sábado, 30 de junho de 2018

Homilia para a Solenidade de São Pedro e São Paulo Apóstolos

Hoje, celebramos o glorioso martírio dos santos Apóstolos Pedro e Paulo, aqueles “santos que, vivendo neste mundo, plantaram a Igreja, regando-a com seu sangue. Beberam do cálice do Senhor e se tornaram amigos de Deus”.
Pedro, aquele a quem o Senhor constituiu como fundamento da unidade visível da Sua Igreja e a quem, misteriosamente, concedeu as chaves do Reino! Pensai: conceder as chaves do Reino! Palavras misteriosas...
Paulo, chamado para ser Apóstolo de um modo único e especial, por pura iniciativa surpreendente do Senhor Ressuscitado, que é único dono da Sua Igreja, e chama quem quer e como quer... Este Apóstolo tornou-se o Doutor das nações pagãs, levando o Evangelho aos povos que viviam nas trevas.
Um pela cruz e o outro pela espada, deram o testemunho perfeito de Cristo, derramando seu sangue e entregando a vida em Roma, Pedro, por volta do ano 64; Paulo, pelo ano  67 da nossa era.

Caríssimos, esta Solenidade hodierna dá-nos a oportunidade para algumas ponderações importantes.

Primeiro: A Igreja é apostólica. Esta é uma sua propriedade essencial. João, no Apocalipse, vê a Jerusalém celeste fundada sobre doze alicerces com os nomes dos doze apóstolos do Cordeiro (cf. 21,14).
Eis: a Igreja não pode ser fundada por ninguém, a não ser pelo próprio Senhor, que a estabeleceu sobre o testemunho daqueles Doze primeiros que Ele mesmo escolheu. Seu alicerce, portanto, sua origem, seu fundamento são o ministério e a pregação apostólicas que, na força do Espírito Santo, deverão perdurar até o fim dos tempos graças à sucessão apostólica dos Bispos católicos, transmitida na Ordenação episcopal sob a potente atividade do Santo Espírito do Cristo ressuscitado, Senhor único da Igreja.
Dizer que nossa fé é apostólica significa crer firmemente que a fé não pode ser inventada, não pode ser mutilada nem adulterada, nem tampouco deixada ao bel-prazer das modas de cada época; crer que a Igreja tem como fundamento os Apóstolos significa afirmar que não somos nós, mas o Cristo no Espírito Santo, Quem pastoreia e santifica a Igreja pelo ministério dos legítimos sucessores dos Apóstolos.
O critério daquilo que cremos, a regra da nossa adesão ao Senhor Jesus, a norma da nossa fé e até mesmo a certeza sobre a relação dos autênticos livros da Bíblia, é aquilo que recebemos dos santos Apóstolos uma vez para sempre (cf. Jd 3). Só a eles e aos seus legítimos sucessores o Senhor confiou a Sua Igreja, concedendo-lhes a autoridade com a unção do Espírito para desempenharem o ofício de guiar o Seu rebanho pelos séculos afora.
Olhemos, irmãos amados, para Pedro e Paulo e renovemos nosso firme propósito de nos manter alicerçados na fé católica e apostólica que eles plantaram juntamente com os demais discípulos do Senhor. Hoje, quando surgem tantas comunidades cristãs que se auto-intitulam “igrejas” e se auto-denominam “apostólicas”, estejamos atentos para não perder a comunhão com a verdadeira fé, transmitida de modo ininterrupto e fiel na única Igreja de Cristo, santa, católica e apostólica.

Um segundo aspecto importante, caríssimos, é o significado de ser apóstolo: ele não é somente aquele que prega Jesus, mas, sobretudo, alguém que, escolhido pelo Senhor, com Ele conviveu, Nele viveu e, por Ele, entregou sua vida. Os apóstolos testemunharam Jesus não somente com a palavra, mas também com o modo de viver e com a própria morte. Por isso mesmo, a celebração anual do seu martírio é uma festa para a Igreja, pois é o selo de tudo quanto anunciaram. O próprio São Paulo reconhecia: “Não pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor. Trazemos, porém, este tesouro em vasos de argila para que esse incomparável poder seja de Deus e não nosso. Incessantemente trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus seja também manifestada em nosso corpo. Assim, a morte trabalha em nós; a vida, porém, em vós” (2Cor 4,5.7.10.12).
Eis o sinal do verdadeiro Apóstolo: dar a vida pelo rebanho, com Jesus e como Jesus, gastando-se, morrendo, para que os irmãos vivam no Senhor! Por isso, caríssimos meus, a alegria da Igreja na Festa de hoje: Pedro e Paulo não só falaram, não só viveram, mas também morreram pelo seu Senhor; e já sabemos pelo próprio Cristo-Deus que não há maior prova de amor que dá a vida por quem amamos! Bem-aventurado é Pedro, bendito é Paulo, que amaram tanto o Senhor a ponto de darem a vida por Ele! Nisto, são um exemplo, um modelo, uma norma de vida para todos nós. Aprendamos com eles!

Um terceiro aspecto que hoje podemos considerar é a ação fecunda da graça de Cristo na vida dos Seus servos. O exemplo de Pedro, o exemplo de Paulo servem muito bem para nós. Vede: o Senhor chama quem Ele quer, de modo misterioso e soberano!
Quem era Simão, chamado Pedro? Um pescador sincero, mas rude, impulsivo e de temperamento movediço. No entanto, foi fiel à graça, e tornou-se Pedra sólida da Igreja, tão apegado ao seu Senhor, a ponto de exclamar, cheio de tímida humildade: “Senhor Tu sabes tudo; Tu sabes que Te amo” (Jo 21,17).
Quem era Saulo de Tarso, chamado Paulo? Um douto, mas teimoso e radical fariseu, inimigo de Cristo. Tendo sido fiel à graça, tornou-se o grande Apóstolo de Jesus Cristo, tão apaixonado pelo seu Senhor, a ponto de nos desafiar: “Sede meus imitadores como eu sou de Cristo!” (1Cor 11,1)
Eis, caros meus, abramo-nos também nós à graça que o Senhor nos concede para a edificação da Sua obra, para a construção do Seu Reino, e digamos como São Paulo: “Pela graça de Deus sou o que sou, e Sua graça em mim não foi em vão” (1Cor 15,10).

Ainda um derradeiro aspecto, amados no Senhor. Nesta hodierna Solenidade somos chamados a refletir sobre o ministério de Pedro na Igreja.
Simão por natureza, foi feito Pedro pela graça. Pedro quer dizer pedra. Eis, portanto, Simão Pedra: “Tu és Pedro e sobre esta Pedra Eu edificarei a minha Igreja. Eu te darei as chaves do Reino” (Mt 16,16ss).
Caríssimos, o ministério petrino é mais que a pessoa de Pedro ou deste outro aquele papa. Seu serviço será sempre o de confirmar os irmãos na fé da Igreja católica, que é a fé em Cristo, Filho do Deus vivo, mantendo, assim, a Igreja unida na verdadeira fé apostólica e na unidade católica. É este o ministério que até o fim dos tempos, por vontade do Senhor, estará presente na Igreja na pessoa do Sucessor de Pedro, o Bispo de Roma, a quem chamamos carinhosamente de Papa, pai.
compreendamos bem: o Papa não é dono da Igreja, não está acima da Igreja, não é um monarca e muito menos um monarca absoluto! Ele não pode fazer na Igreja aquilo que bem queira e entenda! Ele é o Pastor supremo da Igreja de Cristo porque somente a ele o Senhor entregou de modo supremo o Seu rebanho. Mas, atenção: o que o Senhor entregou de modo especial a Pedro (cf. Mt 16,18-20), entregou também aos demais Apóstolos (cf. Mt 18,18)! É totalmente errado pensar Pedro sem os demais apóstolos, pensar o Papa sem o Colégio dos Bispos! Pedro no meio dos Apóstolos e princípio da comunhão entre eles; o Papa no meio dos Bispos e princípio da comunhão entre eles, sempre a serviço da fé católica e apostólica; nunca acima dela!
No entanto, repitamos: aquilo que Cristo nosso Senhor entregou aos Doze e a seus sucessores, os Bispos, entregou de modo especial a Pedro e a seus sucessores, o Papa, Bispo de Roma, que é a Igreja diocesana de Pedro: “Tu Me amas mais que estes? Apascenta as Minhas ovelhas!” (Jo 21,15).
Estejamos atentos, caríssimos: nossa obediência, nossa adesão, nosso respeito, nossa veneração pelo Santo Padre não é por motivos humanos: porque o achamos simpático, sábio, ou de pensamento igual ao nosso; não é porque ele nunca erra ou se engana…
Nosso respeito ao Sucessor de Pedro é na fé, porque se trata daquele a quem o Senhor confiou a missão de confirmar os irmãos. O Papa deve ser o primeiro guardião da fé católica, o primeiro a fazer o possível para conservar os fieis de Cristo unidos na fé e nos vínculos da caridade!  Antes de ser pastor da Igreja, é filho da Igreja, membro da Igreja! Nossa certeza de que ele nos guia em nome de Cristo vem da promessa do próprio Senhor: “Simão, Simão, eis que Satanás pediu insistentemente para vos peneirar como trigo; Eu, porém, orei por ti, a fim de que a tua fé não desfaleça. Quando, porém, te converteres, confirma teus irmãos” (Lc 22,31-32). Somente deixando-se guiar pela oração de Cristo, sua fé não desfalecerá! Porque temos certeza da eficácia da oração de Jesus nosso Senhor por Pedro e seus sucessores, é que confiamos que, mesmo nas difiuldades e incertezas dos dias que correm, o Senhor não abandonará a Sua Igreja!

Assim, rezemos hoje pelo Papa, Sucessor de Pedro. E acompanhemos nossa oração com um gesto concreto: a esmola, o óbolo de São Pedro, aquela contribuição que no dia de hoje os católicos do mundo inteiro devem dar para as obras de caridade do Papa por todo o mundo. Assim, com as mãos e com o coração rezemos pelo Santo Padre: Que o Senhor nosso Deus que o escolheu para o Episcopado na Igreja de Roma, o ilumine à frente da Sua Igreja, governando o Povo de Deus, de modo que o povo cristão a ele confiado possa sempre mais crescer na fé e nos vínculos da comunhão na caridade de Cristo. Amém. 


sexta-feira, 29 de junho de 2018

Descobrir no Silêncio a Palavra

"Quem possui a palavra de Jesus, este em verdade, pode ouvir o Seu silêncio, a fim de ser perfeito". Esta afirmação de Santo Inácio de Antioquia, Bispo e Mártir do século I, é cheia de significado ainda hoje.

Estamos acostumados a buscar o Senhor na Sua Palavra. Obviamente, Palavra do Senhor está, de modo intenso e único, nas Escrituras Santas.
Mas, palavras do Senhor para nós, de certo modo, são também tudo quanto nos vai acontecendo e nos fazendo divisar a presença de Deus, que conduz a nossa vida. Dizemos que Deus nos falou quando conseguimos divisar um sentido, uma mensagem na realidade a nossa volta. Isso é um grande passo: aprender a escutar o Senhor nas Suas palavras, poder dizer: “Tudo me fala de Ti...”

Mas, e quando tudo parece sem sentido? E quando o aparente e tremendo absurdo desaba sobre nós ou sobre o mundo a nossa volta? Quando tudo parece silêncio de Deus para nós e, angustiados e quase sufocados, exclamamos: "Onde está Deus? Cristo meu, por que Te escondes?"

Também aí, é necessário aprender a escutar Aquele que nos fala na Palavra e nos fala no Silêncio: "Quem possui a palavra de Jesus, este em verdade, pode ouvir o Seu silêncio, a fim de ser perfeito" – este, o sentido da frase de Santo Inácio.
Quando escreveu tal pérola preciosa, ele mesmo estava sendo levado para Roma para ser jogado às feras. Inácio foi perfeito, pois soube escutar o Senhor na Palavra e no tremendo Silêncio ao ter diante de si a perspectiva tremenda de uma morte violenta nos dentes das feras...

A escuta perseverante da Escritura Sagrada, a oração silenciosa diante do Senhor, a prática piedosa e ungida dos sacramentos, a capacidade de calar o coração nos diversos acontecimentos e situações da existência, tudo isso vai nos ensinando a compreender a linguagem de Deus, seu sussurro, sua Palavra, que envolve também o momento silencioso da Cruz e da Sepultura do Cristo.
Eis: o Senhor nosso, Jesus Cristo, falou-nos pela palavra de Seus discursos, de Seus milagres, de Suas belíssimas parábolas. Mas, não esqueçamos que nos falou eloquentemente no silêncio da Sexta-feira Santa e do Grande Sábado da Sepultura.

Um dos grandes desafios dos cristãos de hoje é saber colher a Palavra do Senhor precisamente no Seu Silêncio.
Todo mundo – até os pagãos – falam de Deus quando ficam curados, quando conseguem emprego, quando realizam um desiderato... As seitas são peritas nisto...

Mas, e quando nada dá certo? E quando vêm o fracasso e a dor?
Que belo, que fecundo, que serviço inestimável o cristão pode prestar ao mundo aprendendo a colher a Palavra do Salvador nesses pesados silêncios e comunicá-la, como luz e esperança ao surdo, interesseiro, imediatista, superficial e agitado mundo de hoje...


quinta-feira, 28 de junho de 2018

Cristo para uma humanidade sedenta

“Se alguém tem sede, venha a Mim e beba! Conforme diz a Escritura: Do Seu seio jorrarão rios de Água viva” (Jo 7,37s).

Ainda hoje, em pleno início de terceiro milênio, era da globalização comercial, tecnológica e comunicativa, ainda quando tantos gritam a autossuficiência de uma razão presumidamente autônoma, emancipada de Deus, a humanidade encontra-se sedenta, tão carente e solitária, como sempre foi. Talvez hoje esteja menos disposta a reconhecer isto, com menos coragem e maturidade para enfrentar sua verdadeira sede, sua fundamental carência. E, no entanto, eis a multidão humana, seja de Nova Iorque, Los Angeles, Paris, Londres, Roma, Tóquio, Moscou, Pequim ou São Paulo, sedenta de um sentido, sedenta do Sentido, que somente Deus pode dar.

É visível que hoje, mais até que nos anos sessenta e setenta do século passado, há uma renovada sede de espiritualidade e transcendência. Muitos exultam por isso. Mas, é necessário precaução, porque a consciência dessa sede não é madura, não é correta nem bem orientada.
Fala-se abundantemente em “espiritualidade”, dando-se a esta palavra o sentido de uma busca qualquer e de qualquer modo, de uma experiência religiosa que alivie, console e dê uma sensação de segurança e bem-estar. É a reação à sociedade ocidental racionalista e presa ao materialismo. No entanto, essa busca de espiritualidade perceptível em nossos dias tende a ser interesseira, individualista e relativista. Veja-se, por exemplo, o caso das seitas, cristãs ou não: em cima desta sede elas deitam e rolam...
Uma experiência religiosa assim não tem nada a ver com a experiência cristã, que é abertura para o Deus que Se revelou em Jesus Cristo, cheio de amor, ternura e exigência. Para o cristianismo, a espiritualidade é o caminho pelo qual alguém sai do seu fechamento, do seu isolamento egoístico e abre-se para Jesus nosso Senhor, que nos interpela, converte, liberta e transfigura, dando-nos Seus sentimentos e atitudes de total abertura ao Pai e aos irmãos. E isto tudo na Comunidade de fé e seguimento chamada Igreja, querida, fundada e sustentada por Ele, sempre presente.
A espiritualidade genuinamente cristã liberta-nos de nós e de nossa solidão, abrindo-nos em Cristo para Deus e para os outros.

Ainda que com suas ambiguidades, a sede de transcendência e o retorno à moda da palavra espiritualidade são, em si, positivas. Pode ser o pressuposto, o ponto de partida de um diálogo, pode ser a manifestação da espera de um encontro, de um anúncio de Jesus Cristo, de Quem brota uma fonte de Água viva que jorra para a Vida eterna.

Estarão os cristãos à altura dessa missão de re-anunciar Jesus ao Ocidente pós-cristão e neo-pagão? Estará a vida religiosa atual capacitada a testemunhar a novidade nunca superada, que é Jesus nosso Senhor?
A resposta será positiva somente com uma condição: que se anuncie e proponha Jesus Cristo integralmente, na amplitude do Seu Mistério de verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Salvador único e universal. É necessária a coragem de anunciar sem receios nem compromissos relativistas que Nele, e só Nele, encontram-se a Vida e a Ressurreição, somente Nele, a esperança de Libertação e Plenitude para a humanidade e o mundo.

Alguém argumentará: o mundo pós-moderno é o espaço da coexistência, do diálogo, da tolerância, do respeito pelo diferente. Anunciar um Jesus assim, não seria ir contra a corrente? Não! Anunciar Jesus assim é acreditar Naquele que dizemos crer.
O grande pecado dos cristãos atuais é o medo de dizer claramente no que acreditamos, é o falso respeito humano, que nos impede de ser e viver e falar como quem tem somente em Cristo a vida e a esperança.
O grande pecado de muitos cristãos doutos do nosso tempo é querer um cristianismo politicamente correto! O verdadeiro diálogo e o respeito fecundo pelos outros não se manifestam na covardia de proclamar com clareza, mas sim no amor com que se proclama.
Amor – eis o nome cristão do diálogo e da tolerância! Queremos proclamar o mistério de Cristo integralmente, como a Igreja sempre o creu, celebrou e anunciou. A novidade para hoje é que tal proclamação deve ser paciente, respeitosa de quem não pensa como nós e não deseja tornar-se um de nós.

Amor, testemunho, coerência de vida, respeito pelos outros, diálogo, convivência, mas sem arredar um passo daquilo que é a Verdade de Cristo, Verdade da Vida.
Atrairemos muitos ou poucos? Não importa. Importa que quem nos encontre, encontre verdadeiramente Aquele que sacia verdadeiramente a sede do coração humano.


Coisas ocultas, coisas reveladas...

"As coisas ocultas pertencem ao Senhor nosso Deus, mas as reveladas são para nós e nossos filhos para sempre" (Dt 29,28).– Que palavras, estas da Escritura Santa; sempre me comoveram!
Neste mundo, nesta vida há tantas realidades que não conseguimos compreender; tanto nos acontece, ocorre ao nosso redor, e nos deixa com a sensação de vazio, de absurdo, de total falta de sentido! São tantos os por quês e os para quês! Tantas perguntas; tão parcas respostas! Pobres filhos de Adão e filhas de Eva!

Nem toda a ciência, nem toda filosofia, profunda ou rasa, de consumo, nem todo o progresso tecnológico, conseguirão elucidar o mistério da existência e os tantos enigmas que a povoam! Não me refiro aos pequenos mistérios das incríveis leis da natureza... Esses são mistérios menores, muitos deles decifráveis cedo ou tarde...
Refiro-me àqueles grandes, indecifráveis: Por que existimos? Para que vivemos? Qual o sentido de tudo? Por que a dor, o amor, a sede danada de felicidade, realização e plenitude? Qual o sentido último da história humana? Qual o sentido daqueles que mal nasceram e já morreram ou, ainda nascituros, foram arrancados criminosamente do ventre materno? Qual o sentido dos que passam a vida sofrendo, alquebrados pelas tremendas vicissitudes da existência? Por quê? para quê? Que sentido?

E olhe, que não adianta, covardemente, fazer de conta que tudo isto não nos afeta, não é conosco e que podemos, de mãos no bolso e assobio nos lábios, fingir que a vida se resolve na própria vida e que conformar-se com uma vida só para esta vida nos satisfaz e é sinal de maturidade ou sabedoria... 
Isto é pura conversa mole, é cinismo... Quem desejar viver a vida na superficialidade do aqui e agora, que a viva; quem renunciar a procurar um sentido e escolher fugir de pensar nele e procurá-lo, que o faça...
Cada um pode ser dono do seu vazio, do seu absurdo, da sua fuga covarde de enfrentar de frente os desafios de existir com um coração que tem sede de infinito... Ninguém tem o direito de forçar ninguém a levantar os olhos para os montes (cf. Sl 121/120,1).

Mas, que consolo saber que há um Deus nos Céus:
"As coisas ocultas pertencem ao Senhor nosso Deus!"– Ele tudo sabe, Ele tudo pode, Ele tudo tem nas Suas mãos benditas. E isto me basta! E eu, que nem criança manhosa, descanso Nele, repouso no Seu coração divino, amoroso e sábio e me abandono docemente nas Suas mãos carinhosas.
Não sei; Ele sabe.
Não posso; Ele pode.
Não compreendo. Ele tem tudo em Suas mãos providentes.
"As coisas ocultas pertencem ao Senhor nosso Deus," não a ti, homem teimoso e orgulhoso, que gostas de brincar de ser Deus e não passas de um ídolo bobo!

"Mas, as reveladas são para nós e nossos filhos para sempre!"  - Eis! O que realmente importa que saibamos, o que realmente nos salva e basta para dar sentido à vida, o Senhor nos revelou, são para nós e para que as ensinemos àqueles que virão depois de nós!

O Senhor não nos revela aquilo que não nos pertence. O Senhor não nos dá satisfações! Revela-nos o essencial, o suficiente para que compreendamos que Ele é presença, que é amor, que é Deus fiel. Basta!
Aquilo que nos revelou não é para matar nossa curiosidade, mas para nos comprometer com Ele, no seguimento da Sua santa vontade. Seus preceitos não são um fardo, mas setas que indicam o caminho da vida e descortinam, pouco a pouco, para quem se põe a segui-Lo, o sentido verdadeiro, simples e profundo da existência.
Por isso mesmo, valem aquelas duas bênçãos presentes no judaísmo, e que tanto me comovem:

a primeira: "Bendito sejas Tu, Senhor nosso Deus, que guardas os segredos!"

a segunda: "Bem-aventurados somos nós, ó Israel, pois a nós foram reveladas as coisas que agradam a Deus!" (Br 4,4)...


terça-feira, 26 de junho de 2018

O homem, imagem de Deus em Cristo Jesus nosso Senhor


O homem foi criado à imagem de Deus. A afirmação está em Gn 1,26s: "Deus disse: 'Façamos o homem à Nossa imagem, como Nossa semelhança..."Deus criou o homem à Sua imagem, à imagem de Deus Ele o criou, homem e mulher Ele os criou".
Não é fácil determinar o sentido exato desta importantíssima afirmação da nossa fé, olhando somente o Antigo Testamento. Levando em conta apenas as Escrituras dos judeus, a ideia do homem imagem de Deus teria dois significados:

(1) O homem é imagem de Deus porque participa do Seu poder e domínio sobre o restante da criação e
(2) porque é o único ser deste mundo com inteligência e liberdade, podendo, assim, responder a Deus e com Ele dialogar, deixando-se amar e amando a Deus.

Uma coisa é certa: imagem e semelhança não quer dizer de modo algum que Deus e o homem possuem coisas em comum! Lembremo-nos de que para as Escrituras, Deus é totalmente diferente de tudo quanto existe: Ele não pode sequer ser imaginado, Ele é transcendente, ninguém pode compreendê-Lo, Ele habita numa luz inacessível! Deus é o Criador; o homem não passa de uma simples criatura: “Os grãos que se encontram dentro da romã não podem ver os objetos que estão fora de sua casca, pois estão no interior. Assim também o homem, fechado, como toda a criação, na mão de Deus, não pode contemplar a Deus. Onipotente, Ele contém tudo: as alturas dos Céus, as profundezas dos abismos, os confins da terra estão em Sua mão. É por Ele que falas, meu amigo, é por Ele que respiras e não o sabes! Teu espírito está cego e teu coração endurecido. Mas, se quiseres, podes sarar. Confia-te ao médico. Ele abrirá os olhos de tua alma e de teu coração. Quem é o médico? Deus, por Sua Palavra e Sua sabedoria” (Teófilo de Antioquia, séc. II).

Contudo, somente no Novo Testamento, à luz de Cristo, é que será plenamente revelado o significado de ser “imagem de Deus”. Quem é a verdadeira imagem de Deus? É o Cristo morto e ressuscitado: "Ele é a imagem do Deus invisível, o Primogênito de toda criatura, porque Nele foram criadas todas as coisas, nos Céus e na terra, as visíveis e invisíveis" (Cl 1,15s). Agora sim, à luz de Cristo sabemos o que significa ser imagem de Deus: desde o princípio, ao nos criar, o Pai, que tudo sabe e para Quem tudo é presente, tudo é hoje, tudo é agora, tinha diante dos olhos o Seu Filho morto e ressuscitado. Nosso modelo, nossa forma, nosso molde, é o Cristo glorificado! Ele é o destino de todo ser humano: seremos nós mesmos quanto mais formos à imagem do Cristo glorioso, que é a imagem do próprio Deus. Quanto mais formos parecidos com Jesus imolado e ressuscitado, mais seremos aquilo para que fomos criados! Cristo é a forma, o molde, a medida e a realização de todo ser humano, já que fomos criados através Dele e para Ele!

No Antigo Testamento, sabíamos que éramos imagem de Deus, mas não sabíamos o que isso significava concretamente; agora, com Cristo, sabemos que todo o nosso ser, corpo e alma, é imagem do Criador, porque criado em Cristo Jesus. A ideia é muito profunda e bela: o ser humano somente encontra sossego para o seu coração, somente encontra sua razão ultima de ser e de existir, e somente se compreende a si mesmo à luz do Cristo morto e ressuscitado! Cristo é a medida, a razão de ser e o destino de todo ser humano que vem a este mundo! Não ser como Ele é não se humanizar totalmente, é não chegar a ser aquilo para que foi criado!

Há ainda uma outra observação importante: se a imagem do Deus invisível é o Cristo morto e ressuscitado e se o ser humano é imagem de Deus em Cristo, então, podemos dizer que o homem é imagem de Deus em todo o seu ser, corpo e alma. A imagem de Deus não consiste simplesmente em sermos inteligentes e livres, mas em termos a mesma natureza humana, isto é, o mesmo corpo, a mesma alma, os mesmos sentimentos e afetos do Cristo Jesus nosso Senhor. É Ele o Novo Adão (cf. 1Cor 15,45ss) é Ele o fundamento da fraternidade e da unidade de toda a humanidade! É importante insistir sobre esta realidade, sobretudo atualmente, quando existe uma desvalorização do corpo humano, visto somente como uma “coisa” que pertence à pessoa e não como uma realidade personalizada, uma dimensão do meu eu, chamada também a ser glorificada na Vida eterna. Somos imagem de Deus em todo o nosso ser e chamados à Glória em todo o nosso ser. Estaremos, um dia, com Cristo, em corpo e alma porque é assim que somos imagem de Deus e assim é que somos amados por Ele.

Este realidade também nos recorda o dever de honrar o corpo humano, seja no que diz respeito ao pudor, à decência e à reta vivência da sexualidade, como também no que diz respeito à saúde, nutrição e demais cuidados com o corpo humano. Toda violência, injustiça, fome, etc, ferem a imagem de Deus impressa no ser humano.

Concluindo: seremos plenamente nós mesmos quanto mais formos parecidos com Cristo. Isto será pleno quando, após a morte, no nosso corpo e na nossa alma, formos transfigurados pelo Espírito Santo, na imagem bendita do Cristo Jesus nosso Senhor.

Cristo criando o homem.
Observe que Adão tem as feições do Cristo Senhor!

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Por uma existência verdadeira

O homem foi criado por Deus e para Deus.
Isto está inscrito no mais íntimo da sua estrutura criatural.  Sua sede do Eterno não é facultativa, não se trata de uma escolha...
Sem uma referência ao Transcendente, ao Absoluto, o ser humano pode até experimentar, por um tempo, num nível mais superficial, uma sensação de liberdade e leveza existencial. Mas, não tarda muito, e tal ilusão se desfaz. Resta-lhe o vazio existencial, a contínua fuga das verdadeiras questões sobre o sentido da existência, do amor, da dor, das renúncias, das limitações, do sofrimento, da solidão e, finalmente, da morte. É impossível uma resposta satisfatória para estas questões sem abertura a uma Transcendência! É também impossível uma vida verdadeiramente humana, profunda, se fechada para estas questões, pois elas batem à nossa porta o tempo todo, queiramos ou não, de modo consciente ou inconsciente. Viver sem responder a tais questões, sem com elas se preocupar, não é viver, é sobreviver...

O homem que se fecha cinicamente a tais questões de modo consciente e metódico, sufocando-as de caso pensado, vive no pecado, naquela situação que a Escritura chama de "homem carnal" ou "mundo".
Ora, entregue ao pecado, o homem, paulatinamente,  perde a sabedoria, isto é, a capacidade de ver na perspectiva de Deus. Assim, deixa de ver a essência das coisas, da criação, e o sentido último dos acontecimentos e vicissitudes da vida. Vivendo no pecado, de modo carnal, a criação e as coisas já não são, para alguém assim, lugar de encontro e comunhão com Deus, mas âmbito de tentação, de escravidão, angústia, não-sentido e de alienação.

Observe-se, no entanto, que mesmo aqueles que não chegam a crer, mas vivem à procura e teimam em perguntar pelo Sentido, reconhecendo a existência como ser-diante-de-um-Mistério-que-nos-ultrapassa, esses não podem ser chamados de “carnais” ou “mundanos”...

Uma coisa é certa: só uma existência verdadeiramente aberta para Deus – consciente ou inconscientemente – é realmente plena, livre, límpida nas relações consigo mesma, com os demais e com a criação toda. Foi para esta liberdade que Cristo, Deus feito homem, nos libertou!


domingo, 24 de junho de 2018

A Igreja que nasce da Eucaristia


Neste Domingo, Dia do Senhor, Dia da Assembleia eucarística, dia de Igreja, gostaria de oferecer algumas ideias teológicas sobre a Eucaristia, tomando como ponto de referência a Introdução da Encíclica de São João Paulo II, de 2005, Ecclesia de Eucharistia (A Igreja que nasce, que se faz da Eucaristia), inspirando-me nele e aprofundando suas intuições.

“A Igreja vive da Eucaristia” (EE 1). É uma frase densa, rica, ousada. O texto, aqui, nada mais faz que retomar a grande Tradição da Igreja, desde os Santos Padres dos primeiros séculos do cristianismo até o Concílio Vaticano II. Mas, por que a Eucaristia (= a celebração eucarística, a missa) é tão importante? Porque ela é o núcleo mesmo do mistério da Igreja! Vejamos.

O que celebramos na Ceia do Senhor? O memorial da entrega que Jesus fez de Si ao Pai por nós: “Quando, pois, chegou a hora, em que por Vós ó Pai, ia ser glorificado, tendo amado os Seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. Enquanto ceavam, Ele tomou o pão...” (Oração Eucarística IV). Portanto, é a entrega amorosa de toda a Sua existência humana que tornamos realmente presente, como memorial, em cada Celebração eucarística: “Celebrando, agora, ó Pai, a memória (= o memorial) da nossa redenção, anunciamos a Morte de Cristo e Sua Descida entre os mortos, proclamamos a Sua Ressurreição e Ascensão à Vossa Direita, e, esperando a Sua Vinda gloriosa, nós Vos oferecemos o Seu Corpo e Sangue, Sacrifício do Vosso agrado e salvação do mundo inteiro” (Oração Eucarística IV).

Quando dizemos que na Eucaristia torna-se presente o Sacrifício da cruz, é necessário ter muito cuidado para não reduzir este “sacrifício”, este “fazer sagrado” de Cristo simplesmente ao que aconteceu na Sexta-feira Santa! A Cruz do Senhor foi consequência e cume, “até o fim, até o extremo” (Jo 13,1) de todo um modo de viver: Ele Se fez carne, fez-Se fragilidade, fes-Se limitado, humano igual aos humanos; Ele viveu a nossa vida pequena, rotineira, tão igual... Ele empenhou a Sua existência humana no anúncio do Reino do Pai: proclamou o Reino com Sua palavra, mas também com Sua própria Pessoa, Seu modo de viver, pobre, despojado, aberto, Sua solidariedade com toda dor e sofrimento humanos, Sua denúncia de tudo quanto era hipocrisia religiosa e política, Suas opções, Seu compromisso inabalável e absoluto somente com o Pai e, por amor ao Pai, com a vida da humanidade e com o mundo... Todo este modo de viver de Jesus nosso Senhor foi sacrifical, foi um “fazer sagrado”, uma oferta de Si mesmo a Deus, que culminou com Sua Paixão e Morte de cruz. Então, ao dizermos que na Eucaristia torna-se presente o Sacrifício da Cruz, queremos dizer que toda a existência humana de Jesus, vivida como entrega de amor ao Pai por nós, até a morte de cruz, ali está presente! A Eucaristia é, pois, memorial da nossa redenção! Ora, se é todo o caminho de Jesus para a nossa salvação que ali se faz presente - Seu modo de ser e de viver, de pensar e de agir, Suas opções e Seu ideal, ou seja, tudo quanto o Filho de Deus viveu na nossa natureza humana -, pode-se, então, compreender porque “na Celebração eucarística está contido todo o tesouro espiritual da Igreja” (EE 1)! A Encíclica cita o Vaticano II: “O Mistério eucarístico é a fonte e o centro de toda a vida cristã” (Lumen Gentium 11) – ali está toda a existência humana do Cristo, Sua Morte e Ressurreição, Sua Ascensão e o dom do Espírito, ali, sobre aquela mesa-altar, está a certa esperança e já o penhor, a pregustação da Ressurreição, do Mundo que há de vir, quando Cristo, nossa vida aparecer em Glória! Por isso, a Eucaristia contém todo o tesouro espiritual da Igreja: ela nos compromete com um modo de ser, de viver e de esperar: o modo de Jesus Cristo nosso Senhor! Jamais a Eucaristia pode ser compreendida de modo intimista, buscando simplesmente um gozo espiritual: ela é compromisso-participação no caminho de Jesus neste mundo, no Seu modo de viver, de sofrer e de morrer, de ressuscitar e entrar na Glória do Pai!

O mesmo devemos compreender quando o texto recorda, seguindo a fé constante da Igreja, que a Eucaristia é celebração do Mistério pascal, que é o centro de nossa fé (cf. EE 3). Pensemos bem: Quando se deu a Páscoa de Jesus? Somente na Sua morte? Não! Toda a Sua existência foi pascal, foi um passar deste mundo para o Pai. Jesus viveu em páscoa, viveu em passagem: “Saí do Pai e vim ao mundo; agora deixo o mundo e volto ao Pai” (Jo 16,28). Toda a Sua existência humana foi um ir caminhando, como homem, rumo ao Pai: Ele foi amadurecendo, crescendo “em sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus” (Lc 2,52). Este caminho pascal de Jesus para o Pai, chegou ao máximo com Sua Morte, pela qual Ele deixou definitivamente este nosso modo de existir e, pela Sua Ressurreição, entrou na plenitude do Pai, sendo totalmente vivificado de Glória divina na Sua natureza humana pelo Espírito vivificador.

Pois bem, celebrar a Eucaristia, é entrar nesta impressionante, misteriosa e maravilhosa dinâmica de Cristo Jesus, é fazer da vida, com Ele, Nele e como Ele, uma passagem do mundo para o Pai, é viver em Páscoa! Celebrar a Eucaristia é nunca nos acomodar, nunca nos aburguesar num apego parasitário a este mundo, é tomar consciência em Jesus, que somos peregrinos para o Pai e, portanto, livres e libertadores, tendo somente o Reino do Pai como nosso horizonte e compromisso absoluto! Nosso destino é irmos passando, até sermos totalmente glorificados, como Jesus, o Cristo de Deus. Por isso, a Encíclica recorda que, ao participarmos da Eucaristia, comungando as coisas santas, o Corpo e Sangue do Cordeiro imolado, entramos em comunhão com a “Carne (= com toda a existência humana) vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo” (EE, n. 1). Como Jesus, nos dias de Sua vida entre nós, guiado pelo Espírito, foi fazendo de Sua existência humana uma passagem para o Pai, até entrar na Glória pela ação deste mesmo Espírito, assim também nós, seremos vivificados pela ação deste Espírito. Tal vivificação é já dada realmente e realmente pregustada na Eucaristia, corpo (=existência humana) do Senhor imolado (= morto e ressuscitado).

Então, para resumir: celebrar a Eucaristia, longe de ser um gesto meramente ritual, é um compromisso com um modo de viver e conviver, é um gesto cheio de consequências existenciais bem concretas:

(1) É entrar em comunhão com o Sacrifício de Cristo, com toda a Sua vida e Seu modo de viver, fazendo, com Ele e Nele, de nossa vida um “fazer sagrado” para o Pai: “Se vivemos, é para o Senhor que vivemos, e se morremos é para o Senhor que morremos. Cristo morreu e reviveu por todos para ser o Senhor dos mortos e dos vivos” (Rm 14,8.9);

(2) É também entrar em comunhão com a Páscoa do Senhor, isto é, fazer de toda a vida, até a morte, uma contínua passagem deste mundo para o Pai: passagem no dia a dia, passagem nas atitudes, passagem no modo de se relacionar com os bens materiais, passagem nas nossas relações com os outros... “Nós não temos aqui na terra cidade permanente, mas estamos à procura da cidade que está para vir! (Hb 13,14).

Ainda na sua Introdução, a Encíclica de São João Paulo II alude a três elementos bastante significativos:

Primeiro. Em cada Celebração eucarística de rito latino, o celebrante, após a consagração, exclama: “Eis o Mistério da fé!” Que “mistério” é este? São Paulo refere-se a ele: “Por revelação me foi dado a conhecer o Mistério... o mistério de Cristo. Às gerações e aos homens do passado este Mistério não foi dado a conhecer, como foi agora revelado aos Seus santos apóstolos e profetas, no Espírito: os gentios são co-hedeiros, membros do mesmo Corpo e co-participantes da Promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho” (Ef 3,3-6). O mistério é todo o desígnio de Deus, todo o Seu amoroso desígnio de salvação, de reconciliar consigo mesmo toda a humanidade, judeus e pagãos, em Cristo Jesus; aquilo que chamamos em teologia de “economia da salvação”. Por isso, o mesmo Apóstolo afirma a respeito de Cristo morto e ressuscitado por nós todos: “Seguramente, grande é o Mistério da piedade: Ele foi manifestado na carne (= na nossa natureza humana), justificado no Espírito (= ressuscitado por obra do Pai na potência do Espírito Santo), aparecido aos anjos (= feito Senhor, acima do anjos, na glória), proclamado às nações, crido no mundo, exaltado na Glória” (1Tm 3,16). Então, o “mistério da fé”  é o Cristo, por nós feito homem, por nós entregue até a morte, por nós imolado, por nós ressuscitado, por nós elevado aos Céus, por nós doador do Espírito, por nós, um Dia, vindo na Glória! O “Mistério da Piedade” é toda a história da salvação; e toda ela se concretiza no Cristo imolado e glorificado, o mesmo oferecido em Sacrifício e recebido em comunhão em cada Eucaristia. Por isso, a Encíclica recorda: “Mistério da fé. Quando o sacerdote pronuncia estas palavras, os presentes aclamam: ‘Anunciamos, Senhor, a Vossa Morte e proclamamos a Vossa Ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!’” (EE 5). É todo este Mistério, este desígnio de salvação que se concentra no Pão e no Vinho consagrados e ofertados ao Pai como adoração e louvor e, a nós, como alimento de salvação.  A Encíclica, então, tem razão ao afirmar: na Eucaristia “a Igreja, ao mesmo tempo em que apresenta Cristo no mistério da Sua Paixão, revela também o seu próprio mistério: Igreja que nasce da Eucaristia” (EE 5) porque nasce da entrega do seu Senhor no Tríduo Pascal. É este Mistério de Salvação que a Igreja celebra e torna sempre presente novamente ao longo dos séculos, como memorial do Senhor, até que Ele venha! Ante tão grande Mistério da salvação, cabe bem recordar as palavras da liturgia judaica: “Devemos celebrar, louvar, glorificar, engrandecer, exaltar, honrar, bendizer, cantar hinos e prclamar vencedor Aquele que realizou estas coisas com os nossos pais e também conosco! Digamos, pois, diante Dele: Aleluia!”

Segundo. O Papa, na Encíclica, recorda também que “contemplar o Cristo implica saber reconhecê-Lo onde quer que Ele Se manifeste, com as Suas diversas presenças, mas sobretudo no Sacramento vivo do Seu Corpo e do Seu Sangue” (EE 6). A afirmação tem um significado importante: se é verdade que o Cristo encontra-Se presente de modo máximo no sacramento da Eucaristia, é também verdade que este santíssimo Sacramento não esgota a presença do Senhor. Cristo está presente no pobre, no faminto, no sofredor, no injustiçado, no enfermo, no descriminado, nos abandonados e esquecidos do mundo: “’Senhor, quando foi que Te vimos com fome e Te alimentamos, com sede e Te demos de beber? Quando foi que Te vimos forasteiros e Te recolhemos ou nu e Te vestimos? Quando foi que Te vimos doente ou preso e fomos Te ver?’ Ao que lhes responderá o Rei: ‘Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses Meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes’” (Mt 25,37-40). E ainda: “Onde dois ou três estiverem reunidos em Meu Nome, ali estou Eu no meio deles” (Mt 18,20). Por fim: “Quem vos ouve, a Mim ouve; quem vos rejeita, a Mim rejeita” (Lc 10,16). É assim: Cristo está presente no irmão, na comunidade reunida em Seu Nome, nos Seus ministros, na inteira Igreja. Reconhecê-Lo presente na Eucaristia exige que O reconheçamos também nestas outras formas de presença, pois elas estão interligadas. Como já recordei no artigo passado, a Eucaristia não deve e não pode servir de desculpas para um individualismo miserável e para uma alienação que nada tem de cristão! O Cristo presente na Eucaristia é o mesmo presente nas estradas da vida e do mundo! Que nós saibamos abrir os olhos e reconhecê-Lo (cf. EE 6; Lc 24,31) não somente ao partir do Pão, mas também no menino de rua, no enfermo, no irmão de comunidade e em todo aquele que se torna para nós um apelo de Deus!

Terceiro. Finalmente, ainda na Introdução, a Encíclica evoca a dimensão cósmica da Eucaristia: ela é celebrada no grande altar do mundo universo (EE 8): “a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo. Une o Céu e a terra. Abraça e impregna toda a criação. O Filho de Deus fez-Se homem para, num supremo ato de louvor, devolver toda a criação Àquele que a fez surgir do nada”. A ideia é muito bela: Quem se oferece ao Pai na Eucaristia é o Filho feito homem, Ele que entrou no nosso mundo, na nossa história, na nossa vida. Ele, na força do Espírito Santo, assume o pão e o vinho com água – elementos do nosso mundo, do nosso cosmos - e os transfigura no Seu Corpo e no Seu Sangue. Assim, em cada Celebração, é anunciada e realizada em mistério a glorificação do universo! A Eucaristia proclama e testemunha que Deus ama o mundo, este mundo material e este mundo humano, tão cheio de contrastes, sombras, confusões, mas também de amor, sonhos, possibilidades e ideais! O Cristo que entrou neste mundo e o assumiu por amor, “devolve ao Criador e Pai toda a criação redimida: este é o Mistério da Fé que se realiza na Eucaristia: o mundo saído das mãos de Deus criador volta a Ele redimido por Cristo” (EE 8). Mais, uma vez: celebrar a Eucaristia compromete-nos em cheio com a construção de um mundo novo, germe do Reino que um dia aparecerá com Cristo, nossa Vida.

Pensando nestas realidades, como negar que o Sacrifício eucarístico seja o centro da vida cristã? Como manipular ou avacalhar a Divina Liturgia? Como deturpar o significado profundo com o qual a Igreja sempre o celebrou? Sim: a Eucaristia é a fonte, a expressão e o destino mesmo da vida da Igreja e do mundo, quanto nela nos é dado celebrar e tornar presente o Mistério da Fé, o inteiro Desígnio salvífico do Senhor Deus; é-nos dado, já na terra, antecipar o mundo que já de vir, a consumação do Reino de Deus! Sim, no altar, já participamos realmente das coisas do Céu!



sábado, 23 de junho de 2018

Filhos de Deus, herdeiros da ressurreição


Um texto de Orígenes (185-243), sacerdote e um dos maiores teólogos do cristianismo dos inícios. Os espíritas e outros espiritualistas juram que Orígenes ensinava a reencarnação. Por este pequeno texto já dá para ver o engano... Pode ter certeza: Orígenes e a Igreja nunca, jamais, em tempo algum ensinaram esta doutrina, que é totalmente alheia ao cristianismo. Com a palavra, Orígenes de Alexandria

No Último Dia, a morte será vencida. A Ressurreição de Cristo, após o suplício da Cruz, contém misteriosamente a ressurreição de todo o corpo de Cristo. 

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Observação minha:
Aqui há duas coisas importantes:
(1) O corpo com o qual Cristo ressuscita é aquele mesmo que sofreu, no dizer de Orígenes, o “suplício da Cruz”. Ou seja, não se trata de uma “ressurreição” fantasmagórica ou simplesmente “espiritual”! Se se perguntasse aos judeus do tempo de Cristo e do início do cristianismo o que era a ressurreição, eles diriam com clareza e simplicidade: após a morte, a alma fica num estado de bem-aventurança ou de tormento e, no Dia do Senhor, os corpos ressuscitarão e participarão do mesmo destino das almas: glória ou condenação. Para judeus e cristãos, o corpo dorme, a alma não! O corpo não será para sempre destruído, mas será ressuscitado no final dos tempos.
(2) Orígenes era cristão e, para um cristão, a ressurreição que os judeus esperavam é o próprio Cristo: na Ressurreição de Cristo nós ressuscitaremos! Porque Ele ressuscitou, nós venceremos a morte! Nossa ressurreição é participação na Ressurreição Dele, dar-se-á na força da Sua Ressurreição! Por isso, o Autor afirma que a Ressurreição de Cristo “contém misteriosamente a ressurreição de todo o corpo de Cristo”,  isto é, da Igreja, dos seus membros. Por isso mesmo, a Páscoa de Cristo é nossa salvação, é nossa festa, é nossa esperança!
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Tal como o corpo visível de Cristo é crucificado, amortalhado e depois ressuscitado, assim o Corpo inteiro dos santos de Cristo é com Ele crucificado e já não vive em si mesmo.

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Observação minha:
Veja, que esta é a fé católica e apostólica desde as origens: vivemos em Cristo já agora, vamos, no nosso dia-a-dia, morrendo e vivendo com Cristo nos apertos, alegrias, provas, vitórias, derrotas, tenteções e superações desta vida, até quando morreremos em Cristo um dia e, com Ele, ressuscitaremos no Último Dia!
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Mas, quando chegar a hora da ressurreição do verdadeiro corpo de Cristo, do seu corpo total, então os membros de Cristo, hoje semelhantes a ossos secos, juntar-se-ão, articulação com articulação (Ez 37,1s), cada um encontrando o seu lugar e “todos juntos constituirão um homem perfeito à medida da plenitude do corpo de Cristo” (Ef 4,13).
Então a multidão de membros será um corpo, pois todos pertencem ao mesmo corpo (Rm 12,4).

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Observação minha:
Quando chegará a “hora” da ressurreição do verdadeiro corpo de Cristo? No Dia de Cristo, no final de tudo!
Agora, cada ser humano que morre no Senhor, tem sua alma transfigurada na Glória de Cristo imediatamente depois da morte, passando pela purgação de suas faltas,  se disso tiver necessidade. A não ser que, tendo vivido fechado para Cristo, O perca por toda a eternidade...
Mas, no Dia do Senhor, todos ressuscitarão em seus corpos, para a Vida plena de Cristo ou para a perdição eterna. Aí, então, todo o corpo de Cristo, que é a Igreja, estará pleno, porque plenamente glorificado no Espírito de Glória do próprio Cristo glorioso.
Esta é a nossa fé, a fé católica e apostólica, sem tirar nem pôr!


sexta-feira, 22 de junho de 2018

Homilia para a Solenidade da Natividade de São João Batista

Is 49,1-6
Sl 138
At 13,22-26
Lc 1,57-66.80

Além da Virgem Maria Mãe de Deus, Nossa Senhora, de nenhum outro santo a Igreja celebra o nascimento, a não ser São João, chamado Batista, Batizador. Dele, Jesus fez o maior elogio jamais feito pelo Salvador a alguém: “Em verdade vos digo que, entre os nascidos de mulher, não surgiu nenhum maior que João, o Batista” (Mt 11,11).Por isso, caríssimos, a hodierna solenidade!

Que lições, que meditações, que exemplos poderíamos colher nesta Festa, tendo escutado a Palavra que nos foi anunciada? Sugiro-vos três, que alimentem o coração, afervorem o desejo de colocar-se ao serviço do Senhor e nos conduzam à herança eterna.

Primeiro. A primeira leitura da Liturgia nos fez escutar a profecia de Isaías, colocando as palavras do profeta na boca de João Batista: “O Senhor chamou-me antes de eu nascer, desde o ventre de minha mãe Ele tinha na mente o meu nome... fez de mim uma flecha aguçada e disse-me ‘Tu és Meu servo, em quem serei glorificado’”E o salmo responsorial fez ecoa tão bela ideia: “Senhor, Vós me sondais e conheceis. Fostes Vós que me formastes as entranhas/ e no seio de minha mãe Vós me tecestes./ Até o mais íntimo me conheceis;/ nenhuma sequer de minhas fibras ignoráveis,/ quando eu era modelado ocultamente,/ era formado nas entranhas subterrâneas!”O que aparece aqui, caríssimos em Cristo, é que viemos a este mundo não por acaso, não sem um propósito. Somos todos fruto de um sonho de Deus, fomos todos misteriosamente chamados à vida: o Senhor pensou em nós, nos chamou, nos plasmou – e aqui estamos! O nascimento que hoje celebramos, do filho de Zacarias e Isabel, foi fruto do desígnio amoroso do Pai, que pelo Filho Jesus e para o Filho Jesus, na força do Espírito Santo, plasmou João. Por isso seu nome é tão verdadeiro: “Iohanah”, em hebraico: Deus dá a graça! Ele mesmo, João, já é uma graça de Deus para seus pais e para todos os que esperavam a salvação de Israel.

Hoje, quando um mundo insensível e descrente já não reconhece que a vida é um mistério de amor, é um chamado de Deus, quantos são abortados, quantos deixados de modo indigno e imoral no frio congelamento dos laboratórios de procriação artificial: lá esquecidos, lá manipulados em inaceitáveis experiências pseudocientíficas! Nós, caríssimos, que ouvimos a Palavra santa de Deus; nós, que nos alegramos com este nascimento, nunca esqueçamos: toda vida humana é sagrada do primeiro ao último instante do nosso caminho terreno. É imoral, perverso e desumano um governo que reduz a questão do aborto a problema de “política pública”. Um dia esses senhores irão prestar contas a Deus. Será mesmo que Deus aceitará este argumento, que não passa de disfarce para matar? É imoral, em nome do lucro, aviltar seres humanos, jogando-os na pobreza, é imoral lucrar com a guerra, com o tráfico de drogas, com a prostituição, com a imoralidade, é imoral tudo quanto fere a dignidade da vida humana! Que o Senhor nos ajude a defender a vida, a gritar por ela! Que o Senhor também nos dê a sabedoria para descobrir e experimentar que a nossa vida – por quanto pobre e pequena – também e preciosa! Que hoje eu me pergunte: Qual o propósito da minha existência? Já o descobri? Já me conformei a ele? Vosso sou, Senhor, de Vós nasci e para Vós nasci! Que quereis fazer de mim?

Segundo. Ainda que a vida nossa seja fruto do amor do Senhor, isso não significa facilidades. João deveria preparar o caminho do Messias, do Cristo de Deus. E isto iria custar-lhe: “Eu disse: ‘Trabalhei em vão, gastei minhas forças sem fruto, inutilmente; entretanto o Senhor me fará justiça e o meu Deus me dará recompensa’”O grande desafio da nossa vida de crentes é viver na presença de Deus, é ser fiel à Sua santa vontade e à missão que Ele nos confiou. Ser fiel à missão custou a João: a dureza do deserto, as incompreensões dos inimigos, a trama de Herodíades, a dificuldade de perceber a vontade Deus (basta recordar João perguntando a Jesus: “És Tu aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro?”- Mt 11,3) e, finalmente, o aparente abandono, o aparente absurdo do silêncio de Deus, na solidão e na morte naquele cárcere. O que manteve João fiel até o fim? A confiança no Senhor, a capacidade de deixar-se guiar por Deus, sem querer ele mesmo controlar sua vida! Grande João! Fiel João! Pobre de Deus, João! Que exemplo para nós, tanta vez tentados a fazer da vida o que bem queremos, como se nascêssemos de nós mesmos e vivêssemos para nós mesmos! “Quer vivamos quer morramos, pertencemos ao Senhor! (Rm 14,8)”

Terceiro. Certa vez São Paulo escreveu: “Nenhum de nós vive para si...” (Rm 14,7)Desde o ventre materno, o Senhor chamou João para ser o que prepara o caminho, o que vem antes, o “pré-cursor” Toda a sua existência foi “precursar”! No terceiro evangelho isso aparece de modo comovente: anuncia-se o nascimento de João e depois o de Jesus; narra-se a natividade de João e a seguir a do Messias; apresenta-se o ministério de João e, após sua prisão, o do Salvador; finalmente, narra-se a morte de João, prenúncio da morte do nosso Senhor! Eis! Não é fácil não viver para si, não é fácil deixar que Outro seja o centro! E, no entanto, como diz a segunda leitura, “João declarou: ‘Eu não sou aquele que pensais que eu seja! Depois de mim vem Aquele, do qual nem mereço desamarrar as sandálias’”; “É necessário que Ele cresça e eu diminua!”Santo profeta João Batista: sendo humilde, foi o maior dos nascidos de mulher; sendo totalmente preso à sua missão de modo fiel e constante, foi livre de verdade; sendo todo esquecido de si e lembrado de Deus, foi maduro e feliz! Por isso mesmo, seu nome foi verdadeiro e traduziu perfeitamente seu ser e sua missão: João, Iohanah: Deus dá a graça. E a graça que, para seus pais, foi João no seu nascimento, na verdade era outra graça: a graça que Deus dá é Jesus, o Messias; graça que João anunciou com seu nascimento, com sua vida, com sua pregação e com sua morte!

Que este grande profeta, o maior do Antigo Testamento, do Céu interceda por nós, nascidos do Novo Testamento e, por isso, maiores que João, o Grande Precursor! Amém.

Na tradição oriental,
João é o anjo da aliança (cf. Ml 3,1)

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Esclarecimentos sobre o Sacrifício eucarístico

Algumas vezes, na internet, tenho encontrado figurações da Santa Missa nas quais o sacerdote segura a hóstia e, do outro lado, o próprio Cristo também a segura. A intenção é exprimir a fé católica, segundo a qual a Celebração eucarística é memorial do mesmíssimo sacrifício de Cristo.

Esta imagem não exprime a fé católica
sobre a Eucaristia.

Mas, aí há um problema gravíssimo: o Cristo apresentado nessas montagens aparece flagelado, como esteve nas dores do Calvário. Ora, isto de modo algum exprime a fé católica; antes, é um grave erro, que contraria a reta doutrina da Igreja sobre o Sacrifício da Missa! Explicarei isto em algumas proposições:

1. Cristo, nosso Salvador e Senhor, ofereceu-Se ao Pai “num Espírito eterno” (Hb 9,14)como sacrifício único, irrepetível e perfeito na cruz uma vez por todas. Seu sacrifício é totalmente suficiente para a salvação do mundo.

2. Este sacrifício, o Pai o acolheu no Espírito Santo (cf. Hb 9,14). Que significa isto? Toda a obra salvífica de Cristo Jesus, que culminou com Sua santa Paixão, Sua piedosa Morte e Sepultura e Sua gloriosa Ressurreição, agora encontra-se na Glória do Pai: Jesus está e estará para sempre ao mesmo tempo imolado e glorificado pela ação do Espírito Santo do Pai intercedendo por nós. Isto aparece no Novo Testamento ao menos em três imagens:

(a) Todas as vezes que os evangelhos narram os encontros do Ressuscitado com os discípulos, evitam descrever o corpo glorioso do Senhor, que já não pode ser descrito. No entanto, há um sinal que O identifica: as chagas, agora gloriosas! Tais chagas que não saram, que não se fecharão jamais, indicam que o Cristo vivo e glorioso continuará para sempre Vítima pascal, eternizado na Sua imolação pelo mundo inteiro. Agora na Eternidade de Deus, onde não há tempo, onde todo o tempo tem sua origem, no Eterno, Ele será para sempre o Imolado que é Ressuscitado e o Ressuscitado em estado de gloriosa imolação!

(b) A Epístola aos Hebreus afirma claramente que o Ressuscitado “entrou uma vez por todas no Santuário... com o próprio sangue, obtendo uma redenção eterna” (Hb 9,12). Eis a ideia: Cristo, na Sua humanidade imolada e gloriosa, eternamente nos Céus, na Eternidade, no próprio seio bendito e inefável da Trindade, oferece ao Pai o Seu sangue, isto é, o Seu sacrifício, a Sua vida, só que agora num estado glorioso; trata-se de uma imolação gloriosa!

(c) O Apocalipse apresenta a sugestiva e profunda imagem do Cordeiro de pé como que imolado diante do Trono do Pai (cf. 5,6): trata-se do Cristo ressuscitado, vencedor, mas eternamente num estado daquela imolação ocorrida no Calvário, mas, agora, de modo absolutamente glorioso!

Conclusão impressionante e maravilhosa: o sacrifício de Cristo não está no passado, congelado no tempo; o sacrifício de Cristo, por obra do Espírito Santo, está eternamente novo, presente a todos os tempos e lugares, perene e salvífico, na Glória do Pai: no Eterno de Deus, ele atinge todos os tempos em todos os altares onde é liturgicamente celebrado!

É o Cristo vivo, na Sua imolação gloriosa,
Quem Se oferece continuamente na Eucaristia.

3. O sacrifício glorioso de Cristo, tal como agora se encontra na Glória, torna-se realmente presente sobre nossos altares em cada Eucaristia, único, eterno, eficaz, irrepetível, santo. Em outras palavras: o Cristo eucarístico não é o Cristo no estado cruento e doloroso em que Se encontrava no Calvário, mas o Cristo vítima gloriosa como Se encontra nos Céus, com Sua humanidade que foi sacrificada totalmente gloriosa por obra do Espírito com o qual o Pai o plenificou na Sua Ressurreição!

O Sacrifício da missa não é simples e direta atualização do doloroso Sacrifício do Senhor ocorrido há séculos atrás, mas a real “presentificação”, e o verdadeiro tornar-se ato entre nós (= atualização) do sacrifício ocorrido há séculos atrás e agora, atualmente e para sempre, Sacrifício glorioso nos Céus. Assim, que deve ficar claro o seguinte: no sacrifício da Missa, não é propriamente o passado que se faz presente, mas os Céus que descem à terra sobre o altar!
É verdade que é o mesmíssimo Sacrifício ocorrido há vinte e um séculos que é celebrado, mas não nas condições cruentas daquela época: é celebrado agora no estado glorioso e perpétuo (incruento) em que se encontra nos Céus. Daí a liturgia exclamar: “Imolado, já não morre; morto, vive eternamente!” Daí também o costume antigo de se usar na liturgia da Missa símbolos e gestos do Apocalipse, onde se descreve de modo cheio de figuras belíssimas e sugestivas a adoração ao Cristo que Se oferta gloriosamente ao Pai como Cordeiro de pé e imolado!

Se prestarmos bem atenção nestas explicações fica claro o erro de se representar o Cristo flagelado e em dores como se a Missa fosse Seu sacrifício cruento! O Concílio de Trento é claro a este respeito: “Neste divino Sacrifício, que se consuma na Missa, está presente e Se imola de modo incruento Aquele mesmo Cristo que Se imolou uma só vez e de modo cruento no altar da Cruz... Uma só e mesma é a Vítima: e Aquele que agora Se imola pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que um dia Se imolou na Cruz, sendo diferente só o modo de oferecer”.

Fica patente também como é possível que o Sacrifício de Cristo seja oferecido uma vez por todas, sem repetição e, ao mesmo tempo, a Missa seja real e verdadeiro Sacrifício de Cristo: é o Sacrifício em estado glorioso que se torna presente no altar para que nós, na terra, participemos já das coisas dos Céus e entremos em comunhão com o santo Sacrifício único, perfeito, suficiente e eterno, que é propiciação pelos nossos pecados e salvação para o mundo inteiro.

Fica claro também o quanto erram e se enganam nossos irmãos protestantes quando negam que a Missa seja real e verdadeiramente o mesmíssimo Sacrifício do Senhor nosso Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote e Vítima perfeita pelos nossos pecados. Para eles, afirmar que a Missa é o Sacrifício de Cristo seria negar o valor suficiente do único Sacrifício da Cruz. Ora, os católicos nunca negaram esse valor suficiente e eterno! Apenas, afirmam, seguindo a Escritura e a constante Tradição apostólica, que este Sacrifício não passou, não caducou no passado, mas eficaz encontra-se no Eterno de Deus e, atuante na Glória, torna-se realmente presente em todos os nossos altares para que todas as gerações de cristãos possam participar realmente, nos ritos litúrgicos, da Páscoa salvadora do Senhor nosso que prometeu que estaria conosco para sempre!

"Sacrifício do Vosso agrado
e salvação do mundo inteiro".