domingo, 24 de junho de 2018

A Igreja que nasce da Eucaristia


Neste Domingo, Dia do Senhor, Dia da Assembleia eucarística, dia de Igreja, gostaria de oferecer algumas ideias teológicas sobre a Eucaristia, tomando como ponto de referência a Introdução da Encíclica de São João Paulo II, de 2005, Ecclesia de Eucharistia (A Igreja que nasce, que se faz da Eucaristia), inspirando-me nele e aprofundando suas intuições.

“A Igreja vive da Eucaristia” (EE 1). É uma frase densa, rica, ousada. O texto, aqui, nada mais faz que retomar a grande Tradição da Igreja, desde os Santos Padres dos primeiros séculos do cristianismo até o Concílio Vaticano II. Mas, por que a Eucaristia (= a celebração eucarística, a missa) é tão importante? Porque ela é o núcleo mesmo do mistério da Igreja! Vejamos.

O que celebramos na Ceia do Senhor? O memorial da entrega que Jesus fez de Si ao Pai por nós: “Quando, pois, chegou a hora, em que por Vós ó Pai, ia ser glorificado, tendo amado os Seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. Enquanto ceavam, Ele tomou o pão...” (Oração Eucarística IV). Portanto, é a entrega amorosa de toda a Sua existência humana que tornamos realmente presente, como memorial, em cada Celebração eucarística: “Celebrando, agora, ó Pai, a memória (= o memorial) da nossa redenção, anunciamos a Morte de Cristo e Sua Descida entre os mortos, proclamamos a Sua Ressurreição e Ascensão à Vossa Direita, e, esperando a Sua Vinda gloriosa, nós Vos oferecemos o Seu Corpo e Sangue, Sacrifício do Vosso agrado e salvação do mundo inteiro” (Oração Eucarística IV).

Quando dizemos que na Eucaristia torna-se presente o Sacrifício da cruz, é necessário ter muito cuidado para não reduzir este “sacrifício”, este “fazer sagrado” de Cristo simplesmente ao que aconteceu na Sexta-feira Santa! A Cruz do Senhor foi consequência e cume, “até o fim, até o extremo” (Jo 13,1) de todo um modo de viver: Ele Se fez carne, fez-Se fragilidade, fes-Se limitado, humano igual aos humanos; Ele viveu a nossa vida pequena, rotineira, tão igual... Ele empenhou a Sua existência humana no anúncio do Reino do Pai: proclamou o Reino com Sua palavra, mas também com Sua própria Pessoa, Seu modo de viver, pobre, despojado, aberto, Sua solidariedade com toda dor e sofrimento humanos, Sua denúncia de tudo quanto era hipocrisia religiosa e política, Suas opções, Seu compromisso inabalável e absoluto somente com o Pai e, por amor ao Pai, com a vida da humanidade e com o mundo... Todo este modo de viver de Jesus nosso Senhor foi sacrifical, foi um “fazer sagrado”, uma oferta de Si mesmo a Deus, que culminou com Sua Paixão e Morte de cruz. Então, ao dizermos que na Eucaristia torna-se presente o Sacrifício da Cruz, queremos dizer que toda a existência humana de Jesus, vivida como entrega de amor ao Pai por nós, até a morte de cruz, ali está presente! A Eucaristia é, pois, memorial da nossa redenção! Ora, se é todo o caminho de Jesus para a nossa salvação que ali se faz presente - Seu modo de ser e de viver, de pensar e de agir, Suas opções e Seu ideal, ou seja, tudo quanto o Filho de Deus viveu na nossa natureza humana -, pode-se, então, compreender porque “na Celebração eucarística está contido todo o tesouro espiritual da Igreja” (EE 1)! A Encíclica cita o Vaticano II: “O Mistério eucarístico é a fonte e o centro de toda a vida cristã” (Lumen Gentium 11) – ali está toda a existência humana do Cristo, Sua Morte e Ressurreição, Sua Ascensão e o dom do Espírito, ali, sobre aquela mesa-altar, está a certa esperança e já o penhor, a pregustação da Ressurreição, do Mundo que há de vir, quando Cristo, nossa vida aparecer em Glória! Por isso, a Eucaristia contém todo o tesouro espiritual da Igreja: ela nos compromete com um modo de ser, de viver e de esperar: o modo de Jesus Cristo nosso Senhor! Jamais a Eucaristia pode ser compreendida de modo intimista, buscando simplesmente um gozo espiritual: ela é compromisso-participação no caminho de Jesus neste mundo, no Seu modo de viver, de sofrer e de morrer, de ressuscitar e entrar na Glória do Pai!

O mesmo devemos compreender quando o texto recorda, seguindo a fé constante da Igreja, que a Eucaristia é celebração do Mistério pascal, que é o centro de nossa fé (cf. EE 3). Pensemos bem: Quando se deu a Páscoa de Jesus? Somente na Sua morte? Não! Toda a Sua existência foi pascal, foi um passar deste mundo para o Pai. Jesus viveu em páscoa, viveu em passagem: “Saí do Pai e vim ao mundo; agora deixo o mundo e volto ao Pai” (Jo 16,28). Toda a Sua existência humana foi um ir caminhando, como homem, rumo ao Pai: Ele foi amadurecendo, crescendo “em sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus” (Lc 2,52). Este caminho pascal de Jesus para o Pai, chegou ao máximo com Sua Morte, pela qual Ele deixou definitivamente este nosso modo de existir e, pela Sua Ressurreição, entrou na plenitude do Pai, sendo totalmente vivificado de Glória divina na Sua natureza humana pelo Espírito vivificador.

Pois bem, celebrar a Eucaristia, é entrar nesta impressionante, misteriosa e maravilhosa dinâmica de Cristo Jesus, é fazer da vida, com Ele, Nele e como Ele, uma passagem do mundo para o Pai, é viver em Páscoa! Celebrar a Eucaristia é nunca nos acomodar, nunca nos aburguesar num apego parasitário a este mundo, é tomar consciência em Jesus, que somos peregrinos para o Pai e, portanto, livres e libertadores, tendo somente o Reino do Pai como nosso horizonte e compromisso absoluto! Nosso destino é irmos passando, até sermos totalmente glorificados, como Jesus, o Cristo de Deus. Por isso, a Encíclica recorda que, ao participarmos da Eucaristia, comungando as coisas santas, o Corpo e Sangue do Cordeiro imolado, entramos em comunhão com a “Carne (= com toda a existência humana) vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo” (EE, n. 1). Como Jesus, nos dias de Sua vida entre nós, guiado pelo Espírito, foi fazendo de Sua existência humana uma passagem para o Pai, até entrar na Glória pela ação deste mesmo Espírito, assim também nós, seremos vivificados pela ação deste Espírito. Tal vivificação é já dada realmente e realmente pregustada na Eucaristia, corpo (=existência humana) do Senhor imolado (= morto e ressuscitado).

Então, para resumir: celebrar a Eucaristia, longe de ser um gesto meramente ritual, é um compromisso com um modo de viver e conviver, é um gesto cheio de consequências existenciais bem concretas:

(1) É entrar em comunhão com o Sacrifício de Cristo, com toda a Sua vida e Seu modo de viver, fazendo, com Ele e Nele, de nossa vida um “fazer sagrado” para o Pai: “Se vivemos, é para o Senhor que vivemos, e se morremos é para o Senhor que morremos. Cristo morreu e reviveu por todos para ser o Senhor dos mortos e dos vivos” (Rm 14,8.9);

(2) É também entrar em comunhão com a Páscoa do Senhor, isto é, fazer de toda a vida, até a morte, uma contínua passagem deste mundo para o Pai: passagem no dia a dia, passagem nas atitudes, passagem no modo de se relacionar com os bens materiais, passagem nas nossas relações com os outros... “Nós não temos aqui na terra cidade permanente, mas estamos à procura da cidade que está para vir! (Hb 13,14).

Ainda na sua Introdução, a Encíclica de São João Paulo II alude a três elementos bastante significativos:

Primeiro. Em cada Celebração eucarística de rito latino, o celebrante, após a consagração, exclama: “Eis o Mistério da fé!” Que “mistério” é este? São Paulo refere-se a ele: “Por revelação me foi dado a conhecer o Mistério... o mistério de Cristo. Às gerações e aos homens do passado este Mistério não foi dado a conhecer, como foi agora revelado aos Seus santos apóstolos e profetas, no Espírito: os gentios são co-hedeiros, membros do mesmo Corpo e co-participantes da Promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho” (Ef 3,3-6). O mistério é todo o desígnio de Deus, todo o Seu amoroso desígnio de salvação, de reconciliar consigo mesmo toda a humanidade, judeus e pagãos, em Cristo Jesus; aquilo que chamamos em teologia de “economia da salvação”. Por isso, o mesmo Apóstolo afirma a respeito de Cristo morto e ressuscitado por nós todos: “Seguramente, grande é o Mistério da piedade: Ele foi manifestado na carne (= na nossa natureza humana), justificado no Espírito (= ressuscitado por obra do Pai na potência do Espírito Santo), aparecido aos anjos (= feito Senhor, acima do anjos, na glória), proclamado às nações, crido no mundo, exaltado na Glória” (1Tm 3,16). Então, o “mistério da fé”  é o Cristo, por nós feito homem, por nós entregue até a morte, por nós imolado, por nós ressuscitado, por nós elevado aos Céus, por nós doador do Espírito, por nós, um Dia, vindo na Glória! O “Mistério da Piedade” é toda a história da salvação; e toda ela se concretiza no Cristo imolado e glorificado, o mesmo oferecido em Sacrifício e recebido em comunhão em cada Eucaristia. Por isso, a Encíclica recorda: “Mistério da fé. Quando o sacerdote pronuncia estas palavras, os presentes aclamam: ‘Anunciamos, Senhor, a Vossa Morte e proclamamos a Vossa Ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!’” (EE 5). É todo este Mistério, este desígnio de salvação que se concentra no Pão e no Vinho consagrados e ofertados ao Pai como adoração e louvor e, a nós, como alimento de salvação.  A Encíclica, então, tem razão ao afirmar: na Eucaristia “a Igreja, ao mesmo tempo em que apresenta Cristo no mistério da Sua Paixão, revela também o seu próprio mistério: Igreja que nasce da Eucaristia” (EE 5) porque nasce da entrega do seu Senhor no Tríduo Pascal. É este Mistério de Salvação que a Igreja celebra e torna sempre presente novamente ao longo dos séculos, como memorial do Senhor, até que Ele venha! Ante tão grande Mistério da salvação, cabe bem recordar as palavras da liturgia judaica: “Devemos celebrar, louvar, glorificar, engrandecer, exaltar, honrar, bendizer, cantar hinos e prclamar vencedor Aquele que realizou estas coisas com os nossos pais e também conosco! Digamos, pois, diante Dele: Aleluia!”

Segundo. O Papa, na Encíclica, recorda também que “contemplar o Cristo implica saber reconhecê-Lo onde quer que Ele Se manifeste, com as Suas diversas presenças, mas sobretudo no Sacramento vivo do Seu Corpo e do Seu Sangue” (EE 6). A afirmação tem um significado importante: se é verdade que o Cristo encontra-Se presente de modo máximo no sacramento da Eucaristia, é também verdade que este santíssimo Sacramento não esgota a presença do Senhor. Cristo está presente no pobre, no faminto, no sofredor, no injustiçado, no enfermo, no descriminado, nos abandonados e esquecidos do mundo: “’Senhor, quando foi que Te vimos com fome e Te alimentamos, com sede e Te demos de beber? Quando foi que Te vimos forasteiros e Te recolhemos ou nu e Te vestimos? Quando foi que Te vimos doente ou preso e fomos Te ver?’ Ao que lhes responderá o Rei: ‘Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses Meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes’” (Mt 25,37-40). E ainda: “Onde dois ou três estiverem reunidos em Meu Nome, ali estou Eu no meio deles” (Mt 18,20). Por fim: “Quem vos ouve, a Mim ouve; quem vos rejeita, a Mim rejeita” (Lc 10,16). É assim: Cristo está presente no irmão, na comunidade reunida em Seu Nome, nos Seus ministros, na inteira Igreja. Reconhecê-Lo presente na Eucaristia exige que O reconheçamos também nestas outras formas de presença, pois elas estão interligadas. Como já recordei no artigo passado, a Eucaristia não deve e não pode servir de desculpas para um individualismo miserável e para uma alienação que nada tem de cristão! O Cristo presente na Eucaristia é o mesmo presente nas estradas da vida e do mundo! Que nós saibamos abrir os olhos e reconhecê-Lo (cf. EE 6; Lc 24,31) não somente ao partir do Pão, mas também no menino de rua, no enfermo, no irmão de comunidade e em todo aquele que se torna para nós um apelo de Deus!

Terceiro. Finalmente, ainda na Introdução, a Encíclica evoca a dimensão cósmica da Eucaristia: ela é celebrada no grande altar do mundo universo (EE 8): “a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo. Une o Céu e a terra. Abraça e impregna toda a criação. O Filho de Deus fez-Se homem para, num supremo ato de louvor, devolver toda a criação Àquele que a fez surgir do nada”. A ideia é muito bela: Quem se oferece ao Pai na Eucaristia é o Filho feito homem, Ele que entrou no nosso mundo, na nossa história, na nossa vida. Ele, na força do Espírito Santo, assume o pão e o vinho com água – elementos do nosso mundo, do nosso cosmos - e os transfigura no Seu Corpo e no Seu Sangue. Assim, em cada Celebração, é anunciada e realizada em mistério a glorificação do universo! A Eucaristia proclama e testemunha que Deus ama o mundo, este mundo material e este mundo humano, tão cheio de contrastes, sombras, confusões, mas também de amor, sonhos, possibilidades e ideais! O Cristo que entrou neste mundo e o assumiu por amor, “devolve ao Criador e Pai toda a criação redimida: este é o Mistério da Fé que se realiza na Eucaristia: o mundo saído das mãos de Deus criador volta a Ele redimido por Cristo” (EE 8). Mais, uma vez: celebrar a Eucaristia compromete-nos em cheio com a construção de um mundo novo, germe do Reino que um dia aparecerá com Cristo, nossa Vida.

Pensando nestas realidades, como negar que o Sacrifício eucarístico seja o centro da vida cristã? Como manipular ou avacalhar a Divina Liturgia? Como deturpar o significado profundo com o qual a Igreja sempre o celebrou? Sim: a Eucaristia é a fonte, a expressão e o destino mesmo da vida da Igreja e do mundo, quanto nela nos é dado celebrar e tornar presente o Mistério da Fé, o inteiro Desígnio salvífico do Senhor Deus; é-nos dado, já na terra, antecipar o mundo que já de vir, a consumação do Reino de Deus! Sim, no altar, já participamos realmente das coisas do Céu!



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