os homens no Verbo feito carne (cf. Jo 1,14), tornando-Se realmente Emanuel (cf. Mt 1,23); falou por meio do Filho, Seu herdeiro (cf. Hb 1,1-2). São Paulo, para fazer compreender o que acontece na comunhão da Eucaristia, afirma: “Aquele que se une ao Senhor constitui com Ele um só espírito” (1Cor 6,17), numa nova Vida que promana do Espírito Santo. Diz São João Crisóstomo: “Quando estás para abeirar-te da sagrada Mesa, acredita que nela está presente o Senhor de todos”. Por isso, a adoração é inseparável da Comunhão.
Desde as origens, a Igreja repete solenemente os gestos do Senhor, decompondo-os para meditá-los um a um, como a procurar aprofundar, num esforço constante e renovado, o significado dos mesmos: a apresentação dos dons, a consagração, a fração e a distribuição da Comunhão. Por isso, as palavras ‘Tomai e comei’ não incluem o gesto simultâneo da fração da hóstia; nesse caso, deveria seguir de imediato a comunhão. Invés, nesse momento altamente místico, a Liturgia convida o celebrante a inclinar-se e a proferir as palavras com voz clara, mas não alta, para se favorecer a contemplação, como faz o Bispo na Quinta-Feira Santa, quando sopra sobre o crisma. O celebrante “nas suas atitudes como na forma de proferir as palavras divinas, procurará sugerir aos fieis a presença viva de Cristo”. Nesse momento, de fato, realiza-se o Sacrifício sacramental.

Nos primeiros séculos, antes da consagração dirigia-se ao Pai uma invocação, acompanhada do gesto das mãos estendidas (epíclesi), pedindo o envio do Espírito Santo para santificar e transformar o pão e o vinho no Corpo e Sangue do Senhor. O fundamento dessa oração encontra-se nas palavras que o Senhor proferiu após a instituição do mistério: “Quando vier o Paráclito, Ele dará testemunho de Mim e vos recordará tudo o que Eu vos disse. Ele Me glorificará” (Jo 15,26; 14,26; 16,14). Os grandes doutores cristãos da antiguidade acharam por bem unir a invocação do Espírito às palavras da instituição, para que o sinal sacramental se realizasse. As palavras do Senhor são, de fato, Espírito e vida (cf. Jo 6,63). Cristo atua juntamente com o Espírito Santo, mas mantém-Se o único que consagra a Eucaristia e concede o mesmo Espírito. Como observa Santo Ambrósio: “que dizer da bênção dada pelo próprio Deus, em que operam as mesmas palavras do Senhor e Salvador? Sendo este sacramento que recebes realizado com a palavra de Cristo não poderá a palavra de Cristo, que pôde criar do nada o que não existia, mudar as coisas que são naquilo que não eram? Certamente não é menos difícil dar às coisas uma existência do que mudá-las noutras. É o mesmo Senhor Jesus que diz: ‘Isto é o Meu Corpo’. Antes da bênção das celestiais palavras, a palavra designava um determinado elemento; depois da consagração, passa a designar o Corpo e o Sangue de Cristo. É Ele mesmo que o chama Seu Sangue. Antes da consagração, tem um outro nome; depois da consagração, chama-se Sangue. E tu dizes: ‘Amém’, ou seja, ‘Assim é’”.

Dos documentos antigos da Igreja aprendemos que a Comunhão não se toma, mas se recebe, como símbolo do que ela significa, ou seja, Dom recebido em atitude de adoração. Recomenda-se, pois, uma verdadeira devoção ao aproximar-se da Comunhão. São Francisco de Assis ardia “de amor em todas as fibras do seu ser pelo sacramento do Corpo do Senhor, cheio de incomensurável maravilha perante tão benévola bondade e generosíssima caridade. Comungava com tanta devoção a ponto de tornar devotos também os outros”. E Cabasilas, místico oriental, convida a ter presente que, “ao comungar uma carne e um sangue humano, recebemos na alma Deus: corpo de Deus, não menos que de homem; sangue e alma de Deus, mente e vontade de Deus, não menos que de homem”. A realidade do Corpo de Cristo é a Sua Pessoa e a Sua Vida, mistério e verdade salvífica, que se devem abraçar com a fé e a razão.


quarta-feira, 19 de junho de 2019

Homilia para a Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo - ano c

Gn 14,18-20
Sl 109
1Cor 11,23-26
Lc 9,11b-17

A Solenidade de hoje é celebração agradecida de uma Presença. A Igreja crê que na celebração litúrgica da Ceia eucarística, torna-se presente o verdadeiro, único e irrepetível sacrifício de Cristo, Sua entrega amorosa por nós ao Pai num Espírito eterno (cf. Hb 9,14). Cada Celebração da Missa é a ceia e ao mesmo tempo o sacrifício do Senhor Jesus, perpetuado no coração da Igreja e do mundo.

Mas, na festa de hoje, a Mãe católica quer chamar a atenção de seus filhos para a real presença de Cristo Jesus nas espécies, isto é, nas aparências eucarísticas do pão e do vinho consagrados. Sim, nelas o Cristo morto e ressuscitado encontra-Se tão verdadeiramente presente, que ali já não há mais pão, não há mais vinho, mas o Senhor Jesus, Cordeiro glorioso e imolado, no Seu estado de eterna imolação por nós.

Vejamos alguns aspectos desta realidade maravilhosa, deste mistério tão profundo.

(1) Como acontece esta misteriosa transformação, esta metamorfose das espécies eucarísticas no Corpo e Sangue do Senhor? Acontece na potência do Espírito Santo. Pela oração do sacerdote que, em nome de toda a Igreja suplica ao Pai que derrame sobre as santas espécies o Espírito do Filho morto e ressuscitado, o Espírito do Cristo pascal de tal modo apodera-Se das santas ofertas, que as transforma, as transubstanciam no Corpo e Sangue do Cristo Jesus. Cumpre-se, mais que nunca neste mundo, a afirmação do São Paulo: “O Senhor (Jesus) é Espírito” (2Cor 3,18). Estejamos atentos: como as espécies eucarísticas, pela invocação do Espírito sobre elas, são tornadas Corpo do Senhor, também nós, reunidos para a Eucaristia, somos tornados pelo Espírito que “nos une num só corpo”, corpo do Senhor Jesus, que é a Igreja. Na Eucaristia, está o corpo do Senhor de um modo real, sacramental em intensidade máxima neste mundo; na Igreja, de um modo não substancial, mas certamente real. Comungamos o Corpo de Cristo e somos tornados sempre mais corpo de Cristo!

(2) Quando dizemos que o pão e o vinho consagrados são o próprio Cristo, devemos ter o cuidado de recordar que o Senhor aí está não somente de modo estático, parado, congelado. É o Cristo presente com Sua história, Seu amor, Seu modo de viver como pobre, como Aquele que Se entregou totalmente ao Pai por amor de nós. O Cristo eucarístico é Aquele que “tendo amado os Seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). Comungar Seu Corpo e Seu Sangue é entrar neste caminho de Jesus, é ter em nós Seus sentimentos (cf. Fl 2,5), é fazer nossas as Suas opções, fazendo da existência uma pró-existência, uma vida doada ao Pai e aos irmãos. Quem comunga as espécies eucarísticas sem esse compromisso, peca gravemente contra o Corpo e Sangue do Senhor. Afinal, “O cálice de bênção que abençoamos não é comunhão com o Sangue de Cristo? O pão que partimos não é comunhão com o Corpo de Cristo?” (1Cor 10,16).

(3) Mas, além de nos unir a Cristo, a comunhão no Seu Corpo e Sangue une-nos também aos irmãos, faz-nos um só corpo Nele e com Ele: “Já que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, visto que participamos deste único pão” (1Cor 10,17). Por isso, é impossível comer deste pão e beber deste cálice permanecendo isolado, fechado em si mesmo, fugindo da comunidade e desprezando os irmãos. A Eucaristia faz a Igreja, “é a comunhão que nos une a Cristo e aos irmãos, e nos convida abrir as mãos para partir e repartir o pão”.

(4) Já dissemos que este pão bendito e este vinho sagrado são o próprio Cristo. Mas que Cristo? Jesus simplesmente na Sua vida humana? Não. Jesus simplesmente ressuscitado? Tampouco. Recebemo-Lo como está nos Céus, no seio da Trindade Santa: vitorioso, ressuscitado, mas, ao mesmo tempo, num estado de perpétua imolação gloriosa. Ele é e será sempre o “Cordeiro de pé como que imolado”de que fala o Apocalipse (cf. 5,4). Ele é Aquele que “entrou no santuário do céu com o Seu próprio sangue para interceder por nós”, de Quem fala a Epístola aos Hebreus (cf. Hb 4,14-16), Ele é Aquele que Estêvão viu de pé à direita do Pai (cf. At 7,55-56), é Aquele “Jesus Cristo, o justo, nosso Advogado junto do Pai”, de Quem fala São João na sua Primeira Carta (cf. 2,1). É este Jesus, plenamente presente nos Céus e, na potência do Espírito, que enche o universo, plenamente presente nas espécies eucarísticas, que recebemos em comunhão. Assim, recebemos em nós o próprio Céu, pois recebemos Aquele que é o bem-querer do Pai e Aquele que é a felicidade da humanidade e do mundo inteiro. No Cristo eucarístico, o Céu e a terra se encontram.

(5) Há ainda um aspecto maravilhoso na Eucaristia. O que eram estas espécies santíssimas? Eram pão e vinho com um pouco d’água, elementos deste mundo perecível. E agora, pela invocação do Espírito do Ressuscitado, o que são? São Corpo e Sangue do Cristo, são elementos que já antecipam maravilhosamente o mundo que há e vir, quando, em certo sentido, tudo será transfigurado e unido a Cristo, que será Cabeça de toda a criação, para que Deus, o Pai, seja tudo em todos (cf. 1Cor 15,28).

Tudo isto e muito mais está contido na Eucaristia, que é Cristo, tesouro da Igreja. Adoremos este Santíssimo Sacramento, sinal de unidade, vínculo de caridade, sacramento de piedade. Graças e louvores se deem a todo o momento ao Santíssimo e Diviníssimo Sacramento.


segunda-feira, 17 de junho de 2019

Uma âncora chamada esperança

Na Epístola aos Hebreus há um texto de grande beleza e profundidade: “A esperança é para nós qual âncora da alma, segura e firme, penetrando para além do véu, onde Jesus entrou por nós, como precursor...” (6,19s).

Vivemos num mundo esmigalhado, totalmente espatifado em seus valores; um mundo no qual já não se sabe mais por que e para que se vive. Nossa civilização ocidental renunciou colocar-se as grandes questões da existência; contenta-se, agora, simplesmente em sobreviver, ir empurrando a vida com a barriga... É realmente impressionante constatar a falta de um ideal mais alto no horizonte existencial das pessoas: vive-se do provisório, do aqui e do agora...

Ora, o ser humano não foi criado para viver assim, do provisório, simplesmente do palpável, do mensurável, do óbvio ululante. Santo Agostinho, no século V, já exprimia a sede de valores mais profundos que o homem traz em si, com aquelas célebres palavras de suas Confissões: “Tu nos fizeste para Ti, e o nosso coração andará inquieto até que não repouse em Ti”. Mas, não temos construído o mundo e a vida de modo que nosso coração repouse em Deus e, por isso, cansamo-nos em mil preocupaçõezinhas, em mil pequenos interesses, em mil paixões... Sentimos o barco da nossa vida como que perdido neste imenso mar chamado mundo; e lá vamos nós, ao sabor das marés, sem saber bem em que porto vamos atracar, em que praia da existência vamos repousar nosso coração cansado...

Filhos deste tempo de contrastes e mil caminhos, nós, cristãos, somos convidados a viver de esperança. Mas, atenção: não a esperança segundo o mundo: “Eu espero que tal coisa aconteça...” Esperar, para um cristão, significa esperar Deus de Deus, esperar com certeza invencível na sua fidelidade, na sua presença... Esperar é viver na certeza do Seu amor que conduzirá a bom termo nossa existência e o caminho do mundo! Mas, isso não é alienação? Não seria uma ilusão maluca e vazia, feita somente para nos dar um ilusório conforto? Não! Nós cremos e sabemos que o Senhor Jesus morreu e ressuscitou por nós; sabemos que nossa existência – e toda existência humana – caminha para Ele. Aqui entra a afirmação da Carta aos Hebreus: “A esperança é para nós qual âncora da alma, segura e firme, penetrando para além do véu, onde Jesus entrou por nós, como precursor...” (6,19s).

Estamos atravessando o mar da vida. Noite, ventos, temores – eis nossos medos, eis o que nos ameaça... Humanamente, os barcos procuram segurança jogando a âncora para o fundo do mar, colocando-se a salvo dos perigos. Os cristãos não jogam a âncora do barco de sua vida para baixo, para o fundo do mar deste mundo: eles não esperam no poder, no dinheiro, na saúde, nos muitos amigos, na realização de pequenos e mesquinhos prazeres...
Não! Não está aqui a rocha na qual podemos ancorar nosso barquinho! Os cristãos jogam a âncora da vida para cima – isto mesmo: para cima! -, para os profundos Céus, onde Jesus ressuscitado e Senhor Se encontra. Ele é a Rocha na qual nossa âncora se segura e prende, impedindo que o barco de nossa vida fique à toa, à deriva! Colocando toda nossa esperança em Cristo, atracados Nele, estamos seguros! É verdade que não O vemos: a âncora tem de penetrar “para além do véu”, para aquelas coisas que não podemos ver, a não ser na fé – “A fé é garantia antecipada do que se espera, a prova de realidades que não se veem” (Hb 11,1).



sábado, 15 de junho de 2019

Homilia para a Solenidade da Santíssima Trindade - ano c

Pr 8,22-31
Sl 8
Rm 5,1-5
Jo 16,12-15

De certo modo, é estranho celebrar com uma festa litúrgica a Santíssima Trindade, pois a Trindade Santa é celebrada em toda a vida cristã e, particularmente, em toda e cada Eucaristia.
Nunca esqueçamos, nunca percamos de vista que a Missa é glorificação da Trindade Santíssima, é a ação sacrifical na qual o Filho Se oferece e é por nós oferecido ao Pai na potência do Espírito Santo, para a salvação nossa e do mundo inteiro.
Mas, aproveitando a festa hodierna, façamos algumas considerações que nos ajudem na contemplação e adoração desse Mistério tão santo, que nos desvela a Vida íntima do próprio Deus.

Poderíamos começar com uma pergunta provocadora: como a Igreja descobriu a Trindade? Descobriu-A, como duas pessoas se descobrem: revelando-se! Duas pessoas somente se conhecem de verdade se conviverem, se forem se revelando no dia-a-dia, se se amarem. Só há verdadeiro conhecimento onde há verdadeiro amor! É costume dizer-se que ninguém ama o que não conhece; pois, que seja dito também: ninguém conhece o que não ama. O amor é a forma mais profunda e completa de conhecimento! Foi, portanto, por puro amor a nós, à nossa pobre humanidade, que Deus quis dirigir-Se a nós, desde os primórdios da humanidade quis revelar-Se, convivendo conosco, abrindo-nos Seu coração, dando-nos a conhecer e a experimentar Seu amor... E fez isso trinitariamente! Então, desde o início, a Igreja experimentou Deus na sua vida concreta, e o experimentou trinitariamente, como Pai, como Filho e como Espírito Santo. Assim, antes de falar sobre a Trindade, a Igreja experimentou a Trindade!

Primeiramente, o Senhor Deus incutiu no coração do Povo de Israel e da própria Igreja que Ele é um só: “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus, o Senhor é um só!” (Dt 6,4)
Um porque não pode haver outro ao Seu lado, já que tudo é absolutamente preenchido por Ele,
Um porque não pode ser multiplicado,
Um porque não pode ser dividido
e Um porque deve ser o único horizonte, o único apoio, a única rocha de nossa existência:
Ele, o Senhor Deus, é o único absoluto, o único que É, sem princípio e sem fim, sem mudança e sem limite!
Jamais poderemos imaginar tal grandeza, tal plenitude, tal suficiência de Si mesmo!
Deus É – e basta!
Tudo o mais apenas existe porque vem Dele, Daquele que É!
Mas, Ele não é um Deus frio: sempre apresentou-Se ao Povo de Israel como um Deus amante, um Deus de misericórdia e compaixão, um Deus que não sossega enquanto não levar à plenitude da vida as Suas criaturas. Por isso, com paciência e bondade, conduziu o Seu Povo de Israel, formando-o, educando-o, orientando-o e prometendo um futuro de bênção e plenitude, de eternidade e abundância de dons, que se concretizaria com um personagem que Ele enviaria: o Messias, Seu Ungido, doador do Espírito de Vida, bênção, paz e abundância para o Seu Povo e para toda a criação.

Esse Messias prometido, cheio do Espírito e doador do Espírito, nós, cristãos, O reconhecemos em Jesus, nosso Senhor. Ele é o enviado de Deus, do Deus único, Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, Deus do Povo de Israel. A esse Deus tão grande e tão santo, Jesus chamava de Abbá – Papai: o Meu Papai! A Si mesmo, Jesus Se chamava “o Filho” – Filho único, unigênito de Deus, Filho Amado, cheio de graça e de verdade, cheio do Espírito de Deus! Mais ainda: o próprio Jesus, que veio para nós e por amor de nós, agiu neste mundo, em nosso favor, com uma autoridade que ultrapassava de longe a autoridade de um simples ser humano: Ele agia como o próprio Deus! Não só interpretava a Lei de Moisés, como também a modificou e a ultrapassou; perdoava os pecados, exigia um amor e uma obediência absolutos à Sua Pessoa, demandava um amor que somente Deus poderia exigir. Jesus Se revelava igual ao Pai, absolutamente unido a Ele: “Eu e o Pai somos uma coisa só! Quem Me vê, vê o Pai. Eu estou no Pai e o Pai está em Mim”.
Após a ressurreição, a Igreja compreendeu, impressionada, maravilhada: Jesus não somente é o enviado Daquele Deus a Quem chamava de “Pai”, mas Ele é igual ao Pai: Ele é Deus como o Pai, é eterno como o Pai, é o Filho amado pelo Pai desde toda a eternidade. Então, o Deus de Israel é Pai, Pai eterno, Pai eternamente, que eternamente gera no amor o Filho amado. Por amor, Ele nos enviou este Filho: “Verdadeiro homem, concebido do Espírito Santo e nascido da Virgem Maria, viveu em tudo a condição humana, menos o pecado. Anunciou aos pobres a salvação, aos oprimidos, a liberdade, aos tristes, a alegria”. E para realizar o plano de amor do Pai, “entregou-Se à morte e, ressuscitando dos mortos, venceu a morte e renovou a vida”. 

Mas, há ainda mais: o Filho, que sempre viveu entre nós agindo na força do Espírito do Deus de Israel, uma vez ressuscitado e glorificado, derramou sobre os Seus discípulos o Espírito Santo, que é o próprio Amor que o liga ao Pai. Este Espírito de Amor não é uma coisa, não é simplesmente uma força, não é algo: é Alguém, é o Amor que une o Pai e o Filho, e agora é, na Igreja de Cristo, o Paráclito-Consolador, Aquele que dá testemunho de Jesus morto e ressuscitado, Aquele que vivifica e orienta a Igreja, Aquele que renova em Cristo todas as coisas. Ele é o Dom que o Filho ressuscitado recebeu do Pai e derramou sobre a Igreja, para vivificar de Vida divina, santificar com a Santidade divina todas as coisas. Este Espírito permanece no nosso meio na Palavra e nos sacramentos; este Espírito suscita na Igreja dons, carismas, ministérios, dinamismo provindos do próprio Deus; Ele conserva a Igreja unida na mesma fé e na mesma caridade fraterna, este Espírito é a Força divina, a Energia criadora que nos ressuscitará, como ressuscitou o Filho Jesus para a glória do Pai.

É assim que a Igreja confessa um só Deus, imutável, indivisível, perfeito, eterno, absolutamente um só. Mas confessa e experimenta igualmente que, desde toda a Eternidade, este Deus único é real e verdadeiramente Pai, Filho e Espírito Santo, numa Trindade de amor perfeito e perfeitíssima Unidade. A oração inicial da Missa de hoje, exprime este Mistério: “Ó Deus, nosso Pai, enviando ao mundo a Palavra da verdade, que é o Filho, e o Espírito santificador, revelastes o Vosso inefável mistério. Fazei que, professando a verdadeira fé, reconheçamos a glória da Trindade e adoremos a Unidade onipotente”.

Continuemos, então, a nossa Eucaristia, na qual torna-se presente sobre o Altar a oferta do Filho que, por nós, entregou-Se ao Pai num Espírito eterno. Que toda a nossa existência e que a existência da própria Igreja seja um louvor, uma glorificação, uma doxologia como aquela solene proclamação que conclui a Oração Eucarística de cada Missa: “Por Cristo, com Cristo e em Cristo, a Vós Deus Pai todo-poderoso, na Unidade do Espírito Santo, toda honra e toda glória agora a para sempre!” Eis, portanto: ao Pai, ao Filho e ao Santo Espírito, Trindade santa a consubstancial, a glória e o louvor pelos séculos dos séculos. Amém.


O poder do sangue de Jesus

Tantas vezes já escutamos falar do sangue de Jesus e do seu poder salvador!
A Primeira Epístola de São João afirma claramente que “o sangue de Jesus nos purifica de todo pecado” (1,7) e a Primeira Epístola de São Pedro ensina, cheia de convicção, que “fostes resgatados da vida fútil que herdastes dos vossos pais pelo sangue de Cristo, com de um cordeiro sem defeitos” (1,19). Em suma, é doutrina do Novo Testamento todo, é fé da Igreja que pelo sangue de Cristo fomos salvos e libertos. Saudando o Cristo morto e ressuscitado, o Apocalipse assim se exprime: “Foste imolado e, por Teu sangue, resgataste para Deus homens de toda tribo, língua, povo e nação” (5,9).
Mas, por que esta verdadeira fixação no sangue? Por que a sua importância? Não parece algo mágico, que um líquido biológico possa salvar, dando vida à humanidade? Não estamos diante de algo repulsivo à razão humana, algo meio ridículo e primitivo, próprio de uma religião tribal, inaceitável e incompreensível para nós hoje? Não estaríamos ainda às voltas com a imagem de um deus sádico, mau, vingativo, que provoca o sofrimento e somente se compraz e se sacia com sangue, com vingança?
São perguntas sérias, que podem colocar em xeque a seriedade do cristianismo...

Para compreendermos tudo isto, é necessário primeiro entender o que significa o sangue na Sagrada Escritura, de modo particular no Antigo Testamento. O Pentateuco explica: “A vida da carne está no sangue. E este sangue Eu vo-lo tenho dado para fazer o rito de expiação sobre o altar, pelas vossas vidas; pois é o sangue que faz expiação pela vida” (Lv 17,11). Compreendamos: Deus é vida e a vida do homem é estar em comunhão com Deus, aberto a Ele, amando-O e buscando na vida concreta a Sua santa vontade. Quando o homem peca, rebela-se contra Deus, fecha-se para Ele. Na raiz de todo pecado está a ilusão de que a vida é nossa e podemos fazer dela aquilo que bem quisermos. Ora, quando o homem peca, afastando-se de Deus, ele perde o sentido da vida, perde a Vida, cai numa situação de morte. Claro que, aqui, não se trata de uma morte física, mas da morte da alma, morte porque a vida perde o sentido e, passando pela morte física, pode resultar na Morte eterna, que é a perda de Deus para sempre, ou seja, o inferno.
Por isso mesmo, nos ritos do antigo Israel, o pecado somente poderia ser remido com um sacrifício no qual o sangue (a vida) da vítima fosse derramado: “Segundo a Lei, quase todas as coisas se purificam com sangue; e sem efusão de sangue não há remissão” (Hb 9,22). E o autor sagrado afirma também: “Nem mesmo a primeira aliança foi inaugurada sem efusão de sangue” (Hb 9,18). Quando o pecador oferecia um animal como vítima pelo pecado, estava reconhecendo (1) o seu pecado, (2) o senhorio absoluto de Deus sobre toda a sua vida, (3) e que seu pecado leva a uma situação de morte, representada na morte da vítima, que tinha seu sangue derramado. É como se a vítima substituísse o pecador que, pecando, afastou-se do Deus vivo e vivificante, e aproximou-se da morte. Podemos afirmar, então, que o sangue derramado significa a vida doada, a vida perdida, a vida tirada... Não esqueçamos: “A vida da carne (a vida de todo ser vivente) está no sangue” (Lv 17,11): perder este é perder aquela!
Mas, há um problema sério com esses sacrifícios: os animais oferecidos como vítimas não tinham nenhuma consciência do que estava acontecendo, não podiam oferecer sua própria vida como um ato livre de amor e louvor a Deus. Eles apenas representavam o pecador e eram oferecidos no lugar dele. Por isso, a Escritura constata que “é impossível que o sangue de touros e bodes elimine os pecados” (Hb 10,4).

Agora, vamos a Jesus. Toda a Sua vida, desde momento da Encarnação, foi um ato de amor e obediência ao Pai em nosso favor: “Tu não quiseste sacrifício e oferenda. Tu, porém, formaste-Me um corpo. Holocausto e sacrifício pelo pecado não foram do Teu agrado. Por isso Eu digo: Eis-Me aqui! Eu vim, ó Deus, para fazer a Tua vontade!” (Hb 10,5-7).
O Filho eterno fez-Se homem para gastar toda a Sua vida fazendo a vontade do Pai. E esta vontade é salvar a humanidade, dando-lhe a Vida eterna (cf. Jo 6,37-39). Assim, Jesus nosso Senhor foi derramando a Sua vida, num amor infinito ao Pai por nós: na pobreza de Belém, na vida miúda de Nazaré, nas andanças pelas estradas da Galileia, nas curas, ensinamentos, nas contradições, nas noites inteiras em oração ao Pai... Jesus foi Se dando, Se gastando, como uma vida vivida para Deus em benefício da humanidade. Esta doação de toda uma existência, chegou ao máximo na Cruz. O sangue que Ele iria derramar até a morte nada mais é que o símbolo de uma vida – a vida do Filho de Deus feito homem – entregue em favor da humanidade! O sangue derramado significa, então, a vida dada amorosamente em nosso favor, como vítima de reparação pelo nosso pecado. Porque o homem pecou e caiu numa triste situação de perdição, de desencontro, desaprumo e morte, o Filho de Deus deu Sua vida até a morte para da morte nos arrancar: Isto é o Meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado por muitos para a remissão dos pecados” (Mt 26,28).
Cristo Jesus, dando a Sua vida em total obediência amorosa ao Pai por nós, apaga o nosso pecado, restitui-nos a Vida e faz de nós um povo nascido de uma nova Aliança com Deus no Seu sangue. Dizer que o sangue de Cristo nos salva é dizer que Sua vida dada em obediência amorosa ao Pai nos alcançou a salvação: “Eis que Eu vim, ó Deus, para fazer a Tua vontade. – é graças a esta vontade que nós somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo” (Hb 10,8.10).

Olhar o sangue de Jesus, ser banhado no sangue de Jesus, beber o sangue de Jesus, significa unir-se a Jesus, fazendo da nossa vida uma participação na Sua entrega de toda a existência ao Pai. Por isso mesmo são Pedro que nós participamos da “bênção da aspersão do Seu sangue” (1Pd 1,2).

Então, olhemos o Cristo que Se gastou, que Se derramou amorosamente a vida toda até a Cruz; sejamos-Lhe gratos porque Seu sangue, Sua vida derramado por amor nos salvou.
Como cristãos, somos unidos a Ele pelo Batismo e a Eucaristia, para fazer de nossa vida uma entrega com Ele, por Ele e como Ele. Assim viveremos uma vida nova já agora, vida liberta da morte e que será ressurreição para a Vida eterna. “Àquele que nos ama, e que nos lavou de nossos pecados com o Seu sangue, e fez de nós uma Realeza e Sacerdotes para Deus, Seu Pai, a Ele pertencem a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Amém. (Ap 1,5s).