segunda-feira, 29 de junho de 2020

Pedro e a Igreja, Pedro na Igreja

Caro Irmão, na Solenidade de São Pedro e São Paulo, partilho com você este comentário que fiz à leitura proposta no Ofício de Leituras para a festa que celebramos. Trata-se de um texto de rico conteúdo teológico. Ei-los, o texto e os comentários.

 

Dos Sermões de Santo Agostinho, Bispo (séc. V)

(Sermo 295,1-2.4.7-8:PL38,1348-1352)

 

O martírio dos santos apóstolos Pedro e Paulo consagrou para nós este dia. Não falamos de mártires desconhecidos. “Sua voz ressoa e se espalha em toda a terra, chega aos confins do mundo a sua palavra” (Sl 18,5). Estes mártires viram o que pregaram, seguiram a justiça, proclamaram a verdade, morreram pela verdade.

 

Observação minha: 

Logo neste parágrafo aparecem claramente três motivos para uma celebração especial dos santos Apóstolos Pedro e Paulo. Primeiro, pelo que eles foram na Igreja apostólica: insignes pregadores do Evangelho do Cristo Jesus. Se todos os Apóstolos foram anunciadores do Senhor imolado e ressuscitado, Pedro e Paulo destacaram-se e tiveram um papel de primeira grandeza na pregação, na ação missionária e na constituição da vida eclesial. O segundo motivo é comum a toda a geração apostólica: “viram o que pregaram”, ou seja, foram testemunhas de primeira ordem: não foram propagadores de mitos e crendices, mas testemunhas de um maravilhoso evento e, por último, mas não menos importante, comprovaram o testemunho que deram com os lábios com a vida e com a morte: “morreram pela Verdade”, que é Cristo!

 

 

São Pedro, o primeiro dos Apóstolos, que amava Cristo ardentemente, mereceu escutar: “Por isso Eu te digo que tu és Pedro” (Mt 16,19). Antes, ele havia dito: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16). E Cristo retorquiu: “Por isso Eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra construirei Minha Igreja” (Mt 16,18). Sobre esta pedra construirei a fé que haverás de proclamar. Sobre a afirmação que fizeste: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo, construirei a Minha Igreja. Porque tu és Pedro. Pedro vem de Pedra; não é pedra que vem de Pedro. Pedro vem de Pedra, como cristão vem de Cristo.

 

Observação minha:

Parágrafo muito importante para a reta compreensão do ministério petrino, tal qual a constante Tradição da Igreja antiga o compreendeu. Observe bem a dinâmica do parágrafo: Onde começa a autoridade de Pedro? Donde promana? Onde encontra sua raiz e fecundidade? No amor: “Primeiro dos Apóstolos, que amava Cristo ardentemente, mereceu escutar: Tu és Pedro”. Não deveríamos nunca pensar o ministério petrino primeiro nos parâmetros do direito canônico, da lei, das normas e do poder. Não são estas as coordenadas principais. Isto aparece muito claro no Evangelho de São João, recordado mais abaixo por Santo Agostinho. Calcar o ministério petrino simplesmente na lógica do poder e da jurisdição é empobrecê-lo e, até certo ponto, deturpá-lo.

Depois, observe a ligação e dependência da autoridade recebida por Pedro em relação à profissão de fé que ele faz: é porque ele professou “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”, que escutou “Eu te digo que tu és Pedro!” Em outras palavras: Pedro não é Pedro como pessoa isolada, automaticamente, desvinculado da Igreja inteira e da sua profissão de fé essencial! Pedro é Pedro porque confessa a fé da Igreja e enquanto confessa a fé da Igreja! Por isso mesmo, segundo vários bons teólogos, um papa que caísse pessoalmente em heresia, ensinando o que a Igreja nunca ensinou ou claramente rejeitou na sua profissão de fé, já não poderia ser Sucessor de Pedro! Agostinho deixa bem claro o vínculo entre o ser Pedro e a profissão de fé da Igreja, toda sintetizada firmemente no “Tu és o Cristo, o Filho do Deu vivo”, quando afirma, no parágrafo acima: “Sobre esta pedra construirei a fé que haverás de proclamar. Sobre a afirmação que fizeste: ‘Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo, construirei a Minha Igreja’”. Observe-se com todo cuidado como os dois aspectos são inseparáveis: Pedro é pedra para proclamar a reta fé, não para dizer o que bem quiser ou fazer o que bem compreender! O ministério petrino somente pode ser retamente exercido em função “da fé que haverás de proclamar”. Trata-se, pois, de um ministério importantíssimo na Igreja, em vista da proclamação da verdadeira fé, que tem como núcleo duro e inamovível o “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!”, com todas as suas implicações e desenvolvimentos posteriores.

Por isso, o santo Bispo de Hipona prossegue com estilo e acuidade teológica: “Porque tu és Pedro. Pedro vem de Pedra; não é pedra que vem de Pedro. Pedro vem de Pedra, como cristão vem de Cristo”. À primeira vista, parece tratar-se de um mero jogo de palavras. Mas, não é assim! Pedro vem de Pedra! A Pedra, aqui é Cristo, professado nas palavras de Pedro! Pedro é pedra porque professa a verdadeira fé em Cristo, a reta fé! Não é Pedro quem faz a fé ser verdadeira, mas é a proclamação da reta fé que torna Simão verdadeiramente Pedro! Observe a ordem das coisas: Pedro vem de Pedra como cristão vem de Cristo: como ninguém é cristão se não nascer de Cristo no Batismo e professar a reta fé Nele, Simão não pode ser Pedro se não estiver alicerçado na verdadeira Pedra, que é o Cristo professado nas palavras “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!” E Agostinho insiste: não é a Pedra que vem de Pedro; é Pedro que vem de Pedra; não é Pedro que torna a verdade verdadeira, é a verdade católica que faz Simão tornar-se Pedro!

São estas afirmações muito importantes, porque muitas vezes se pensa no Sucessor de Pedro como um personagem isolado, quase acima da Igreja. Esta nunca foi a visão dos Santos Padres nem dos grandes Doutores da Igreja antiga. O ministério petrino dá-se na Igreja, com a Igreja e para a Igreja, nunca sem ela, acima dela ou fora dela! Veremos isto ainda neste texto, no parágrafo seguinte...

 

 

Como sabeis, o Senhor Jesus, antes de Sua Paixão, escolheu alguns discípulos, aos quais deu o nome de Apóstolos. Dentre estes, somente Pedro mereceu representar em toda parte a personalidade da Igreja inteira. Porque sozinho representava a Igreja inteira, mereceu ouvir estas palavras: “Eu te darei as chaves do Reino dos Céus “(Mt 16,19). Na verdade, quem recebeu estas chaves não foi um único homem, mas a Igreja una. Assim manifesta-se a superioridade de Pedro, que representava a universalidade e a unidade da Igreja, quando lhe foi dito: “Eu te darei”. A ele era atribuído pessoalmente o que a todos foi dado. Com efeito, para que saibais que a Igreja recebeu as chaves do Reino dos Céus, ouvi o que, em outra passagem, o Senhor diz a todos os Seus Apóstolos: “Recebei o Espírito Santo”. E em seguida: “A quem perdoardes os pecados, eles serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos” (Jo 20,22-23).

 

Observação minha:

Perfeito e coerente o raciocínio de Santo Agostinho: aqui se trata da relação Pedro-Apóstolos-Igreja. A Igreja é indivisivelmente una, é o Corpo vivente do Senhor, que é continuamente vivificada e guiada no Espírito Santo, do qual é Templo santo. Ela não é primeiramente uma realidade jurídica, deste mundo: ela é Mistério, "Povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo", como afirmava São Cipriano de Cartago, no século III, "é o Corpo dos Três", isto é visibilização da Trindade Santa neste mundo, como afirmava Tertuliano, quando ainda era católico. Assim, a Igreja do Cristo nosso Senhor será sempre um mistério de unidade e diversidade, de unidade indivisível e diversidade indestrutível, como a própria Trindade Una e Consubstancial: uma Triunidade! O modelo de organização da Igreja não são os modelos humanos, mas a própria vida Triúna do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Isto aparece com certa frequência nas Epístolas paulinas, quando o Apóstolo apresenta a comunidade cristã inserida nas divinas Pessoas! Concretamente, jamais se poderia pensar a Igreja como uma monarquia no sentido humano, como oligarquia, democracia, ou qualquer outra forma humana de organização social! A Igreja é comunhão à luz da Trindade Santa!

Pois bem, toda a comunidade eclesial se estrutura no um e nos vários: Pedro e os Apóstolos, o Bispo de Roma e os Bispos nas suas Igreja locais como Colégio Episcopal, o Bispo e seus presbíteros e diáconos, os presbíteros e as várias manifestações da vida eclesial nas suas comunidades paroquiais. Nem os muitos sufocam o um nem o um elimina a comunhão e diversidade dos muitos!

Dito isto, observe-se que Santo Agostinho explica que quem recebeu o poder das chaves foi a Igreja inteira. E aqui convém insistir e alargar: quem recebeu a infalibilidade foi a Igreja: é ela quem pode perdoar ou reter os pecados, é ela quem não pode errar na sua profissão de fé! Vale a pena comparar o capítulo 16 de Mateus, quando Cristo dá a Pedro o poder de ligar e desligar, com o capítulo 18, quando Ele o entrega à Igreja inteira, sintetizada nos Doze! O poder é dado a Pedro de modo específico não para se esgotar em Pedro e se resumir a Pedro, mas para que seja garantida a unidade do Corpo. Aquilo que é dado a todos de igual modo é dado a um de um modo especial para que a unidade não destrua a diversidade e a diversidade não desvirtue e macule a unidade. Este pensamento precioso não somente aparece em Agostinho, mas também em vários outros Padres da Igreja, como São Cipriano, por exemplo.

É muito importante para nós, de mentalidade latina, afeitos ao visível, ao prático, ao organizacional, ao estipulado legalmente, que para os Santos Padres, as realidades eclesiais pertencem primordialmente à ordem do Mistério, que somente pode ser acolhido e vivenciado na fé. Toda vez que o ministério petrino foi compreendido simplesmente no marco canônico segundo os modelos do mundo, esse ministério tão importante na Igreja foi deformado de algum modo, tornando real o belo e trágico Mt 16. Note que a perícope toda adverte: quando Pedro pensa não como a carne e o sangue, mas como o Pai que está nos Céus, ele é pedra da Igreja; quando pensa como os homens, ele se torna, tragicamente, pedra de escândalo! Cristo sabia muito bem do que estava falando!

 

 

No mesmo sentido, também depois da Ressurreição, o Senhor entregou a Pedro a responsabilidade de apascentar Suas ovelhas. Não que dentre os outros discípulos só ele merecesse pastorear as ovelhas do Senhor; mas quando Cristo fala a um só, quer, deste modo, insistir na unidade da Igreja. E dirigiu-Se a Pedro, de preferência aos outros, porque, entre os apóstolos, Pedro é o primeiro.

 

Observação minha:

Temos aqui o mesmo raciocínio do parágrafo anterior: O Senhor dirige-se a Pedro, mas mira a todos. Dirige-se a Pedro porque ele é o primeiro, o primus, que não somente representa a todos, mas também a todos inclui, sem eliminar a multiplicidade do Colégio Apostólico. Basta pensar como Paulo não se sente amedrontado nem eliminado por Pedro, basta recordar as belas palavras de São Gregório Magno ao Patriarca de Alexandria: “A minha honra é a honra dos meus Irmãos!” e, coerente, chamou-se a si próprio “Servo dos Servos de Deus”, precisamente quando o Patriarca de Constantinopla se autoproclamou “Patriarca Ecumênico”... Pedro não estava acima nem fora do Colégio Apostólico, como o Sucessor de Pedro não está acima nem fora do Colégio Episcopal: Pedro era o cabeça, o centro, o polo de unidade do Colégio Apostólico, como o Sucessor de Pedro o é em relação ao Colégio Episcopal.

 

 

Não fiques triste, ó apóstolo! Responde uma vez, responde uma segunda, responde uma terceira vez. Vença por três vezes a tua profissão de amor, já que por três vezes o temor venceu a tua presunção. Desliga por três vezes o que por três vezes ligaste. Desliga por amor o que ligaste por temor. E assim, o Senhor confiou suas ovelhas a Pedro, uma, duas e três vezes.

 

Num só dia celebramos o martírio dos dois apóstolos. Na realidade, os dois eram como um só. Embora tenham sido martirizados em dias diferentes, deram o mesmo testemunho. Pedro foi à frente; Paulo o seguiu. Celebramos o dia festivo consagrado para nós pelo sangue dos apóstolos. Amemos a fé, a vida, os trabalhos, os sofrimentos, os testemunhos e as pregações destes dois apóstolos.

 

Observação minha:

O belíssimo texto que a Liturgia propõe, termina voltando ao ambiente do amor, como iniciou; afinal, no cristianismo, na Igreja, tudo deve começar no amor e no amor terminar! Aqui, o amor de Pedro é persistente, é crescente, é dinâmico: três vezes é afirmado com insistência, três vezes deve vencer a covardia da negação. E Santo Agostinho, de modo muito belo, afirma que o amor de Pedro, sua profissão de amor a Cristo, desliga primeiro seu próprio pecado, sua covarde negação: “Desliga no amor o que ligaste no temor!” E porque desligou o temor covarde com o amor, o Senhor o confirmou como princípio da unidade pastoral da Sua Igreja!

Depois, mais uma vez, a unidade e a diversidade: referindo-se a Pedro e a Paulo, tão diferentes no temperamento, na sensibilidade, nos caminhos pastorais, o Santo Doutor de Hipona afirma: “Os dois eram como um só!” E ainda, para terminar o mais importante: o amor manifestado na total coerência de vida, na entrega de toda a existência doada a Cristo Senhor, o Messias, o Filho do Deus vivo: “Amemos a fé, a vida, os trabalhos, os sofrimentos, os testemunhos e as pregações destes dois apóstolos”. Sem isto, nenhum ministério pastoral na Igreja é legítimo ou digno do Cristo, Bom e único Pastor do rebanho!

 


domingo, 28 de junho de 2020

Séria advertência

Meu querido Irmão,

Os tempos, as épocas, o coração dos filhos de Adão e das filhas de Eva têm lá suas modas, suas ilusões, suas manias de momento...

Já há tempos os homens de nossa civilização têm tirado Deus do centro, têm fugido espertamente de se deixar medir por Deus. Ao invés, temos medido o Senhor Deus pelo nosso metro, temos dado um jeitinho de acomodar Deus à nossa conveniência... Fazemos o Santo aprovar nossas malandragens, fechar os olhos para nossas situações tortas e pecaminosas...

 

Mas, quem engana a Deus? Quem dobra o Senhor à sua própria conveniência? Quem pode torcer impunimente os preceitos do Altíssimo?

Só um tolo, pensaria isto!

Só um néscio se iludiria assim...

 

Eis a Palavra viva de Deus, eis Sua advertência, eis o Seu veredicto, eis a medida pela qual seremos medidos e julgados, em Cristo, nosso Senhor:

 

“Não digas: 'Pequei: o que me aconteceu?’

porque o Senhor é paciente.

Não sejas tão seguro do perdão

para acumular pecado sobre pecado.

Não digas: ‘Sua misericórdia é grande

para perdoar meus inúmeros pecados’,

porque há Nele misericórdia e cólera

e Sua ira pousará sobre os pecadores.

Não demores a voltar para o Senhor

e não adies de um dia para o outro,

porque, de repente, a cólera do Senhor virá

e, no dia do castigo, perecerás!” (Eclo 5,4-9)

 

São palavras politicamente incorretas;

é Palavra do Senhor Deus, existencialmente corretíssimas!

Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!

Quem for tolo se iluda com o palavreado enganoso dos filhos de Adão...



sábado, 27 de junho de 2020

Homilia para a Solenidade de São Pedro e São Paulo

At 12,1-11

Sl 33

2Tm 4,6-8.17-18

Mt 16,13-19

 

“Eis os santos que, vivendo neste mundo, plantaram a Igreja, regando-a com seu sangue. Beberam do cálice do Senhor e se tornaram amigos de Deus”. – Estas palavras que o missal propõe como antífona de entrada desta solenidade, resumem admiravelmente o significado de São Pedro e são Paulo. A Igreja chama a ambos de “corifeus”, isto é, líderes, chefes, colunas. E eles o são!

 

Primeiramente, porque são apóstolos. Isto é, são testemunhas do Cristo morto e ressuscitado. Sua pregação plantou a Igreja, que vive do testemunho que eles deram, de tal modo que uma das características essenciais da Igreja de Cristo é ser “apostólica".

Pedro, discípulo da primeira hora, seguiu Jesus nos dias de Sua pregação, recebeu do Senhor o nome de Pedra e foi colocado à frente do Colégio dos Doze e de todos os discípulos de Cristo. Generoso e ao mesmo tempo frágil, chegou a negar o Mestre e, após a Ressurreição, teve confirmada a missão de apascentar o rebanho de Cristo. Pregou o Evangelho e deu seu último testemunho em Roma, onde foi crucificado sob o Imperador Nero por volta do ano 64.

Paulo não conhecera Jesus segundo a carne. Foi perseguidor ferrenho dos cristãos, até ser alcançado pelo Senhor ressuscitado na estrada de Damasco. Jesus o fez Seu apóstolo. Pregou o Evangelho incansavelmente pelas principais cidades do Império Romano e fundou inúmeras igrejas. Combateu ardentemente pela fidelidade à novidade cristã, separando a Igreja da Sinagoga. Por fim, foi preso e decapitado em Roma, sob o Imperador Nero em torno do ano 67.

 

O que nos encanta nestes gigantes da fé não é somente o fruto de sua obra, tão fecunda. Encanta-nos igualmente a fidelidade à missão. As palavras de Paulo servem também para Pedro: “Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé”. Ambos foram perseverantes e generosos na missão que o Senhor lhes confiara: entre provações e lágrimas, eles fielmente plantaram a Igreja de Cristo, como pastores solícitos pelo rebanho, buscando não o próprio interesse, mas o de Jesus Cristo. Não largaram o arado, não olharam para trás, não desanimaram no caminho... Ambos experimentaram também, dia após dia, a presença e o socorro do Senhor. Paulo, como Pedro, pôde dizer: “Agora sei, de fato, que o Senhor enviou o Seu anjo para me libertar...”

 

Ambos viveram profundamente o que pregaram: pregaram o Cristo com a palavra e a vida, tudo dando pelo Senhor. Pedro disse com acerto: “Senhor, Tu sabes tudo; Tu sabes que Te amo”; Paulo exclamou com verdade: “Para mim, viver é Cristo. Minha vida presente na carne, eu a vivo na fé do Filho de Deus, que me amou e Se entregou por mim”. Dois homens, um amor apaixonado: Jesus Cristo! Duas vidas, um só ideal: anunciar Jesus Cristo! Em Jesus eles apostaram tudo; por Jesus, gastaram a própria vida; da loucura da Cruz e da esperança da Ressurreição de Jesus, eles fizeram seu tesouro e seu critério de vida.

 

Finalmente, ambos derramaram o Sangue pelo Senhor: “Beberam do cálice do Senhor e se tornaram amigos de Deus”. Eis a maior de todas a honras e de todas as glórias de Pedro e de Paulo: beberam o cálice do Senhor, participando dos Seus sofrimentos, unido a Ele suas vidas até o martírio em Roma, para serem herdeiros de Sua glória. Eis por que eles são modelo para todos os cristãos; eis por que celebramos hoje, com alegria e solenidade o seu glorioso martírio junto ao altar de Deus! Que eles intercedam por nós na Glória de Cristo, para que sejamos fieis como eles foram.

 

Hoje também, nossos olhos e corações voltam-se para a Igreja de Roma, aquela que foi regada com o sangue dos bem-aventurados Pedro e Paulo, aquela, que guarda seus túmulos, aquela, que é e será sempre a Igreja de Pedro. Alguns, com má fé e pouco apreço pela verdade, dizem, deturpando totalmente a Escritura, que ela é a Grande Prostituta, a Babilônia. Nós sabemos que ela é a Esposa do Cordeiro, imagem da Jerusalém celeste. Conhecemos e veneramos o ministério que o Senhor Jesus confiou a Pedro e seus sucessores em benefício de toda a Igreja: ser o pastor de todo o rebanho de Cristo e a primeira testemunha da verdadeira fé naquele que é o “Cristo, Filho do Deus vivo”. Sabemos com certeza de fé que a missão de Pedro perdura nos seus sucessores em Roma. Hoje, a missão de Pedro é exercida por Francisco. Ao Santo Padre, nossa adesão filial, por fidelidade a Jesus, que o constituiu pastor do rebanho. Não esqueçamos: o Papa será sempre, para nós, o referencial seguro da comunhão na verdadeira fé apostólica e na unidade da Igreja de Cristo. Quando surgem, como ervas daninhas, tantas e tantas seitas cristãs e pseudo-cristãs, nossa comunhão com Pedro é garantia de permanência seguríssima na verdadeira fé. Quando o mundo já não mais se constrói nem se regula pelos critérios do Evangelho, a palavra segura de Pedro é, para nós, uma referência segura daquilo que é ou não é conforme o Evangelho.

Rezemos, hoje, pelo nosso Santo Padre, Francisco. Que Deus lhe conceda saúde de alma e de corpo, firmeza na fé, constância na caridade e uma esperança invencível. E a nós, o Senhor, por misericórdia, conceda permanecer fiéis até a morte na profissão da fé católica, a fé de Pedro e de Paulo, pala qual, em nome de Jesus, “Cristo Filho do Deus vivo”, os Santos Apóstolos derramaram o próprio sangue.

Ao Senhor, que é admirável nos seus santos e nos dá a força para o martírio, a glória pelos séculos dos séculos. Amém.



terça-feira, 23 de junho de 2020

"Houve um homem enviado pro Deus..."

“Houve um homem enviado por Deus. Seu nome era João. Ele não era a Luz, mas veio para dar testemunho da Luz” (Jo 1,6.8). Assim o Quarto Evangelho apresenta João Batista, João o Batizador, que hoje a Igreja celebra. É notável como tão poucas palavras dizem tudo desse impressionante profeta de Deus.

 

“Houve um homem enviado por Deus”. - João não veio por si mesmo, não veio de si mesmo. Foi enviado, é fruto de um sonho de Deus, tem uma missão neste mundo. Assim João, assim cada um de nós. Para quem não crê, o homem é fruto do acaso e a vida de uma pessoa não tem sentido transcendente. Mas, quem crê em Deus, quem vê o tempo à luz da Eternidade, sabe com serena admiração que cada pessoa que vem a este mundo é fruto de um pensamento de Deus que não se repete jamais. Cada pessoa tem uma dignidade inalienável, desde o primeiro momento da concepção, cada pessoa tem uma missão neste mundo. João teve a sua: preparar a vinda do Messias esperado por Israel. Sua missão fora anunciada cerca de quatrocentos anos antes de seu nascimento pelo profeta Malaquias: “Eis que vou enviar o Meu mensageiro para que prepare um caminho diante de Mim. Então, de repente, entrará em Seu Templo o Senhor que vós procurais, o Anjo da Aliança, que vós desejais. Eis que vos enviarei Elias, o profeta, antes que chegue o Dia do Senhor, grande e terrível. Ele fará voltar o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais” (3,1.23).

Foi também um homem do Absoluto, um homem de Deus, alguém que só de olhar para ele, fazia recordar, com saudade, as coisas do Céu. João viveu em função de Deus, viveu no deserto. Não era “João do carneirinho”, não era “bonzinho”. Era um homem duro como pedra, alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre, vestia-se com pelos de camelo e um cinturão de couro (cf. Mt 3,4). Era um homem que arriscou acreditar em Deus, escutar o Seu chamado, dizer “sim” à missão que o Senhor lhe confiara e viver só para esse Deus. Certa vez, Jesus fez-lhe um elogio rasgado: “Quem fostes ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? Mas que fostes ver? Um homem vestido de roupas finas? Mas os que vestem roupas finas vivem nos palácios dos reis. Então, que fostes ver? Um profeta? Eu vos afirmo que sim, e mais que um profeta... Em verdade vos digo que, entre os nascidos de mulher, não surgiu nenhum maior do que João, o Batista” (Mt 11,7-11). Sua missão foi preparar a chegada do Messias, despertando e agitando o coração de Israel. Ele era um novo Elias: como Elias, impulsionado pelo Espírito de Deus; como Elias, viveu no deserto; como Elias, fora enviado para sacudir o coração do povo; como Elias enfrentou Acab, João enfrentou Herodes, como Elias foi perseguido por Jezabel, assim João, por Herodíades. Ambos, homens de Deus, ambos profetas gigantes, ambos, homens de fogo, incoformados com a mediocridade de uma religião arrumadinha!

 

“Seu nome era João”. - Iohanah, em hebraico, que significa “Deus dá a graça”. Nas Escrituras santas, o nome diz tudo, diz a sina, a missão. “João” é o menino cujo nascimento hoje celebramos. Efetivamente, toda a sua vida foi testemunhar a graça que Deus nos deu, a graça que é Jesus, o Messias. O nome, a vida, a palavra, a morte de João, tudo foi um, foi inteiro, coerente; tudo foi anúncio do Cristo que viria como graça invencível e definitiva de Deus para o mundo. Portanto, João foi seu nome, João sua vida, João sua pregação, João, sua morte. Bendito João!

 

“Ele não era a Luz, mas veio para dar testemunho da Luz”. - Aqui o aspecto mais característico e comovente de João: sua humildade, sua profunda consciência de quem não era e de quem era. O Batista sabia que não era o Cristo, mas Seu Precursor; sabia que não era a Palavra, mas somente a voz que clama no deserto. De modo maduro e tranquilo aceitou viver toda a vida em função de um Outro, daquele que é o Filho amado, o Ungido de Deus; humildemente, aceitou diminuir para que Jesus crescesse e confessou não ser digno de desatar-Lhe a correia das sandálias. Não! Definitivamente, não foi fácil a sua missão! E, no entanto, com que fidelidade ele a levou a termo! Serenamente, João tinha consciência de que somente Jesus é a Luz do mundo, Aquela que ilumina a todos, que a todos desvela o verdadeiro e definitivo sentido da existência. Assim, esse santo profeta de Deus não foi somente homem do Absoluto; foi também homem relativo, homem que soube relativizar-se. Fazia sucesso; muitos viam escutá-lo e receber o seu batismo. Ele avisava, realista: “Eu não sou o Messias, sou apenas a voz que clama no deserto: preparai o caminho do Senhor!” (cf. Jo 1,19-30).

 

Quando Jesus começou a pregar e os discípulos do Batista encheram-se de ciúme, nosso João disse, tranquilamente, a respeito de Jesus: “É necessário que Ele cresça e eu diminua” (cf. Jo 3,22-30). O anúncio do seu nascimento preparou o anúncio do nascimento de Jesus; sua natividade, precedeu o Natal de Jesus, sua pregação abriu caminho para a de Jesus e, finalmente, sua morte anunciou a de Jesus. João foi sempre relativo, preparou sempre um Outro! Só alguém muito livre e maduro poderia viver tal missão em paz. João viveu assim. Ser homem do Absoluto, que levou a sério o seu Deus, e ser homem totalmente relativo, a serviço do anúncio do Messias, levaram João a maus bocados. Ele denunciou o pecado de Herodes; seu mau exemplo, sua infidelidade ao Deus de Israel: Herodes vivia com sua cunhada. João gritou, em nome de Deus: “Não te é lícito!” (cf. Mc 6,18). O profeta tem sempre a incômoda missão de recordar às pessoas que o homem não é a medida de todas as coisas: nem tudo é lícito, nem tudo é permitido, nem tudo é de acordo com a vontade de Deus. O Batista tinha repreendido os soldados pela violência, os publicanos pela ganância e o povo todo pela preguiça em buscar sinceramente a vontade de Deus (cf. Mt 3,712; Lc 3,7-14). Herodes mandou prender o profeta.

 

Foi, precisamente, da prisão, que João dera o mais belo e comovente testemunho a respeito de Jesus. Ele havia anunciado um Messias juiz, vingador de Deus, severo executor da vontade do Altíssimo. Por fidelidade ao anúncio do Messias, ele, o Batizador, estava preso numa masmorra. E, agora, ouvia as notícias sobre Jesus: o Profeta de Nazaré era manso, humilde, misericordioso... Não era bem o Messias como João havia imaginado! Então, ele chamou dois de seus discípulos e os enviou a Jesus com uma pergunta: “És Tu Aquele que deve vir, ou devemos ainda espera um outro?” E Jesus respondeu: “Dizei a João o que vistes e ouvistes: os coxos andam, os cegos recuperam a vista e os pobres são evangelizados” – Eram os sinais que os profetas atribuíram ao Messias... E Jesus completou: “Felizes os que não se escandalizam por Minha causa” (cf. Lc 7,18-23). João, também ele, teve que deixar sua própria visão de Deus e do Messias, para acolher Jesus como o Cristo. Foi sua última conversão, seu último testemunho, a conclusão de sua missão. Agora, podia morrer em paz. E morreu, vítima da fraqueza de um rei bêbado, da maldade de uma mulher maquiavélica e da leviandade de uma menina vulgar (cf. Mc 6,17-29).

 

Por tudo isto João é grande, João é exemplo, João viverá para sempre na memória e na gratidão da Igreja. Pelo que foi e pela missão cumprida e pelo exemplo que deu a Igreja louvará e adorará para sempre a Deus cantando os louvores do homem chamado João, o Batista.



Houve um homem enviado por Deus; seu nome era João

"Profeta e precursor da vinda de Cristo,

não te podemos louvar dignamente,

nós que te veneramos com amor;

pois, por teu venerável e glorioso nascimento,

a esterilidade de tua mãe e o mutismo de teu pai

cessaram, enquanto a Encarnação do Filho de Deus

era anunciada ao mundo" (Liturgia bizantina).




Homilia para a Solenidade da Natividade de São João Batista

Is 49,1-6

Sl 138

At 13,22-26

Lc 1,57-66.80

 

Além da Virgem Maria Mãe de Deus, Nossa Senhora, de nenhum outro santo a Igreja celebra o nascimento, a não ser São João, chamado Batista, Batizador. Dele, Jesus fez o maior elogio jamais feito pelo Salvador a alguém: “Em verdade vos digo que, entre os nascidos de mulher, não surgiu nenhum maior que João, o Batista” (Mt 11,11). Por isso, caríssimos, a hodierna solenidade!

 

Que lições, que meditações, que exemplos poderíamos colher nesta Festa, tendo escutado a Palavra que nos foi anunciada? Sugiro-vos três, que alimentem o coração, afervorem o desejo de colocar-se ao serviço do Senhor e nos conduzam à herança eterna.

 

Primeiro. A primeira leitura da Liturgia nos fez escutar a profecia de Isaías, colocando as palavras do profeta na boca de João Batista: “O Senhor chamou-me antes de eu nascer, desde o ventre de minha mãe Ele tinha na mente o meu nome... fez de mim uma flecha aguçada e disse-me ‘Tu és Meu servo, em quem serei glorificado’” E o salmo responsorial fez eco a tão bela ideia: “Senhor, Vós me sondais e conheceis. Fostes Vós que me formastes as entranhas/ e no seio de minha mãe Vós me tecestes./ Até o mais íntimo me conheceis;/ nenhuma sequer de minhas fibras ignoráveis,/ quando eu era modelado ocultamente,/ era formado nas entranhas subterrâneas!” O que aparece aqui, caríssimos em Cristo, é que viemos a este mundo não por acaso, não sem um propósito. Somos todos fruto de um sonho de Deus, fomos todos misteriosamente chamados à vida: o Senhor pensou em nós, nos chamou, nos plasmou – e aqui estamos! O nascimento que hoje celebramos, do filho de Zacarias e Isabel, foi fruto do desígnio amoroso do Pai, que pelo Filho Jesus e para o Filho Jesus, na força do Espírito Santo, plasmou João. Por isso seu nome é tão verdadeiro: “Iohanah”, em hebraico: Deus dá a graça! Ele mesmo, João, já é uma graça de Deus para seus pais e para todos os que esperavam a salvação de Israel.

 

Hoje, quando um mundo insensível e descrente já não reconhece que a vida é um mistério de amor, é um chamado de Deus, quantos são abortados, quantos deixados de modo indigno e imoral no frio congelamento dos laboratórios de procriação artificial: lá esquecidos, lá manipulados em inaceitáveis experiências pseudocientíficas! Nós, caríssimos, que ouvimos a Palavra santa de Deus; nós, que nos alegramos com este nascimento, nunca esqueçamos: toda vida humana é sagrada do primeiro ao último instante do nosso caminho terreno. É imoral, perverso e desumano um governo que reduz a questão do aborto a problema de “política pública”. Um dia esses senhores irão prestar contas a Deus. Será mesmo que Deus aceitará este argumento, que não passa de disfarce para matar? É imoral, em nome do lucro, aviltar seres humanos, jogando-os na pobreza, é imoral lucrar com a guerra, com o tráfico de drogas, com a prostituição, com a imoralidade, é imoral tudo quanto fere a dignidade da vida humana! Que o Senhor nos ajude a defender a vida, a gritar por ela! Que o Senhor também nos dê a sabedoria para descobrir e experimentar que a nossa vida – por quanto pobre e pequena – também e preciosa! Que hoje eu me pergunte: Qual o propósito da minha existência? Já o descobri? Já me conformei a ele? Vosso sou, Senhor, de Vós nasci e para Vós nasci! Que quereis fazer de mim?

 

Segundo. Ainda que a vida nossa seja fruto do amor do Senhor, isso não significa facilidades. João deveria preparar o caminho do Messias, do Cristo de Deus. E isto iria custar-lhe: “Eu disse: ‘Trabalhei em vão, gastei minhas forças sem fruto, inutilmente; entretanto o Senhor me fará justiça e o meu Deus me dará recompensa’” O grande desafio da nossa vida de crentes é viver na presença de Deus, é ser fiel à Sua santa vontade e à missão que Ele nos confiou. Ser fiel à missão custou a João: a dureza do deserto, as incompreensões dos inimigos, a trama de Herodíades, a dificuldade de perceber a vontade Deus (basta recordar João perguntando a Jesus: “És Tu aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro?”- Mt 11,3) e, finalmente, o aparente abandono, o aparente absurdo do silêncio de Deus, na solidão e na morte naquele cárcere. O que manteve João fiel até o fim? A confiança no Senhor, a capacidade de deixar-se guiar por Deus, sem querer ele mesmo controlar sua vida! Grande João! Fiel João! Pobre de Deus, João! Que exemplo para nós, tanta vez tentados a fazer da vida o que bem queremos, como se nascêssemos de nós mesmos e vivêssemos para nós mesmos! “Quer vivamos quer morramos, pertencemos ao Senhor! (Rm 14,8)”

 

Terceiro. Certa vez São Paulo escreveu: “Nenhum de nós vive para si...” (Rm 14,7) Desde o ventre materno, o Senhor chamou João para ser o que prepara o caminho, o que vem antes, o “pré-cursor” Toda a sua existência foi “precursar”! No terceiro evangelho isso aparece de modo comovente: anuncia-se o nascimento de João e depois o de Jesus; narra-se a natividade de João e a seguir a do Messias; apresenta-se o ministério de João e, após sua prisão, o do Salvador; finalmente, narra-se a morte de João, prenúncio da morte do nosso Senhor! Eis! Não é fácil não viver para si, não é fácil deixar que Outro seja o centro! E, no entanto, como diz a segunda leitura, “João declarou: ‘Eu não sou aquele que pensais que eu seja! Depois de mim vem Aquele, do qual nem mereço desamarrar as sandálias’”; “É necessário que Ele cresça e eu diminua!” Santo profeta João Batista: sendo humilde, foi o maior dos nascidos de mulher; sendo totalmente preso à sua missão de modo fiel e constante, foi livre de verdade; sendo todo esquecido de si e lembrado de Deus, foi maduro e feliz! Por isso mesmo, seu nome foi verdadeiro e traduziu perfeitamente seu ser e sua missão: João, Iohanah: Deus dá a graça. E a graça que, para seus pais, foi João no seu nascimento, na verdade era outra graça: a graça que Deus dá é Jesus, o Messias; graça que João anunciou com seu nascimento, com sua vida, com sua pregação e com sua morte!

 

Que este grande profeta, o maior do Antigo Testamento, do Céu interceda por nós, nascidos do Novo Testamento e, por isso, maiores que João, o Grande Precursor! Amém.



sábado, 20 de junho de 2020

Homilia para o XII Domingo Comum - ano a

Jr 20,10-13

Sl 68

Rm 5,12-15

Mt 10,26-33

 

O Evangelho que escutamos neste Domingo é parte do capítulo décimo do Evangelho de São Mateus, que traz o Discurso apostólico do Senhor Jesus: aí, Ele chama os Doze - como ouvimos no Domingo passado, previne Seus discípulos para as incompreensões e perseguições que sofrerão, exorta-os a não terem medo de falar, afirma claramente que Ele mesmo, Cristo, é causa de divisão e, finalmente, renova o convite para segui-Lo.

Então, estejamos atentos, pois o Senhor nos está falando dos desafios próprios da missão de ser cristão, ontem como hoje!

 

Claramente, Ele nos previne sobre as dificuldades e perseguições: “Não existe discípulo superior ao mestre, nem servo superior ao seu senhor. Se chamaram Beelzebu ao Chefe da casa, quanto mais chamarão assim Seus familiares” (Mt 10,24s).

Estamos vivendo hoje, neste início de terceiro milênio, a verdade dessas palavras do Senhor. Basta que recordemos as terríveis censuras da cultura pós-cristã e neopagã atual à Igreja por suas posições quando verdadeiramente proclama a fé católica na sua integralidade. Num mundo que não aceita mais Deus como critério do homem e a religião como ministra e sinal do Eterno – a não ser no âmbito da vida privada, sem nenhuma importância para a sociedade –, anunciar o Cristo e Suas exigências virou um crime insuportável para a sociedade paganizada!

 

E, no entanto, a ordem que o Senhor nos dá é clara: “O que vos digo na escuridão, dizei-o à luz do dia; o que escutais ao pé do ouvido, proclamai-o sobre os telhados!” A Igreja e cada cristão não podemos calar a novidade e a Vida que encontramos em Cristo, não podemos passar por alto as exigências do amor ao Senhor! Não se trata de querer impor, não se trata de nos julgarmos superiores, não se trata de uma atitude fechada, moralista e antipática de quem se sente dono da verdade; trata-se, sim, do humilde serviço à Verdade, que é Cristo Senhor, Verdade do mundo, Verdade da história, Verdade do homem! A Igreja propõe ao mundo a Verdade não porque seja dona dela ou porque a viva perfeitamente! Nada disto! A Verdade é Cristo e a caminho dela nós todos estamos – inclusive a própria Igreja. Longe de ser dona da Verdade, a Igreja é dela peregrina e sem medo deve dizê-la toda ao mundo, quer agrade quer desagrade! Dizer a Verdade de Cristo, a Verdade que é Cristo, com doçura, com paciência, mas também com inteireza e com firmeza: eis a missão dos cristãos! Para isto fomos chamados, para isto, feitos testemunhas, para isto, enviados como humildes missionários!

 

E o sofrimento? E as incompreensões? Fazem parte do anúncio do Evangelho. São Paulo claramente afirmava aos Gálatas: “Se eu quisesse agradar aos homens não seria servo de Cristo” (1,10). Seria trair o nosso Senhor esconder, mascarar que Ele, o Cristo do Pai, é o único Senhor e Salvador; seria sim traição a Jesus nosso Senhor silenciar ou adaptar ao mundo as exigências do Evangelho em nome de um falso diálogo com a mentalidade atual, de uma falsa misericórdia e de uma falsa compreensão do homem de hoje. Somente Cristo liberta de verdade o ser humano – o Cristo inteiro, pregado integralmente, com todas as consequências do Seu Evangelho! Qualquer um que deseje ser fiel a Deus experimentará a incompreensão e a solidão. Não há outro caminho! Recordemos, na primeira leitura, a queixa do Profeta Jeremias, as calúnias por ele sofridas.

 

Ora, a Igreja não pode fugir desse destino; o cristão – eu, você – não pode fugir desse compromisso com Cristo! Aliás, o século XX, ainda tão próximo de nós, foi o século que mais matou cristãos, que mais os perseguiu e exterminou. E o século XXI vai se anunciando ainda mais cruel e frio, totalmente indiferente à cristofobia e à cristianofobia! Só que os meios de comunicação e os governos politicamente corretos mudam e disfarçam a expressão “perseguição religiosa” com a mentira açucarada chamada “choque de culturas”. Não! É mesmo perseguição por causa do Evangelho, perseguição genuína por amor a Cristo, perseguição verdadeira que gera mártires! Também nós, estejamos prontos e nos acostumemos aos ataques contra a Igreja, que visam desmoralizar o cristianismo: nos meios de comunicação, muitas vezes, nas universidades, na opinião pública em geral...

 

Como responder a esta dolorosa realidade? Certamente, com uma atitude de fé, colocando-nos nas mãos do Senhor, como Jesus, o Filho amado, colocou-Se nas mãos do Pai: “Ó Senhor, que provas o homem justo e vês os sentimentos do coração... eu Te declarei a minha causa!” Não irá se sustentar na fé quem não cravar os olhos e o coração no Senhor crucificado por nós, quem não estiver disposto a participar do mistério de Sua Cruz! As perseguições de hoje dão-nos a chance de testemunhar nosso amor ao Senhor e escutar aquelas comoventes palavras Suas aos discípulos: “Fostes vós que permanecestes Comigo em todas as Minhas tentações” (Lc 22,31).

 

O que não podemos, caríssimos, é nos acovardar, negociar com um mundo que refuta o Cristo Jesus: “Todo aquele que Me negar diante dos homens, também Eu o negarei diante do Meu Pai que está nos Céus!”

Também não podemos pagar o mal com o mal, violência com violência, calúnia com calúnia, mentira com mentira! Não devemos nunca nos deixar vencer pelo mal: Cristo sofreu por vós, deixando-vos um exemplo, a fim de que sigais Seus passos. Quando injuriado, não revidava; ao sofrer, não ameaçava; antes, punha a Sua causa nas mãos Daquele que julga com justiça” (1Pd 1,21.23).

A Igreja – e nós somos Igreja – não deve se calar ante os inimigos do Evangelho! Com paciência, firmeza, coragem e amor à verdade deve fazer ouvir sua voz, quer agrade quer desagrade, quer aceitem quer não!

 

Mas – pode alguém perguntar -, por que essas dificuldades? Por que a rejeição ao anúncio do Evangelho? Todos ouvimos São Paulo falar hoje, na segunda leitura, do mistério do pecado: “O pecado entrou no mundo por um só homem. Através do pecado, entrou a Morte”. O Apóstolo quer dizer que toda a humanidade se encontra numa situação de fechamento em relação ao Deus vivo e vivificante, encontra-se, portanto, numa situação de Morte! “Todos pecaram!” – quão triste é a condição do coração humano; quão triste, a situação do mundo! Pecaram os judeus, desobedecendo os preceitos da Lei; pecaram os pagãos, mesmo sem terem conhecido um preceito como aquele dado a Adão ou os preceitos da Lei de Moisés! Pecamos e embotou-se o nosso entendimento, a nossa sensibilidade para as coisas de Deus! O Senhor, tanta vez, parece-nos pesado demais, distante demais, até inexistente demais; as exigências do Seu amor, às vezes parecem nos oprimir. É que somos egoístas, somos fechados sobre nós mesmos! Por isso, a primeira palavra de Jesus, nosso Senhor, é “convertei-vos” (Mc 1,15)!

 

E, no entanto, ainda que dirigido a um mundo fechado no seu pecado e na sua prepotência, o anúncio de Cristo é anúncio de uma maravilhosa novidade para a humanidade: se nos primeiros homens, iniciou-se uma corrente maldita, uma cadeia de pecado, em Cristo, o novo Adão, iniciou-se a possibilidade de uma humanidade nova: “A transgressão de um só levou a multidão humana à morte, mas foi de modo bem superior que a graça de Deus, ou seja, o dom gratuito concedido através de um só homem, Jesus Cristo, se derramou em abundância sobre todos”.

Eis! Ainda que incompreendido, o anúncio que a Igreja faz é de Vida e salvação para toda a humanidade! O cristianismo não é negativo, nunca dirá que o mundo está perdido, que as coisas não têm jeito! É verdade que o mundo crucificou o Senhor Jesus – e nos crucifica e crucificará com Ele; mas também é verdade que o Senhor ressuscitou, venceu para a Vida do mundo e estará sempre presente conosco!

 

Caríssimos, vivamos com coerência, com coragem, com amor a nossa fé! Não tenhamos medo, não desanimemos, não vivamos como os que não conhecem a Cristo! Não nos fechemos em nós mesmos! De esperança em esperança, vivamos e anunciemos o Senhor, certos de Sua presença e de Seu amor. Ele jamais nos deixará! A Ele a glória para sempre. Amém.



sexta-feira, 19 de junho de 2020

Coração de Cristo para o coração do mundo

o mês de junho, o afeto do Povo de Deus cultua de modo especial o Coração do Cristo Jesus. Isto ocorre motivado pela Solenidade litúrgica do Sagrado Coração de Jesus, no segunda sexta-feira após o Domingo da Santíssima Trindade, sempre no sexto mês do ano. Trata-se, esta do Sagrado Coração, de uma belíssima devoção, bíblica, profunda, de forte sentido para a vida cristã. Para não ficarmos numa devoção magra, anêmica, meramente individualista e sentimental, vejamos alguns aspectos mais teológicos desta invocação.

 

Na antropologia bíblica “coração” indica o interior do homem, a sede de seu caráter, de sua personalidade, ali onde nascem os pensamentos e sentimentos mais profundos. O coração é a sede das decisões do homem, é o seu eu. Dizer “coração” é referir-se ao homem como ser que reflete e toma decisões com conhecimento de causa. Em outras palavras: enquanto nas línguas modernas o coração é sobretudo o órgão dos afetos, na linguagem bíblica, o coração é, principalmente, o órgão do pensamento: dizer que alguém não tem coração é dizer que não tem juízo, que não conhece os próprios pensamentos! No Salmo, o Autor sagrado suplica ao Senhor Deus: “Senhor, mostra-me Teu caminho e eu me conduzirei segundo a Tua vontade. Unifica o meu coração para que ele tema o teu Nome!” (Sl 86/85,11). Sendo o coração órgão da decisão e da vontade, o salmista pede que ele seja unificado para Deus. O sentido seria mais ou menos este: “Unifica-me a mim para Ti: que meus pensamentos estejam em Ti; que minhas decisões e meu modo de viver estejam centrados em Ti e tenham somente a Ti como horizonte, como princípio unificador”.

 

Se assim é o coração humano, como se manifesta o Coração de Cristo? Seu Coração humano - Ele amou com um Coração humano! - é imagem do coração do Pai, de modo que podemos afirmar que o Coração de Deus se manifesta no Coração de Cristo: “Como o Pai Me amou, Eu também vos amei!” (Jo 15,9) Ora, em toda a Sua inteira existência humana, no Seu ministério, nas Suas palavras, nos Seus milagres, nos Seus encontros com tantas pessoas diversas, nas Suas caminhadas pela Terra Santa, Jesus, nosso Senhor, revelou sempre o Coração do Pai. Basta pensar na parábola do filho pródigo, na qual o Cristo procurou explicar aos Seus adversários que agia com amor e misericórdia porque o Pai faz o mesmo (cf. Lc 15,1)... Portanto, no Coração compassivo, manso e sereno do Senhor Jesus, podemos entrever o quanto Deus é, para nós, ternura e carinho, acolhimento e perdão! A Igreja compreendeu isto tão bem que coloca a seguinte antífona de entrada para a Missa do Coração de Jesus: “Eis os pensamentos do Seu Coração, que permanecem ao longo das gerações: libertar da morte todos os homens e conservar-lhes a vida em tempo de penúria” (Sl 33/32,11.19).É este o pensamento, o projeto, o desígnio incansável e constante do Coração de Deus, manifestado no Coração do Filho Jesus: libertar e dar a Vida, Vida eterna, Vida divina, Vida em abundante plenitude! Contemplar o Coração de Cristo, manso e humilde, rasgado e aberto na Cruz para que recebamos a água que nos vivifica e o sangue que nos lava, significa experimentar, crer e anunciar que Deus, o Pai de Jesus Salvador, é amor e fonte de amor. Este anúncio é tanto mais urgente e necessário quanto mais vemos um mundo, o nosso, ferido, quebrado e seco de coração. Ou não é um mundo machucado pela incredulidade, pela solidão, pela violência, a fome e a pobreza, este mundo nosso? Por mais que os psicólogos tentem, não são eles quem salvarão a humanidade: somente o amor dá sentido a todas as coisas! E amor na medida de Deus, do jeito de Deus, que beba do amor de Deus! E é precisamente isto que o Coração de Jesus revela: que Deus é amor, que Sua paternidade cheia de compaixão e misericórdia abraça todas as criaturas. Do Seu amor ninguém é excluído, do Seu carinho ninguém é esquecido!

 

Quem dera que este mundo que corre o risco de se tornar sem coração, mundo cão, encontre no Coração de Cristo o descanso, a inspiração e a paz! Quem dera que aceitasse o convite sempre atual e desafiante: “Vinde a Mim, vós todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e Eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o Meu jugo a aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de Coração e encontrareis descanso...” (Mt 11,28ss)



Coração de homem, Coração de Deus

Hoje a Igreja celebra o Coração de Jesus. É uma festa de sentido belo e profundo. 

 

Na Sagrada Escritura, a palavra coração (lev ou levav), indica o íntimo do homem, o núcleo mais profundo de sua consciência. Dizer coração é dizer a personalidade, a consciência, os sonhos, os sentimentos, os pensamentos, a liberdade e as decisões de alguém; é dizer “eu”. Coração, no sentido bíblico, é muito mais do que coração no nosso português corrente, que indica somente sentimento, afeto.

 

Coração de Jesus significa, então, a personalidade humana do Salvador: Sua consciência humana, Seus pensamentos, Seus sonhos, Seus projetos, Seu amor, Seus sentimentos, Suas solidões e lutas – tudo quanto o Filho de Deus feito homem viveu humanamente por nós e como nós.

 

Assim, olhando o caminho humano de Cristo, Sua aventura entre nós, iniciada no ventre da Virgem e terminada na Cruz, nós podemos descobrir de modo humano o Coração do próprio Deus. Isto mesmo: o Coração de Cristo é Coração de homem e, ao mesmo tempo, revela o Coração do Pai!

 

O que descobrimos nesse Coração? Doçura, amor, compaixão, misericórdia, capacidade de se comover, abertura para as misérias e dores alheias. Portanto, contemplar o Coração do Cristo Jesus é descobrir o quanto o nosso Deus é amor, ternura e piedade. Daí o convite do próprio Jesus: “Vinde a mim; aprendei de mim: eu sou manso e humilde de coração! Achareis descanso para vossas vidas!” (Mt 11,28).

 

A melhor imagem para compreendermos o mistério do Coração de Jesus é a do Cristo crucificado, morto, com Seu lado traspassado, do qual vertem a água do Batismo e o sangue da Eucaristia. A imagem é forte: uma vida entregue totalmente por amor, que abre o Coração para nos agasalhar e nos saciar com a graça dos sacramentos, dando-nos Vida sempre nova. Eis, no Coração de Jesus, nosso Senhor: um Deus que Se esgota por amor, sem jamais desistir de amar e dar Vida! Deus surpreendente, esse que Se manifesta no Coração do Salvador!

 

Num mundo estressado, que nos faz tantas vezes experimentar o desamparo, o desânimo, o medo e a incapacidade ante os desafios da existência, aprendamos a nos refugiar naquele Coração, lado aberto, traspassado por nosso amor! Basta de prepotência! Basta de autossuficiência! Basta de pensarmos que nos bastamos a nós mesmos e podemos ser felizes sozinhos, prescindindo do amor de Deus! Seja o Coração de Cristo o nosso modelo de verdadeira humanidade; seja o nosso refúgio, seja o nosso amparo, seja o início da nossa alegria de ter um Deus-amor na terra que será nosso Deus-descanso no Céu!

 

Jesus, manso e humilde de coração, fazei o nosso coração semelhante ao Vosso!



Homilia para a Solenidade do Coração de Jesus - ano a

Dt 7,6-11

Sl 102

1Jo 4,7-16

Mt 11,25-30

 

Caríssimos no Senhor, hoje a Liturgia nos faz contemplar o Coração do Cristo Jesus. Mas, o que significa precisamente este apelativo: Coração de Jesus? Poderia, à primeira vista, parecer algo um tanto sentimental, até mesmo meloso, afastado do pensamento das Escrituras. Ora, para compreender bem quão grande, belo, sublime, importante o mistério que celebramos – Mistério do Coração do Senhor Jesus Cristo nosso Salvador –, é necessário primeiramente compreender o que significa “coração” precisamente nas Escrituras Santas! É daí que poderemos beber toda a riqueza desta imagem: o coração do nosso Deus!

Bem diverso do significado atual nas línguas modernas, nos Escritos santos, o coração significa o mais íntimo da pessoa, sua interioridade, o lugar dos seus pensamentos, planos e projetos, o núcleo mesmo do seu eu. Dizer meu “coração”, seria dizer “eu mesmo”, com tudo quanto tenho de mais meu; dizer “coração” significa dizer meu íntimo mais íntimo! Por isso mesmo as palavras do Salmo 32, no início da Missa de hoje, como está no Missal, referindo-se ao Coração de Deus: “Eis os pensamentos do Seu Coração, que permanecem ao longo das gerações: libertar da morte todos os homens e conservar-lhes a vida em tempo de penúria!” Está aí, bem sintetizado: o Coração do Senhor Deus é o lugar do Seu pensamento, do Seu desígnio de amor! E este “lugar” chamado “coração” é vida, é amor, é tornar feliz e plena a humanidade!

Assim, contemplar o Coração do Eterno é vê-Lo na Sua maior intimidade! O que há no Coração de Deus? Há somente Amor, a ponto de São João exclamar, hoje, na segunda leitura: “O amor vem de Deus; Deus é Amor! Quem permanece no amor, permanece com Deus e Deus permanece com ele!” Na verdade, já na Antiga Aliança, o Senhor revelou muitas vezes e de modos diversos, este traço, esta característica essencial do Seu próprio Ser. Basta tomar o que ouvimos na primeira leitura, a declaração de amor que o Senhor Deus faz ao Seu Povo de Israel: “O Senhor Se afeiçoou a vós e vos escolheu, não por serdes mais numerosos que os outros povos – na verdade, sois o menor de todos – mas, sim, porque o Senhor vos amou...” Eis o Deus das Escrituras, o Deus de Israel: um Deus que ama gratuitamente, ama sem esperar vantagem alguma, ama esperando somente amor: ama porque ama, ama com toda liberdade e pura gratuidade!

 

Ora, caríssimos, Deus quis nos revelar este amor, Deus quis Se revelar como puro amor; ele quis mostrar-Se, visivelmente, no Seu amor! Para isso, enviou o Seu Filho, para nos amar divinamente de modo humano, com traços humanos, de modo que o ser humano pudesse perceber, compreender e aprender esse amor! O Salvador mesmo dissera: “Quem Me vê, vê o Pai; Eu estou no Pai e o Pai está em Mim; Eu e o Pai somos um!” (Jo14,9.10; 10,30) No Coração do Senhor Jesus, Deus feito homem, Deus com Coração de homem, nós podemos ver humanamente Deus amando! Não por acaso o nosso Salvador afirma hoje, no Evangelho: “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho O quiser revelar!” Percebeis, meus amados irmãos? O Filho revela a intimidade do Pai porque conhece o Pai e do Pai provém! Seu Coração é imagem perfeita do Ser do Pai, do Coração do Pai - o Coração do Cristo é um só com o Coração do Pai! Como afirma o Autor da Epístola aos Hebreus, falando do Filho bendito, “Ele é o resplendor da Sua Glória, a expressão da Sua Substância” (Hb 1,3), isto é, a expressão do Seu Ser, do próprio Ser de Deus!

 

Assim, contemplemos o Cristo, o Seu ser mais profundo, no Seu Coração! O que vemos? Puro amor ao Pai, pura entrega ao Pai e, no amor ao Pai e pelo amor do Pai, puro amor aos irmãos, pura doação à humanidade! Contemplando o Senhor Jesus no Seu Coração humano, aprendemos humanamente como Deus ama e como devemos amar. Por isso mesmo, a segunda leitura desta Missa insiste em que aprendamos a acolher o amor de Deus em Cristo, a viver o amor de Deus em Cristo e a transbordar o amor de Deus em Cristo! Amados no senhor, atenção: não se pode adorar o Coração amante e amável do Cristo Jesus sem se deixar invadir por esse Amor, que é o próprio Espírito Santo que Ele derramou no nosso coração (cf. Rm 5,5) e sem nos colocarmos em constante saída para amar os irmãos! O amor, a louvação ao Coração do Cristo Jesus não pode ser algo desvinculado da nossa realidade de amor! Beber das fontes do Coraçào mante do Salvador nos joga no amor, nos faz amantes em Cristo, portadores do amor de Cristo para os outros! Escutemos: “Amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus! Foi assim que o amor de Deus se manifestou entre nós: Deus enviou o Seu Filho único ao mundo, para que tenhamos Vida por meio Dele. Caríssimos, se Deus nos amou assim, nós também devemos amar-nos uns aos outros. E nós conhecemos o amor que Deus tem para conosco e nele acreditamos. Deus é amor: quem permanece no amor, permanece com Deus e Deus permanece com ele”. Eis aqui, meus caros no Senhor: fixar os olhos no Coração do Cristo e ir a Ele, aprender Dele e com Ele, que é humilde e manso, que é a imagem verdadeira e fiel do próprio amor de Deus para conosco! Contemplar e experimentar o amor do Coração de Cristo para testemunhá-lo e derramá-lo nos irmãos, sobretudo nos que mais precisam do nosso amor e, muitas vezes, nem têm nem sabem como retribuir o amor que de nós recebem! Mas, “quanto a nós, amemos, porque Ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19).

 

Estejamos atentos: o amor cristão não é um mero sentimento, não é um simples ato de boa vontade, de bondade humana e filantropia mundana, tão em moda hoje em dia! O amor em Cristo brota de nossa união com o Senhor Jesus, nasce da experiência no Espírito Santo de amor, Espírito Santo de Cristo! Nesse Espírito, que brota com a água do Batismo e o sangue da Eucaristia, água e sangue jorrados do Coração do Salvador (cf. Jo 19,34), nos são dados todo o bem e toda a graça, toda cura e toda esperança, toda força e toda salvação!

 

Queridos Irmãos, que a Festa de hoje nos faça escutar novamente com toda atenção e toda fé o convite do nosso Jesus Senhor: “Vinde a Mim, todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e Eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o Meu jugo – jugo de Amor! – e aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de Coração, e vós encontrareis descanso. Pois o Meu jugo é suave e o Meu fardo é leve!” Eis: nos cansaços no caminho da vida, encontremos descanso no Coração de Jesus; nas fadigas que querem nos impedir de caminhar, encontremos remanso e restauro no Coração de Jesus; quando os fardos da existência forem pesados demais, procuremos a leveza suave do Coração de Jesus; quando o jugo dos homens e das obrigações desta vida nos acabrunharem, encontremos o alívio no Coração de Jesus! Nele está a nossa Vida, Nele, a nossa Paz, Nele a nossa felicidade e plenitude, aqui e por toda a Eternidade na plenitude do Reino dos Céus. Amém.

Jesus, manos e humilde de Coração, fazei o nosso coração semelhante ao Vosso!