segunda-feira, 30 de março de 2020

Retiro Quaresmal 2020/30 - "Felizes os que se abrigam no Senhor!" (Sl 2,12)

Terça-feira da V semana da Quaresma
Meditação XXIX: Um Reino pelos séculos dos séculos

Reze o Salmo 119/118,49-56
Leia, como lectio divina, Tb 13.

1. Todo este capítulo 13 é uma oração; na verdade, uma grande bênção de louvor ao Senhor! Em todo o Livro, exorta-se insistentemente a que se bendiga o Senhor. E aqui, nas palavras de Tobit, a exortação encontra sua resposta: esta oração é uma explosão de bênçãos e louvores ao Rei Senhor pela Sua fidelidade e misericórdia para com Seus fieis, com o Seu Povo de Israel, com Sua Cidade Santa, Jerusalém e até mesmo para com todos os povos da terra. Isto é impressionante, sobretudo se se leva em conta que os israelitas se encontravam no desterro, oprimidos pelos gentios! Mas, já aqui, aparece claro que o Reinado de Deus deve estender-se por todos os povos! Israel não existe para si próprio, mas sua adoração ao Senhor Deus e o Seu Reinado no meio do Seu Povo, são em vista da extensão desse Reinado bendito a toda a humanidade! Vale para Israel o que o Apóstolo diz para cada um de nós: “Ninguém de nós vive e ninguém morre para si mesmo, porque se vivemos é para o Senhor que vivemos, e se morremos é para o Senhor que morremos” (Rm 14,7s). Isto mesmo: Israel, a Igreja, cada um de nós, existimos e vivemos para o Senhor! É em função do Seu Reino que tudo tem seu sentido verdadeiro!
Vejamos, nesta e na próxima meditação, alguns destes pontos presentes nesta oração.

2. Logo de saída, um tema que aparece em toda esta louvação de bênção é do Reino de Deus. Veja um pouco: “Bendito seja Deus que vive eternamente, e bendito o Seu Reino, que dura pelos séculos!” (v. 1); “Exaltai o Rei dos séculos!” (v. 6); “Minha alma louva o Rei do Céu.” (v. 8); “Bendize o Rei dos séculos.” (v. 10); “Povos numerosos virão a ti de longe... trazendo nas mãos presentes para o Rei do Céu.” (v. 11); “Minha alma, bendiz o Senhor, o grande Rei.” (v. 15); “Serei feliz se restar alguém de minha raça para ver tua glória e louvar o Rei do Céu.” (v. 16)

3. Muitas vezes, no Antigo Testamento, o Senhor é chamado de Rei. Ele é o Rei de Israel, Seu Povo e a Arca é o Seu trono. Os reis de Israel são totalmente dependentes do verdadeiro Rei divino, são ungidos por Ele, no Espírito Dele; são apenas ocupantes do “Trono da realeza do Senhor” (1Cr 28,5; cf. 2Cr 9,8; 1Sm 9,22 – 10,1; 16,1.10-13). Vários salmos chamam o Senhor de Rei (cf. Sl 47/46; 93/92; 97/96; 99/98; 100/99): Rei de Israel; Rei de toda a terra, Rei dos povos todos. Daniel fala de um Reino que não terá fim, um Reino suscitado pelo Senhor Deus. Leia Dn 2,44. O Povo de Deus sempre teve consciência de que o Seu Deus é o seu único Senhor: Ele o formou, o tirou do Egito, o governava com Seus preceitos e dirigia o seu destino. Israel foi descobrindo que sua razão de existir é viver na perfeita e total comunhão com o Senhor, colocando em prática a Sua Lei, vivendo, assim, fielmente à Aliança. Somente deste modo, o Povo santo viveria de verdade: teria paz com Deus e com os povos ao seu redor e viveria na bênção e na salvação, pois o Senhor reinaria verdadeiramente sobre o Seu Povo e o Seu Reinado bendito estender-se-ia a todos os povos da terra. Reze os Salmos 99/98 e 100/99.
Assim, pouco a pouco, o Povo de Deus foi deixando de lado uma ideia de reino meramente político e nacional , reino do Povo de Deus, e tomando consciência de que esse Reinado de Deus se estende por todo o universo e por toda a história humana e abarca todos os povos. É isto que vemos nesta oração de Tobit. Não se trata, portanto, de um Reino como os reinos do mundo, com critérios políticos ou sociais, não se trata de um Reino entre outros, mas de um Reino eterno, que pervade tudo e deve ser acolhido primeiramente nos corações. Deus reina; reconhecer isto na existência concreta é viver na verdade; fechar-se em si mesmo, vivendo como se fosse o próprio dono da vida, é viver numa mentira, excluído do Reinado de Deus (cf. Is 24,23; Sl 145/144.10s). Como ensinavam os rabinos de Israel, vivendo aberto para Deus no cumprimento da Sua Lei, o justo toma sobre si o jugo do Reino dos Céus...

4. Se observarmos bem, a ideia do Reinado de Deus está muito próxima da certeza da  providência do Senhor, que tudo penetra, tudo orienta, tudo governa. Dizer que Deus reina significa afirmar que tudo Ele tem em Suas mãos benditas. Por isso mesmo, Tobit proclama o Reinado de Deus – “Bendito seja Deus, que vive eternamente, e bendito o Seu Reino, que dura pelos séculos!” (v.1) – e, logo depois, proclama a providência divina: “Pois é Ele quem castiga e tem piedade, faz descer às profundezas dos infernos e retira da grande Perdição!” (v. 2). Assim, porque o Senhor é Rei eternamente, Ele tudo dirige, Ele dirige os destinos do mundo e da história humana, Ele tem nas mãos a ventura e a desgraça, a vida e a morte! Nem mesmo o inferno está fora do Seu poderio! (cf. Dn 7,9s; Ap 4,2)

5. Os textos sagrados de Israel também dão conta de que o Senhor Deus manifestaria o Seu Reinado de um modo forte e triunfal no final dos tempos: Ele derramaria Sua bênção, pela ação do Seu Espírito, de modo que o Seu Reinado iria eliminar todo o mal, todo pecado, toda morte e, na força do Seu Espírito, Israel e toda a humanidade, a Terra Santa e toda a criação viveriam na bênção do Reinado de Deus. Ligada a esta bênção aparece a figura misteriosa do Messias, o Ungido, cheio do Espírito, que traria a plenitude do Reinado de Deus. Leia Is 11,1-11. Expressão muito importante desta esperança é o texto de Is 52,7: “Como são belos sobre os montes, os pés do mensageiro que anuncia a paz, do que proclama boas novas e anuncia a salvação, do que diz a Sião: ‘O teu Deus reina’”. É muito importante recordar que a versão grega do Antigo Testamento, utilizada pelos judeus da Diáspora e pelos primeiros cristãos, traduz “boa nova” por “evangélion”, isto é “evangelho”. Para tornar mais clara a compreensão do que estou dizendo, podemos afirmar, que o texto grego de Isaías soaria mais ou menos assim: “Como são belos sobre os montes, os pés do mensageiro que anuncia a paz, do que proclama o evangelho e anuncia a salvação, do que diz a Sião: ‘O teu Deus reina’”. Observe: qual é o evangelho que será anunciado? Este: “O teu Deus reina!” A boa notícia é a chegada do Reino de Deus, Reino de Vida divina, Reino de bênção, Reino que é a presença de Deus no meio do Seu Povo, sendo graça e bênção para todos os povos! Nunca esqueça: o evangelho anunciado no Antigo Testamento é o evangelho da chegada do Reino, o evangelho do Reino!

6. Agora leia com atenção Mc 1,14s. É o cumprimento da profecia de Isaías! Quem é o Mensageiro que anuncia a paz, o shalom de Deus? É Jesus, nosso Senhor! Qual é o Evangelho que Ele anuncia? O Reino de Deus chegou; está no meio de vós! (cf. Lc 17,21) O que é necessário para acolher verdadeiramente este Evangelho? A fé neste Evangelho da chegada do Reino e a conversão de toda a vida: deixar de ser o centro da própria existência, deixar de viver para si, do seu modo, e permitir, verdadeiramente, que Deus reine no seu coração, na sua vida.
Este Reino aparece claro e forte no próprio Senhor Jesus: Nele, Deus, o Pai reinou totalmente, absolutamente: “O Meu alimento é fazer a vontade do Pai e consumar a Sua obra!” (Jo 4,34) Guiado pelo Espírito do Pai, Jesus, nosso Senhor, foi totalmente obediente, deixando o Pai reinar de modo pleno em todos os aspectos da Sua vida e da Sua missão. Esta obediência total ao Pai, este reinado do Pai em Jesus Cristo, levou-O à Morte e à Ressurreição (cf. Fl 2,8-11; Hb 10,7). Agora, cheio do Espírito que o Pai derramou sobre Ele, o Salvador derrama este Espírito sobre os Seus (cf. At 2,33), para que tenham o mesmo Espírito do Filho (cf. Rm 8,15), na obediência total ao Pai, deixando que o Reino invada totalmente a vida deles e, através deles, aja no mundo!

7. O Reino não é deste mundo: não está em estruturas políticas ou sociais, não está nas ideias ou ideologias. Leia Lc 17,20-21. O Reino está onde está o Espírito Santo de Jesus, o Reino acontece onde as pessoas, cada pessoa, abre-se para o Senhor Deus, por Cristo, com Cristo e em Cristo, deixando-se transformar pelo Espírito filial do Cristo Jesus. Como diz uma antiga versão do Pai-nosso segundo Lucas: onde se lê: “Venha o Teu Reino” (Lc 11,2b),escreveu-se “Vosso Espírito Santo venha sobre nós e nos purifique!” Isto mesmo: venha ao nosso coração, à nossa vida, o Espírito do Cristo obediente ao Pai, Cristo morto e ressuscitado, e nos purifique do pecado original de toda autossuficiência, de todo fechamento em nós mesmos, de todo soberba egolatria, abrindo-nos para o Pai, com Cristo e como Cristo. Assim, onde estiver o Espírito de Cristo estará aí o Reino de Deus! Que esteja no nosso coração e, através de nós, no coração do mundo!

8. Pense: Quem reina na sua vida: você, com sua autossuficiência ou o Senhor? Pense em fatos e situações concretas que fundamentem sua resposta... Para rezar, tome os salmos 47/46 e 93/92. Depois, tome 1Cor 15,20-28. Finalmente, reze o prefácio da Solenidade de Cristo Rei:
“Na verdade, é justo e necessário, é nosso dever e salvação dar-Vos graças, sempre e em todo o lugar, Senhor, Pai santo, Deus eterno e todo-poderoso. Com óleo de exultação, consagrastes Sacerdote eterno e Rei do universo Vosso Filho único, Jesus Cristo, Senhor nosso. Ele, oferecendo-Se na Cruz, Vítima pura e pacífica, realizou a redenção da humanidade. Submetendo ao Seu poder toda criatura, entregará à Vossa infinita Majestade um Reino eterno e universal: Reino da verdade e da vida, Reino da santidade e da graça, Reino de justiça, do amor e da paz. Por essa razão, hoje e sempre, nós nos unimos aos anjos e arcanjos, aos querubins e serafins e toda a milícia celeste, cantando a uma só voz!”


Retiro Quaresmal 2020/29 - "Felizes os que se abrigam no Senhor!" (Sl 2,12)

Segunda-feira da V semana da Quaresma
Meditação XXVIII: Uma santidade chamada amor

Reze o Salmo 119/118,41-48
Leia, ainda uma vez, como lectio divina, Tb 12.

1. Continuamos ainda no capítulo 12. Detenhamo-nos agora nos misteriosos vv. 13-14. Releia-os: “Quando tu não hesitaste em te levantares da mesa, deixando a refeição, para ires sepultar um morto, fui enviado para provar tua fé, e Deus enviou-me, ao mesmo tempo, para curar-te a ti e a tua nora Sara!” São palavras desconcertantes, inaceitáveis para a mentalidade atual! No entanto, é Palavra santa, é Palavra sagrada, é Palavra de Deus, é Palavra que revela o misterioso modo de agir de Deus! É pegar ou largar, caminhar com um Deus tão misterioso nos Seus caminhos! O Senhor nos ultrapassa, o Senhor é Santo, o Senhor é incompreensível: Quem pode medir a Sua grandeza? Leia Is 40,12-18.22-31. Reze! 

2. Vamos reler Tb 2,1-10. É de cortar o coração! Tanto sofrimento, tantas lágrimas. Releia a triste oração de Tobit (cf. 3,1-6). A vida não é um faz-de-conta, não é um teatro; os acontecimentos da existência, por vezes, machucam, doem muito. E agora, Rafael revela a Tobit que toda esta dor tremenda, estes dias de solidão, de incerteza, de sofrimento, de tentação de desespero, tudo isto foi não somente permitido, mas foi também desejado, querido pelo Senhor Deus! Tobit fizera o bem, fora fiel ao seu Deus, servira de coração sincero ao seu próximo por amor à Lei do Eterno e o Senhor, agradando-Se desse bem, resolveu prová-lo de modo tão forte, tão duro, como fizera com Jó! Leia Jt 8,12-17.25-27 e Hb 12,5-13.
Temos aqui o tremendo problema, o insuperável mistério, do sofrimento dos inocentes! Claro que esse Deus não é compreensível nem aceitável para o homem atual, que tudo julga e avalia na sua própria medida, nas coordenadas estreitas da sua razão; talvez não o seja nem para você nem para mim... Mas, este é o único Deus verdadeiro! Não há outro! Este é o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo! Ele, que não poupou Tobit, não poupou Jó, não poupou Abraão, também não poupou o Seu próprio Filho! Leia e reze Rm 11,33-36. Deus misterioso, Deus perigoso, este; Deus verdadeiro! Coragem: leia, rezando, Lm 3,1-58.

3. A primeira coisa que é preciso ter sempre presente é que Deus é Santo, isto é, “o Diferente”, “o Para-Além-de-Tudo”, “o que nos ultrapassa totalmente”, “o Absolutamente Outro”. Não podemos compreender totalmente os caminhos do Senhor, não conseguiremos nunca enquadrá-Lo. O Seu agir nos escapa (cf. Sl 139/138,1-12.17s; Jó 23,8-10), a Sua lógica, apesar de não ser ilógica nem irracional, nos ultrapassa de longe (cf. Is 55,8s) É este o sentido da palavra “santo” nas Escrituras! A maior prova dessa santidade desconcertante do Senhor foi o próprio modo surpreendente que Ele escolheu para nos salvar: na loucura da Cruz, que desmoraliza a nossa razão soberba (cf. 1Cor 2,6-8).

4. Daqui surge uma questão seríssima, dolorosa para nós: como confiar num Deus assim? Se Ele é tão misterioso, tão incompreensível, se Sua ação pode nos fazer sofrer, como poderemos, verdadeiramente, abandonar-nos nas Suas mãos? Deus perigoso, este Deus! Sim, muitas vezes na vida podemos ter esta sensação e fazer, direta ou indiretamente, estas perguntas. Mas, atenção: esse Deus misterioso, exatamente no Seu agir misterioso, mostrou-Se próximo, fiel, amoroso, confiável: Ele, por nós, por mim, por você, entregou o Seu Filho Único até a morte e morte de Cruz (cf. Jo 3,16s). Ele não nos precisa provar mais nada! “Conhecemos o amor de Deus por nós e nele acreditamos” (1Jo 4,16) porque vimos o Seu Filho crucificado por nós; mais ainda: vimo-Lo ressuscitado, Vencedor de toda dor, de todo absurdo, de toda morte! Veja que o Deus verdadeiro está longe do deus da teologia da prosperidade, do deus das negociatas, do deusinho domesticado, que se dobra à nossa vontade, que pode ser subornado por nós (Dt 10,17).

5. O sofrimento será sempre um tremendo mistério, sobretudo o sofrimento dos inocentes. Somente a confiança no amor de Deus, na Sua bondade e sabedoria infinita pode acolhê-lo, mesmo sem compreender! Somente em Cristo este mistério pode ser iluminado: Ele, o Inocente, o Justo e Santo, tomou em Seus ombros, acolheu no Seu Coração trespassado, toda dor, todo sofrimento, todo pranto do mundo, de cada criatura, de cada povo, de cada ser humano (cf. Sl 56/55,9s). Leia Is 53,4-12. Aquele que é amigo de Cristo, que Nele se abandona, que vive em comunhão com Ele, imolado e ressuscitado na Eucaristia, ainda que sofra, ainda que não compreenda, sabe entregar-se, abandonar-se, confiar no Senhor, mesmo de noite! Nunca esqueça: crer não é compreender tudo! Crer é entregar-se, abandonar-se, caminhando como se visse o Invisível! Crer é dizer como Jó: “Ainda que Ele me matasse, eu Nele esperaria” (13,15).

6. É por tudo isto que as Escrituras insistem e o Senhor Jesus repete insistentemente que somente o pobre de coração pode acolher o Reino de Deus. Somente o pobre interiormente pode aceitar o Senhor como Ele é, como Ele age, deixando-se guiar por Ele e nas Suas mãos se abandonando. O pobre sabe que não tem direitos adquiridos diante do Senhor e sabe que tudo quanto sai das mãos do Senhor é, no final de tudo, para o nosso bem! Veja o que o próprio Rafael afirma: “Fui enviado para provar tua fé, e Deus enviou-me, ao mesmo tempo, para curar-te a ti e a tua nora Sara!” No desígnio do Eterno, de uma só vez, Rafael vem para ferir e curar, vem ferir e, na própria ferida, vem derramar uma bênção muito mais abundante! Mas, o que Deus concebe, vê e sabe de uma só vez, para nós, é tão misterioso, e se dá no tempo, pouco a pouco... O Eterno vê na perspectiva da eternidade; nós somente vemos parcialmente e pouco a pouco... Vemos embaçado, como num espelho fosco, de superfície irregular. Leia 1Cor 13,12. É necessário, portanto, um coração pobre, de criança confiante no Pai, para caminhar com este Deus. Permita-me dar-lhe dois exemplos que muito me edificaram ao longo de minha vida.

a) Eu era jovem e estava vendo o noticiário sobre uma enorme cheia no Estado do Paraná. Foi no final dos anos 70. A reportagem mostrou uma pobre senhora, realmente desvalida... O seu precário barraco de madeira estava sendo levado pela água torrencial... A velhinha olhava, silenciosa... Era uma cena de cortar o coração. Eu lembro bem... O repórter aproximou-se daquela senhora e disse: “Perdeu tudo, hein, vovó?” Aquela senhora nem olhou para o seu interlocutor... Ergueu os olhos para o Céu, juntou as mãos enrugadas, e disse: “Perdi tudo, graças a Deus!” Eu chorei. Aquela mulher era uma pobre de Deus! Nada nem ninguém poderia nunca quebrar aquela senhora! Nela, Deus reinava livremente; ela não duvidava do Seu amor, ela não colocava condições para Nele crer e O amar! Ela, aquela semianalfabeta, aquela iletrada, poderia repetir como Jó: “Ainda que Ele me matasse, eu Nele esperaria” (13,15).

b) Eu já era Bispo e estava fazendo uma visita pastoral no agreste nordestino. Era pelo ano de 2011. Já há uns três anos, o Nordeste estava sendo castigado pela seca. Seca crudelíssima; das piores. Durou mais de cinco anos. Eu fui visitar uma capela de povoado rural. Encontrei um pequeno proprietário. Disseram-me que ele havia perdido todo o seu gado e sua lavoura... Coisa de dar pena. Naquele povoado todos tinham perdido tudo... Olhei para aquele homem e perguntei-lhe: “E a chuva?” Ele tirou o chapéu, como os sertanejos fazem nessas horas, e olhando rapidamente para o Céu, disse-me: “Quando a Deus for servido, ela virá!” Mais uma vez, como há anos, com aquela mulher paranaense, meus olhos marejaram! Eu estava diante de um pobre de Deus, de um homem que verdadeiramente confiava no Senhor sem pedir explicações nem colocar condições! Esse homem, sem estudo, sem teologia, poderia repetir com Tobit: “Tu és justo, Senhor, e justas são todas as Tuas obras. Todos os Teus caminhos são graça e verdade, e Tu és o Juiz do universo. E agora, Senhor, lembra-Te de mim, olha para mim!” (Tb 3,2-3a).São estes os pobres, como Tobit! São estes que deixam verdadeiramente Deus reinar nos seus corações e nas suas vidas! São estes que imitam o Pobre Jesus, que Se entregou inteiramente nas mãos do Pai e, por isso, recebeu o Nome acima de todo o nome! (cf. Fl 2,5ss)

7. Pense nestas coisas... Olhe a sua vida... Examine a sua fé... Reze o Sl 25/24.


sábado, 28 de março de 2020

Homilia para o V Domingo da Quaresma - ano a

Ez 37,12-14
Sl 129
Rm 8,8-11
Jo 11,1-45

De hoje a oito entraremos na Semana Santa, com a solenidade dos Ramos e da Paixão do Senhor. Agora, neste último Domingo antes dessa Grande Semana, a Liturgia nos apresenta o Senhor Jesus como nossa Ressurreição e nossa Vida. Vida muito mais que a simples vida psico-biológica, vida muito mais que vida deste mundo, sustentada por nossas necessidades básicas; trata-se de Vida divina, Vida plena, Vida que nem a morte por destruir, Vida que recebemos no santo Batismo, Vida que nos vem como força na Crisma, Vida que comemos como alimento de Eternidade na Eucaristia. Eis a Vida: Jesus! Eis o que buscam os catecúmenos, aqueles que por toda a terra estão se preparando para receber, na próxima Solenidade pascal, os sacramentos da iniciação à vida cristã, a Vida em Cristo, no Batismo, na Crisma, na participação à Mesa eucarística!

Aqui, ao dizermos que Jesus é a Vida, não estamos falando de modo figurado, metafórico! Jesus é realmente, propriamente, a nossa Vida, a nossa Ressurreição!
Ele é o cumprimento do sonho de vida e felicidade que o Pai, desde o início, tem para nós: “Ó Meu povo, vou abrir as vossas sepulturas e conduzir-vos para a terra de Israel. Porei em vós o Meu Espírito, para que vivais!” É em Jesus que esta promessa se cumpre, é Nele, morto e ressuscitado, que somos arrancados das sepulturas da vida de pecado e da sepultura da morte; é no Seu Espírito Santo, derramado sobre nós, que o Pai nos vivifica!

Caríssimos, Jesus é a própria Ressurreição; Ele é a própria Vida, Vida plena, Vida divina, Vida eterna! Jesus é a plenitude desta nossa vida, da nossa existência: Nele, o nosso caminho termina não no Nada do absurdo, do vazio, mas na plenitude da Glória! Sem Ele, seríamos nada, sem Ele, tudo quanto vivemos terminaria no aniquilamento: “De que nos valeria ter nascido, se não nos redimisse em Seu amor?” – é o que vai perguntar a Liturgia da Igreja daqui a poucos dias, na noite da Páscoa. Num mundo que procura desesperadamente a vida, a felicidade; numa época como a nossa, em que se tem sede de um motivo para viver, de um sentido para a existência, Jesus Se nos apresenta como a própria Vida, Vida da nossa vida!

Mas, escutemo-Lo falar, Ele mesmo no Evangelho deste Domingo. Deixemos que Ele nos fale da vida, que Ele mesmo nos ensine a viver!

Lázaro encontrava-se doente, sofrendo; depois, morreu. Suas irmãs estavam sofridas, angustiadas, imploraram tanto pela vinda do Senhor para curar o irmão... E Jesus não foi; Jesus demorou-Se. Quantas vezes fazemos, nós também, esta mesma experiência em nossa vida. “Esta doença não leva à morte; ela serve para a glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado por ela!” E, pensemos bem: Jesus era muito amigo de Marta, de sua irmã Maria e de Lázaro. Quando ouviu que estava doente, Jesus ficou ainda dois dias no lugar em que Se encontrava”... Os caminhos de Deus não são os nossos caminhos, os nossos tempos e modos não são os Dele. “Senhor, se estivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido...” Nesta queixa dolorida de Marta e Maria sentimos também as nossas queixas diante dos sofrimentos da nossa própria vida...
Jesus sentiu a morte de Lázaro: “ficou profundamente comovido” e chorou por Lázaro, mas não impediu sua doença e sua morte! Vede, irmãos: nosso Deus não é tapa-buracos; jamais compreenderemos o Seu modo de agir! Ele nos ama, Ele é fiel, Ele Se preocupa conosco, Ele conhece nossas dores. Mas, jamais compreenderemos totalmente Seu modo de estar presente no mundo e na nossa existência! O justo, o humilde crê; o ímpio declara, então: Deus não existe! Uma coisa é certa: se crermos, veremos sempre a glória de Deus, e em tudo no mundo e em tudo na nossa vida Deus será glorificado!

Então, Jesus consolou Marta e Maria. Jesus lhes prometeu a Ressurreição.
Como todo judeu, as irmãs esperavam a Ressurreição no Último Dia, no final dos tempos. Jesus, então, fez uma das revelações mais impressionantes de todo o Evangelho: “Eu Sou a Ressurreição! Eu Sou a Vida!” Atenção, Irmãos! Levemos a sério esta afirmação! Detenhamo-nos diante dela, admirados!
A Ressurreição que os judeus esperavam chegou: é Jesus, o Cristo do Pai!
A Ressurreição não é uma coisa, uma realidade impessoal, não é um força, não é uma energia da natureza, não é uma dinâmica nossa! Não! Nada disto!
A Ressurreição é uma Pessoa: ela tem coração, rosto, voz e amor sem fim! A Ressurreição é o Senhor Jesus em pessoa: “Eu sou a Ressurreição e a Vida! Quem crê em Mim, mesmo que esteja morto, viverá!”
Na hora tão dramática e misteriosa da nossa morte, é Ele, pessoalmente, com a força vivificante do Seu Espírito Santo, Senhor que dá a Vida, Quem vem nos buscar, é na força Dele que seremos erguidos da morte, é Nele que nossa vida é salva do Absurdo, do Nada, do Vazio: “quem vive e crê em Mim, não morrerá para sempre!”
Nunca será demais a surpresa, a admiração, a grandeza dessas palavras! Caríssimos, eis o Evangelho, eis a notícia, eis a novidade que dá sentido a toda uma vida: “Deus nos deu a Vida eterna, e essa Vida está no Seu Filho” (1Jo 5,11), esta Vida é o Seu Filho!

Amados no Senhor, estamos para celebrar a Páscoa. Não esqueçamos que é para que tenhamos esta Vida divina, a Vida eterna que o nosso Jesus Se entregou por nós: morto na carne foi vivificado no Espírito Santo pela Sua Ressurreição (cf. 1Pd 3,18). Ressuscitado, plenificado no Espírito Santo, Ele, o Vencedor da morte, derramou sobre nós esse Espírito de Vida, dando-nos, assim, a semente de Vida eterna: “Se o Espírito do Pai que ressuscitou Jesus dentre os mortos já habita em vós, então o Pai que ressuscitou Jesus Cristo dentre os mortos vivificará também vossos corpos mortais por meio do Espírito que habita em vós!”

É esta a nossa esperança: a Ressurreição! Por ela vivemos, dela temos certeza; menos que isto não queremos, com menos que isto não estaremos satisfeitos! E já possuímos, como primícias, como garantia, pelos sacramentos da Igreja, o Espírito Santo de Ressurreição: é Ele a Vida do Cristo Jesus.
Então, vivamos uma vida nova, uma vida de ressuscitados em Cristo Jesus: “Os que  vivem segundo a carne, segundo o pecado, fechados em si mesmos, não podem agradar a Deus! Vós não viveis segundo a carne, mas segundo o Espírito” do Cristo Jesus!
Então, vida nova! Deixemo-nos guiar pelo Espírito! Deixemo-nos renovar pelo Senhor! Convertamo-nos! Que as observâncias da santa Quaresma, a oração intensa e perseverante, o combate aos vícios, a abstinência dos alimentos e a confissão dos pecados nos preparem para celebrar de coração renovado a Santa Páscoa que já está bem próxima – esta, deste ano e aquela, da Vida eterna! Amém.


Retiro Quaresmal 2020/28 - "Felizes os que se abrigam no Senhor!" (Sl 2,12)

Sábado da IV semana da Quaresma
Meditação XXVII: Por Cristo, com Ele e Nele todo bem e toda graça

Reze o Salmo 119/118,33-40
Leia, ainda uma vez, como lectio divina, Tb 12.

1. É preciso ainda voltar aos vv. 6-10. É necessário aprofundar duas afirmações de Rafael, palavras que podem ser luz para os nossos passos nesta vida. Vamos, passo a passo:

a) “Bendizei a Deus e proclamai entre os viventes os bens que Ele vos concedeu!” – Proclamar as ações de Deus é louvá-Lo, é uma forma também de anunciá-Lo. O Povo de Israel e, atualmente, o Novo Israel, que é a Igreja, terão sempre o dever sagrado de testemunhar as obras do Senhor, Sua atuante presença no mundo. Nosso Deus não é um deus ausente, não é um deus teórico, reduzido a uma ideia etérea, irreal. Mesmo nos momentos de dor e de sofrimento da história do mundo e de cada um de nós, é Ele que está sempre presente e atuante! Reze o Sl 135/124. Se nós nos calarmos, estaremos sendo infiéis. Estejamos atentos, que o politicamente correto nos quer aprisionar numa religiosidade aguada, vazia, de um deus simplesmente pai de todos, um deus ideal, que é bonzinho e tudo aceita, olhando simplesmente se somos coerentes com nossos próprios desejos, com nossa própria consciência e vontade. Ou seja: basta que eu seja coerente comigo mesmo, fechado em mim mesmo; basta que o homem seja bonzinho com o homem... Esquecemo-nos, neste caso, de que o Senhor nos mostrou o caminho, nos revelou a Sua vontade, proibiu-nos de nos fecharmos em nós mesmos, deu-nos preceitos, ordenou-nos escutá-Lo no Seu Filho, que é o Seu Verbo bendito e santo (cf. Dt 5,32 – 6,9; Mt 17,5). Os grandes bens que o Senhor nos concedeu e que devemos proclamar são, primeiramente, as Suas grandes obras salvíficas: como criou tudo, como chamou Abraão e dele fez um Povo para Si, como retirou Israel do Egito, como deu-lhe a Lei através de Moisés, como o guiou no deserto com sinais e prodígios, como o educou, enviando uma multidão de profetas, como o castigou e o recuperou e, sobretudo, como, “na plenitude dos tempos” (Gl 4,4), “enviou o Seu Filho Unigênito para que não pereça todo aquele que Nele crê, mas tenha a Vida eterna!” (Jo 3,16). Ainda é necessário proclamar como o Cristo Senhor,“entregue pelos nossos pecados e ressuscitado para nossa justificação” (Rm 4,25), é o único Senhor de tudo (cf. Fl 2,11; 1Cor 8,5s), do universo, da história, da Igreja, que Ele guia e é Sua Esposa e, finalmente, cuida de todos nós, de cada um de nós... E aí, nosso louvor e proclamação podem chegar aos fatos concretos e miúdos da nossa vida: “Ele dá o pão a toda carne, porque o Seu amor é para sempre!” (Sl 137/136,25; cf. Mt 6,25-34).

b) “Melhor é a esmola com a justiça do que a riqueza com a iniquidade. É melhor praticar a esmola do que acumular ouro. A esmola livra da morte e purifica de todo pecado. Os que dão esmola terão vida longa; os que cometem o pecado e a injustiça são inimigos da própria vida” – Algumas afirmações interessantes sobre a esmola; uma verdadeira exortação e motivação a esta prática... Aprofundemos um pouco. Numa sociedade como a nossa, fixada em ter, em consumir, totalmente refém de um bem-estar desenfreado, a Palavra de Deus associa a esmola com a retidão, a justiça, a piedade – é este o sentido de justiça, no texto – e a riqueza, com a iniquidade. Por quê? Porque a esmola é sempre uma abertura para os outros, uma sensibilidade para as suas necessidades espirituais e materiais. Ora, uma atitude assim nos aproxima de Deus, do Seu amor, da Sua bondade, da Sua liberalidade, que cuida de todas as Suas criaturas. Leia Lc 6,36. Assim, a esmola ajuda no caminho para perceber o Senhor, para ter em nós os mesmos sentimentos dos Cristo Jesus (cf. Fl 2,5). Já o afã de ter, de escorar-se nas seguranças humanas, materiais ou não, leva, de um modo ou de outro, cedo ou tarde, à iniquidade: sem que se perceba, a escravidão aos bens deste mundo vai obscurecendo a consciência e vão-se afrouxando os verdadeiros valores, a ponto de se viver uma vida iníqua! Por isso, Jesus nosso Senhor previne duramente contra uma vida frouxa, satisfeita consigo própria (cf. Lc 6,20-26). O cristão deve procurar ter uma vida equilibrada e simples, dando a cada aspecto da existência seu justo valor e correspondente importância, mas tudo vivendo diante do Senhor e a Ele tudo relacionando. Leia, rezando, Mt 6,11a; compare com Pr 30,7-9.
Por tudo isto, é melhor a esmola praticada que o ouro acumulado: a esmola feita, enriquece de vida e amor a tantos, provoca bênção e ação de graças em muitos, conquista-nos amigos no Céu e nos abre para o Senhor (cf. Lc 16,9-13); já o ouro acumulado de modo mesquinho e ganancioso nos fecha em nós mesmos, tornando-nos pobres para os outros, fechados para Deus e nos mata, primeiro no coração neste mundo e, depois, na Eternidade (cf. Lc 12,16-21; 1Tm 6,6-10)! Por isso, o texto de Tobias diz que a esmola livra da morte: da morte do coração, da morte da alma, provocada por uma vida fechada em si e estéril! Por isso também afirma que purifica do pecado, porque todo pecado é um fechamento em si, nos afastando do Senhor Deus e dos outros. A esmola é abertura aos irmãos por amor de Deus e no amor de Deus! Por tudo isto, a conclusão é clara e cortante: “Os que dão esmola terão vida longa; os que cometem o pecado e a injustiça são inimigos da própria vida!” Pense bem: o que é viver verdadeiramente: simplesmente viver, sobrevivendo, fechado em si ou, ao invés, viver no diálogo amoroso com o Senhor e, no amor do Senhor, na abertura de coração e de bolso para os irmãos? Lembre da palavra do Senhor: “Há mais alegria em dar que em receber!” (At 20,35). Reze o Sl 112/111.

2. Os vv. 12-15 tratam do papel dos Anjos nas nossas relações com Deus. Ao longo destas meditações, já falamos sobre esses seres espirituais, criados para a comunhão com Deus e o Seu louvor e também, misteriosamente, colocados como “espíritos servidores, enviados ao serviço dos que devem herdar a salvação” (Hb 1,14). Atenção mais uma vez: dos Anjos, sabemos apenas o que a Escritura Santa nos revela. E o que ela nos ensina é que foram todos criados pelo Pai através do Filho no Espírito. Como todas as criaturas, a realização desses seres encontra-se na comunhão de vida e amor com o Deus uno e trino. Sabemos que alguns deles foram colocados a serviço do desígnio salvador do Senhor Deus para toda a humanidade. É o que vemos no caso de Rafael: ele apresentava ao Senhor as orações e as boas obras de Tobit! Claro que esta linguagem aqui é figurada! Não vamos pensar um Arcanjo lendo um relatório diante de Deus, o Onisciente! Aqui, temos um modo de falar humano de uma realidade que nos ultrapassa completamente! Cuidado para não cairmos em leituras ingênuas e, por vezes, ridículas, das Escrituras Santas! Eles intercedem por nós, pois estão ao serviço da nossa salvação para a glória de Deus. Afirmar que os Anjos intercedem em nada diminui a única mediação do Cristo nosso Senhor, pois é Nele e para Ele que tudo existe e subsiste (cf. Cl 1,15s) e é Nele, no Seu Espírito Santo, que toda a mediação se dá, pois Ele é Cabeça de toda a criação (cf. 1Cor 15,26-28; Cl 1,16-18). A mediação dos Anjos deve ser compreendida no mesmíssimo sentido da mediação dos santos no Céu e dos santos batizados na terra. Neste sentido, o que for dito sobre os santos vale para os Anjos, enquanto, no Espírito de Cristo, Espírito de comunhão de amor, uns e outros vivem a mesma Vida divina no Corpo do Imolado e Ressuscitado (cf. Ap 5,6). Vejamos isto com mais vagar, a seguir.

3. É verdade que somente Jesus Cristo salva: “Não há, debaixo do Céu, outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos” (At 4,11); Ele é o único Mediador entre Deus, nosso Pai, e a humanidade: “Há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus, que Se deu em resgate por todos” (1Tm 2,5).Nele nós temos a bênção da graça e da salvação: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda a sorte de bênção espirituais, nos Céus, em Cristo. É pelo sangue Deste que temos a redenção, a remissão dos pecados... (Ef 1,3.7). Este, é, portanto, um ponto central claríssimo da fé católica: só Cristo salva e somente Cristo intercede por nós junto do Pai. Não há outra mediação fora da mediação do único e absoluto Salvador, Cristo Jesus.
A Escritura nos ensina também que todos os batizados foram revestidos de Cristo e, tornando-se uma só coisa com Ele, são membros do Seu Corpo, que é a Igreja. Ser cristão é estar incorporado, enxertado no Senhor Jesus ressuscitado (cf. Gl 3,27; 1Cor 12,27; Rm 12,5) A união nossa com Cristo é tão forte e real, tão concreta e verdadeira, que São Paulo afirma que o cristão é batizado (isto é, mergulhado) em Cristo, no Cristo, dentro de Cristo. Leia Rm 6,3-9. Assim, a vida dos bem-aventurados no Céu - e também já aqui na terra a Vida de cada batizado - é Vida em Cristo: “A graça de Deus é a Vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 6,23). A Ele estamos unidos como os ramos à videira, de tal modo que vivemos da Sua mesma Vida gloriosa (cf. Jo 15,1.4-5). Portanto, o cristão é aquele que permanece em Cristo, que vive não mais por si mesmo, mas por Cristo. A seiva, a vida nova da qual vivem os cristãos é o próprio Espírito Santo do Senhor Jesus ressuscitado, recebido no Batismo: “Aquele que se une ao Senhor, constitui com Ele um só Espírito” (1Cor 6,17); “Pois fomos todos batizados num só Espírito para ser um só Corpo... e todos bebemos de um só Espírito” (1Cor 12,13). De tal modo isto é verdadeiro, real, que o Apóstolo exclamava: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20); “Para mim o viver é Cristo...” (Fl 1,23).Cristo está de tal modo presente no cristão e este é de tal modo enxertado em Cristo e Nele incorporado, que fazia o Apóstolo afirmar: “A vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,2) e falar também do mistério de Deus que é “o Cristo em vós, a esperança da Glória” (Cl 1,27). Aparece assim claramente que os batizados - particularmente os que estão na Glória - são uma só coisa com Cristo, estão em Cristo, foram “con-formados” com Cristo, são membros de Cristo, que é Cabeça de todos. Não há, para aqueles que estão na Glória, outra vida que não a de Cristo e em Cristo!

4. Demos um passo adiante. O Espírito de Cristo ressuscitado em nós, fazendo-nos uma só coisa com o Senhor Jesus, suscita em nós os bons sentimentos e as boas obras: tudo de bom que pensamos e fazemos é suscitado pelo Espírito Santo em nós: “É Deus quem opera em vós o querer e o operar” (Fl 2,13). É exatamente porque cremos em Cristo, porque estamos unidos a Ele e Nele estamos enxertados e incorporados pelo Batismo, que podemos realizar as obras da fé, daquela fé que atua pela caridade (cf. Gl 5,6). Quando rezamos, não somos nós que rezamos: em última análise, quem ora em nós, quem louva em nós e intercede em nós é o próprio Espírito do Cristo Jesus ressuscitado. Leia Rm 8,26s. É por isso que, já aqui na terra, pedimos aos nossos irmãos que intercedam por nós. Dizemos uns aos outros: “Fulano, reze por mim!” O próprio Novo Testamento recomenda que rezemos uns pelos outros (cf. 2Cor 1,1; Ef 1,16; 6,19; Fl 1,4; Cl 4,12; 1Ts 1,2; 1Ts 5,25; 1Tm 2,1; Tg 5,16). Pedimos a oração de um irmão batizado porque sabemos que ele ora em Cristo, que esse irmão é uma só coisa com Cristo, já que é membro do Seu Corpo e vive do Espírito do Senhor ressuscitado, de modo que já não é ele quem ora, mas é Cristo que ora nele como Mediador único entre nós e Deus.
Com nossos irmãos que estão na Glória e os Anjos com eles em comunhão no Céu, todos mergulhados no Espírito do Ressuscitado, acontece o mesmo. A morte não nos separa do amor de Cristo nem dos irmãos, não rompe a comunhão entre os que estão com o Senhor, no Céu, e nós, peregrinos: “Estou convencido de que nem a morte nem a vida nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de Deus manifestado em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8,38s). No Senhor, todos vivem e permanecem unidos no amor. Se a morte interrompesse uma tal comunhão em Cristo isso significaria que ela - a morte - seria mais forte que o amor, que a Vida e que a vitória do Senhor Jesus. Mas, não! Cristo é mais forte que a Morte e o Inferno: “Morte, onde está a tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão?” (1Cor 15,55). Desse modo, nossos irmãos que estão com Cristo (cf. Fl 1,23) na Glória, são plenamente membros do Corpo do Cristo, vivem do Espírito do Cristo ressuscitado e participam da única mediação de Cristo! É Cristo quem intercede neles, de modo que a intercessão dos Santos, amigos de Cristo, nada mais é que uma admirável manifestação do poder e da fecundidade da única mediação do Senhor Jesus. Ele é o único Mediador, que inclui na Sua mediação única todos os que são uma só coisa com Ele por serem membros do seu Corpo. A mediação do Senhor Jesus não é mesquinha: é única, mas não é exclusivista; ela inclui todos nós; não é exclusiva, mas inclusiva! Caso contrário, nem nós, que vivemos ainda neste mundo, poderíamos rezar uns pelos outros, já que isso é também uma forma de mediação. Assim, é em Cristo, como Seus membros, no Seu Espírito, que os Anjos e os Santos intercedem ao Pai. A intercessão dos Santos nada mais é que uma manifestação da única intercessão do Senhor Jesus, que, sendo rico e potente, suscita em nós a capacidade de participar da sua única mediação. O mesmo vale para os Anjos bons, enquanto criaturas do Pai pelo Filho no Espírito, totalmente dedicados ao louvor do Deus uno e trino. Quanto aos santos, nossos irmãos na Glória são aquela nuvem de testemunhas de que fala a Epístola aos Hebreus: “Portanto, também nós, com tal nuvem de testemunhas ao nosso redor, rejeitando todo o fardo e o pecado que nos envolve, corramos com perseverança a corrida que nos é proposta, com os olhos fixos Naquele que é o Autor e Realizador da fé, Jesus” (Hb 12,1-2). São eles que, a exemplo dos primeiros santos mártires, participando da mediação única do Senhor Jesus, e nessa única mediação, suplicam em nosso favor, como membros de Cristo: “Vi sob o Altar as vidas dos que tinham sido imolados por causa da Palavra de Deus e do testemunho que dela tinham prestado. E eles clamaram em alta voz: ‘Até quando, ó Senhor Santo e Verdadeiro, tardarás a fazer justiça, vingando nosso sangue contra os habitantes da terra?’” (Ap 6,10) De tudo isto, fica claro que a Igreja de Cristo, ao ensinar que os nossos irmãos do Céu, os santos, intercedem por nós, mostra o quanto a única mediação de Cristo é fecunda e eficaz; de tal modo fecunda e eficaz, que nela nos inclui e dela nos faz participantes! Não se trata, portanto, nem de concorrência, nem de competição e nem mesmo de uma mediação paralela à mediação única de Cristo. Também não se trata de uma escadinha de mediadores: os santos e os Anjos seriam mediadores junto a Cristo e Cristo é o Mediador junto ao Pai. Não! Há um só Mediador! Todos os outros apenas participam da única mediação do Cristo Jesus, nossa Cabeça e nossa santificação. Se participamos desta mediação única é exatamente porque, pelo Batismo, recebemos a plenitude de Cristo: “Nele aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude e reconciliar por Ele todos os seres” (Cl 1,19); “E da Sua plenitude todos nós recebemos graça sobre graça!” (Jo 1,16).

5. Terminemos a presente meditação com algumas rápidas observações sobre os vv. 16-21: (a) Quando Tobit e Tobias ficam sabendo que Azarias é o Arcanjo Rafael, “caíram com a face em terra, com grande temor”. É que ao Anjos, sendo vindos do mundo invisível, apesar de serem criaturas, tem uma proximidade com o Deus vivo muito maior que os homens e, assim, refletem algo da gloriosa santidade do Altíssimo, causando no ser humano um temor reverencial. No texto da Vulgata, no v. 19, Rafael explica: “Parecia-vos que eu comia e bebia convosco, mas o meu alimento é um manjar invisível e minha bebida não pode ser vista pelos homens”. (b) Mais uma vez, Rafael deixa claro que ele não veio por si mesmo e não age por si próprio, mas veio da parte de Deus e é expressão da Sua bondosa providência. Um Anjo é mensageiro e instrumento das ordens do Altíssimo. Terminada a missão, ele desaparece, retira-se humildemente. Não há ação angélica no nosso mundo que não seja expressamente por desígnio do Altíssimo em ordem à salvação dos homens. Daí a conclusão da sua missão: “Vou voltar para Aquele que me enviou!” (c) Muito interessante qual foi a grande maravilha para Tobit e Tobias: não foi o dinheiro recuperado, não foi a vista curada, não foi ter encontrado Sara como esposa, mas “haver-lhes aparecido um Anjo de Deus”. Como é diferente a ordem dos valores e das prioridades para quem crê! Pense nisto.

6. Há ainda um ponto para nossa oração neste capítulo 12. Veremos na próxima meditação.  Por agora, juntando-se ao louvor de Tobit e Tobias, reze os Salmos 146/145 e 147/146-147.


sexta-feira, 27 de março de 2020

Retiro Quaresmal 2020/27 - "Felizes os que se abrigam no Senhor!" (Sl 2,12)

Sexta-feira da IV semana da Quaresma
Meditação XXVI: Atitudes e virtudes de amigos de Deus

Reze o Salmo 119/118,25-32
Leia, agora, como lectio divina Tb 12.

1. Comecemos nossa meditação com os vv. 1-5:

a) Tobit e Tobias cuidam, agora, de pagar de modo justo e sem demora pelos serviços de Azarias. A responsabilidade e seriedade nos nossos negócios e contratos fazem parte da nossa relação com Deus: pagar a quem devemos, ser pontual no pagamento dos que nos servem, ser responsável no pagamento das taxas e impostos que visam ao bem comum. Leia Dt 24,14s; Tg 5,1-6. O senso de justiça, de equidade, de honra à palavra dada (cf. Mt 5,37) e aos compromissos assumidos são parte importante da nossa relação com o Senhor. Você é uma pessoa honesta e reta nos seus negócios? É confiável? Cumpre seus compromissos? Quanto vale sua palavra?

b) E atenção: não basta ser justo, pagar em dia. O Senhor nos leva mais adiante, pede-nos mais: ser generoso, saber compadecer-se, saber ser solidário, saber preocupar-se com os demais e querer o bem dos demais. Observe que Tobit e Tobias querem pagar a Azarias mais até do que haviam acertado com ele antes. São reconhecidos, gratos, generosos, são benévolos. Um cristão mesquinho, miúdo, sem generosidade é uma triste caricatura de discípulo do Cristo! Leia Lc 12,33s. Esses homens experimentaram a bondade do Eterno e desejam partilhar generosamente com os outros aquilo que abundantemente receberam! Veja a atitude contrária nestes dois textos seguintes: Lc 12,13-21; 16,19-31. Esses aí, das parábolas, não roubaram, não atrasaram salários e, no entanto, sofrem do Senhor duríssima reprovação pelo fechamento insensível a Deus e aos demais: para eles, somente existem eles próprios e seus interesses; a preocupação é somente consigo mesmos!

c) Faça agora uma revisão sobre o modo como você trata seus subalternos em casa ou no trabalho. Revise também como você age com quem é seu chefe ou patrão... O Evangelho impregna e inspira realmente as suas relações no ambiente de trabalho, quer você seja chefe quer seja subalterno? Leia Cl 3,22 – 4,1; Tt 2,9-10. Honestidade, responsabilidade, justiça, assiduidade, pontualidade, respeito, honestidade, são valores e virtudes que um cristão não pode deixar de lado nunca nas suas relações de trabalho, “a fim de que em tudo seja Deus glorificado por Jesus Cristo” (1Pd 4,11)... Compreendamos bem: seja da parte do chefe ou patrão cristão como da parte do funcionário ou empregado cristão, o Senhor espera de nós relações humanas sadias, alicerçadas não só nos bons sentimentos humanos, mas até mais: no exemplo do Cristo, servo de todos. É interessante que 1Pd 2,18-25 coloca o exemplo de Cristo como modelo e motivo das nossas relações. Leia este texto! Agora escute estes conselhos com o coração aberto e fiel: Eclo 5,1-8/10. Por fim, reze o Sl 101/100: peçam ao Senhor que expulse do seu coração tudo aquilo que de maldade haja nele e confirme e aumente toda bondade!

2. Vamos aos vv. 6-7: As palavras de Rafael são belas! Releia-as atentamente: bendizer ao Senhor, proclamar Suas maravilhas e Suas bondades; nunca deixar de agradecer por tudo; em outras palavras, uma vida diante de Deus, aberta para Deus, que leva realmente Deus a sério: “Agradecei-Lhe dignamente e praticai o bem!” – A oração e o louvor vão sempre juntos com o empenho em realizar na vida o que cremos, praticando o bem e evitando o mal, cumprindo de verdade os mandamentos do Senhor! Pense: sua vida concreta é expressão da sua vida de oração ou, ao invés, sua oração vai por um lado e sua vida, por outro? Reze Dn 3,51-90.

3. Duas vezes aparece a afirmação: “É bom manter oculto o segredo do rei; porém é justo revelar e publicar as obras de Deus” (vv. 7.11). O que este provérbio significa? Vejamos a primeira parte da frase: “É bom manter oculto o segredo do rei”.
Podemos compreendê-la primeiramente num sentido meramente humano, de bom senso. Aqui, o rei seria o chefe, o patrão, alguém que nos é superior e de quem gozamos a confiança: deve-se ser discreto, guardar segredo das coisas que são reservadas, tendo um sentido de prudente conveniência, respeito pela privacidade das pessoas e até mesmo sentido ético. Por exemplo: a discrição para não difamar alguém, para não violar um segredo profissional, para não se gabar, revelando coisas inconvenientes, etc. Quem não sabe ser conveniente e discreto, muito errará e muito mal provocará. Leia Eclo 19,4-17/18. 
Numa compreensão mais “espiritual”, o Rei da frase acima seria o Deus eterno. Com o Senhor todos nós temos nossos segredos: a nossa história vivida no íntimo do nosso coração diante Dele, nossas lágrimas de amor ou dor choradas no Seu regaço, nossos medos, dúvidas, nossas quedas, nossas vitórias... Estas coisas espirituais, nossas experiências com o Altíssimo, não devemos sair espalhando à toa, pois a chama, quando exposta ao vento se apaga! Isto serve para tudo na vida: aquelas coisas mais profundas, aquelas realidades que nos são mais caras, devemos cercar de discrição e reserva, pois formam a nossa identidade mais profunda! É o contrário da mentalidade das redes sociais, onde as pessoas expões sua vida de modo desbragado e até vulgar... Sobra superficialidade; falta tanta profundidade!
E aqui, a segunda parte do provérbio: é sempre bom publicar as maravilhas do Senhor, pensando não no nosso engrandecimento e autoafirmação, mas em glorificar o Senhor por Suas obras e Sua fidelidade (cf. Jr 9,22s; 2Cor 10,17s)! Leia, rezando, Eclo 43,28-33/30-37.

4. Nos vv. 8-10 reencontramos os temas caríssimos a este Livro: a oração, o jejum e a esmola. Trata-se de realidades que ainda atualmente são importantes para a vivência da nossa fé cristã. Estas três observâncias, nós as herdamos do Antigo Testamento e foram recomendadas pelo Senhor Jesus Cristo, pelos santos Apóstolos e pela inteira Tradição da Igreja. Leia Mt 6,1-18. Observe que o Nosso Senhor fala em “praticar a justiça”, isto é, praticar as observâncias da religião. Cristo retoma as práticas do judaísmo e dá-lhes um sentido interior, que seja expressão de um coração que ama, teme e serve a Deus! Isto está perfeitamente na linha do Livro de Tobias! O cristão realiza estas práticas por amor a Jesus nosso Senhor e no amor a Jesus!

5. Com este mesmo espírito, os cristãos primitivos jejuavam (cf. At 13,2s; 14,22s). O Apóstolo São Paulo também valorizou esta prática: várias vezes, ele se referiu aos seus jejuns (cf. Cor 6,5; 11,27). O jejum é precioso, pois coloca nosso corpo debaixo do senhorio de Cristo, ajuda-nos a dominar nossos instintos e paixões; fazendo-nos sentir fraqueza, recorda-nos que somos pequenos e dependentes de Deus. Além disso, faz-nos recordar os que são materialmente necessitados e até mesmo passam fome. Desse modo, abre o nosso coração para as necessidades dos demais!

6. Quanto à esmola, basta ver estes textos bem contundentes: 1Jo 3,17; Tg 2,15s; 1Cor 11,20ss; 2Cor 8,1-15. A esmola é preciosa, até porque aperfeiçoa o jejum. Se o jejum e a mortificação sozinhos poderiam degenerar numa prática meramente formal, dando brecha à autoafirmação e presunção (cf. Lc 18,9-14), a esmola, dada de bom coração, por amor ao Senhor e compaixão pelo próximo, coroa o jejum e torna a pessoa agradável ao Senhor Deus! Observe que o jejum e a esmola tocam a nossa vida material: o nosso corpo, no jejum, e os nossos bens materiais, na esmola. É com todo o nosso ser – e não só com a alma, com a inteligência, com o sentimento – que cremos, louvamos e bendizemos ao Senhor nosso Deus! Leia Eclo 3,30 – 4,10/3,33 – 4,11; 29,8-11/11-14. Leia ainda o comovente texto de Lc 21,1-4. Nossa adesão ao Cristo Jesus deve impregnar nossa alma e nosso corpo, nossa vida espiritual e material!

7. Finalmente, a oração. Aqui, não há muito em que insistir: o Senhor Jesus rezou, ensinou-nos a rezar e muitas vezes nos ordenou rezar. Veja, por exemplo: Lc 11,1-13; Mc 14,32-42; Hb 5,7. Toda a Escritura, de modo geral, e o Novo Testamento, de modo particular, dão testemunho disto. Leia Fl 4,6-7; 1Ts 5,16. A inteira Tradição da Igreja insiste nisto! Já tratamos da oração ao longo destas meditações. Baste-nos recordar agora que a oração nos abre para Deus, faz-nos reconhecer que somos criaturas Dele, que Dele dependemos e que Ele cuida de nós, Ele é presente e atuante na nossa vida. Quem reza vai deixando o Senhor Deus ser verdadeiramente presente na sua vida; quem não reza, termina por tornar-se um ateu prático: ainda que diga que crê, Deus, de verdade, concretamente, já não tem importância nem incidência na vida concreta de alguém assim!

8. Faça, agora, um sério exame de consciência sobre estas práticas cristãs tão seriamente recomendadas pelas Escrituras Santas e pela inteira tradição da Igreja: Como vai sua vida de oração? Como você reza? Qual o lugar para o jejum, a abstinência de carne e a mortificação na sua vida cristã? Como está a prática da esmola: a ajuda aos necessitados, o dízimo, as obras de misericórdia corporais e espirituais?
Somente para recordar:

a) O jejum pode ser (1) a privação total de refeição num dia; (2) o alimentar-se somente de pão e água; (3) o fazer somente uma refeição completa ao meio-dia e comer parcamente nas outras duas, de modo que, juntas, não cheguem a uma refeição completa. Jejua-se obrigatoriamente na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira da Paixão. É recomendável o jejum também no Sábado Santo.

b) A abstinência de carne é o não se alimentar de carne de animais de sangue quente às sextas-feiras do ano, em honra da Paixão do Senhor. Isto vale também para a Quarta-feira de Cinzas e é muito recomendado para o Sábado Santo.

c) Quanto à mortificação, é a renúncia, por amor a Cristo, a algo de que gostamos, a algo que nos dá satisfação ou prazer, como um modo de oferecer nossa vontade e nossa privação ao Senhor e disciplinar nossos sentidos, fortalecendo nossa vontade. Leia Lc 21,34-36.

9. Reze o Sl 41/40. Observe a bênção no fim do Salmo. É a conclusão da primeira parte do Saltério! Veja as outras conclusões: Sl 72/7118-19 e Sl 106/105,48. Veja a conclusão final do Saltério: o apoteótico Sl 150.




quinta-feira, 26 de março de 2020

Retiro Quaresmal 2020/26 - "Felizes os que se abrigam no Senhor!" (Sl 2,12)

Quinta-feira da IV semana da Quaresma
Meditação XXV: Delicadezas, luz e bênçãos

Reze o Salmo 119/118,17-24
Leia, agora, como lectio divina Tb 11.

1. Observe bem os vv. 1-3. Se os anjos, como já vimos, são expressão do cuidado providente de Deus em relação aos homens, veja como Rafael, aqui, é expressão da delicadeza de Deus (vv. 1-3). O Senhor cuida de nós, o Senhor não é um Deus distante, mas a Sua providência envolve o universo e permeia todos os aspectos da nossa vida. No mundo da pressa, do ativismo e da tecnologia, a tentação do ser humano é já não mais ser atento a esta silenciosa presença do Senhor... Pare um pouco; pense no dom totalmente gratuito que é a sua existência... Pense nas suas preocupações... Coloque-as nas mãos do Senhor. Reze o Sl 131/130.

2. Agora, vamos nos deter numa personagem que aparece discretamente no decorrer de todo o Livro de Tobias, ora de modo simpático ora de modo reprovável: trata-se de Ana, esposa do velho Tobit e mãe do jovem Tobias. Seu perfil é tão humano. Vejamos: ficou ao lado do esposo quando ele foi castigado por cumprir a Lei de Moisés e perdeu tudo, chegando mesmo a ter que fugir (cf. 1,20); na cegueira de Tobit, quando ele estava na miséria, de esmola, essa mulher trabalhou para fora para ajudar o esposo (cf. 2,11-12); no lar sob a tensão da miséria e da desventura, sofreu injustamente o estresse de Tobit, que desconfiou da integridade da esposa, acusando-a erradamente de roubo (cf. 2,14); perdeu a paciência e extravasou toda a sua tensão e desgosto, excedendo-se e sendo insensata, ao fazer pouco das boas obras e da piedade do esposo, chegando quase a desafiar a Deus (cf. 2,14). Ana parece ter sido mãe amorosa e cheia de generosidade (cf. 4,3s); mostra sensibilidade e profundo amor pelo filho, colocando-o acima de bens e comodidades (cf. 5,18 – 6,1/5,23-28); lamenta intensamente a possível perda do filho querido (cf. 10,4-7); espera o filho com todo o coração, esperando contra toda esperança (cf. 11,5) e com instinto próprio do amor materno, o pressente (cf. 11,6); como o pai do filho pródigo, de modo comovente, corre ao filho e se lança ao seu pescoço (cf. 11,9; Lc 15,20); louva a Deus pela cura do marido (cf. 11,16, segundo a Vulgata).
Observe: Tobit e Ana não são perfeitos, mas ambos se amam – basta pensar na fidelidade desta àquele e no cuidado daquele pela esposa; ambos amam o filho de dele cuidam; ambos temem a Deus e O honram, mesmo nos momentos de tristeza e tensão; ambos são amados e respeitados pelo filho Tobias (cf. 10,7; cf. Eclo 7,27s/29s). Pense um pouco: a família é sagrada, é desejada pelo Senhor e santificada pelo sacramento do matrimônio. Na vida familiar, ninguém é perfeito e irretocável, mas todos os membros, diante de Deus e na convivência recíproca, vão se aperfeiçoando no diálogo, na cooperação, na paciência, no perdão, no amor construído dia a dia. Leia Cl 2,12 – 4,1. A vida, as atitudes, o ambiente doméstico, deveriam ser marcados em Cristo pelas palavras do Apóstolo em Cl 3,12. Agora, pense na sua vida familiar. Pense nas suas atitudes em casa... Sua presença é construtiva? Suas atitudes ajudam para que sua família seja um ambiente agradável e aconchegante em Cristo? Como você enfrenta as tensões e dificuldades da vida doméstica?

3. Agora, vamos a Tb 11,7-14a, momento tão esperado da narrativa: a cura do velho Tobit! Finalmente, o significado do seu nome vai se confirmar: o Senhor é bom! Com o fel do peixe, as manchas dos olhos de Tobit regridem e se lhe retiram dos olhos algo como escamas. Assim, o ancião cego pôde ver novamente a luz. Compare esta narrativa com Jo 9, 1-7. Observe: Tobias sopra nos olhos do pai; Jesus nosso Senhor mistura a saliva (o sopro feito líquido no barro e faz lama); Tobias unge os olhos do pai com o fel; Jesus Cristo unge os olhos do cego com a lama. Tobit e o cego de nascença veem a luz deste mundo. Mas, o Senhor Jesus vai além: deixamos de ser cegos realmente quando vemos outra Luz! Tobit, enxergando, reconhece a ação de Deus e O bendiz; o cego de nascença deverá ver com os olhos do coração o Messias, Filho do Homem. Leia Jo 9,35-38. Quando vemos com os olhos da fé que Jesus é o Filho do Homem, o Enviado do Pai, e somos lavados na Sua piscina batismal (cf. Jo 9,7), é aí, então, que enxergamos verdadeiramente! É Ele a Luz do mundo (cf. Jo 8,12), Aquela Luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem (cf. Jo 1,19), de modo que é preciso decidir-se por Ele: quem caminha com Ele, verá de verdade; quem para Ele se fecha, ainda que pense enxergar, permanece cego (cf. Jo 9,39). A Luz definitiva não são as culturas, a ciência, as correntes filosóficas, as ideologias; a Luz é Jesus nosso Senhor! Leia At 9,3-19. Observe também aí: Saulo pensava enxergar, mas era cego; a Luz de Cristo cega-o para este mundo. Crendo no Senhor e sendo batizado, caem-lhe as escamas dos olhos e ele passa a enxergar de verdade, passa a enxergar claramente que Jesus é o Cristo de Deus, o Messias de Israel, o Salvador! Reze o Sl 36/35.

4. A oração de Tobias (cf. 11,13-15/16-17) é uma bênção típica do judaísmo, como já vimos. Impressiona a mentalidade dos fieis e humildes do Senhor: não cobram direitos adquiridos diante do Eterno, não acham que Deus lhes deve alguma explicação. Observe: “Bendito seja Deus! Bendito seja Seu grande Nome! Porque Ele me havia punido e de novo se compadeceu de mim!” Os humildes têm esta clareza: o Senhor tem sempre a nossa vida nas Suas mãos e tudo quanto nos acontece pode ser convertido em bem. Aqui, vale bem a palavra da Didaqué, catequese cristã do século I: “Tu aceitarás os acontecimentos da vida como sendo bons, sabendo que a Deus nada daquilo que acontece é estranho” (III,10). Leia Eclo 11,12-28/30; 18,1-14/13. Aí aparece bem o quanto a vida é fugaz e o quanto o homem está nas mãos do Senhor! O humilde percebe e confia ao Senhor a sua existência; o soberbo exclama: “Deus não existe!” Reze o Sl 53/52. Inspirado na oração de Tobit (cf. 11,13-17a), faça você agora a sua oração de ação de graças e bênção ao Pai, por Cristo nosso Senhor!

5. Releia as palavras de Tobit a Sara, sua nora. Ele deseja que Sara viva “na alegria e na bênção” (Tb 11,17). Viver na bênção é viver debaixo da ação amorosa e providente do Senhor, caminhando sempre debaixo dos Seus cuidados. Mas, para isto é necessário caminhar diante do Senhor na obediência aos Seus preceitos, abrindo-se para Ele, deixando que Ele e o Seu Reino entre na nossa vida. É o que Jesus nosso Senhor veio anunciar e trazer em plenitude (cf. Mc 1,14s). Isto exige conversão contínua, para que não vivamos fechados em nós mesmos. Isto seria viver na maldição (cf. Dt 11,26-28). Para finalizar, reze o Sl 1.


quarta-feira, 25 de março de 2020

Retiro Quaresmal 2020/25 - "Felizes aqueles que se abrigam no Senhor!" (Sl 2,12)

Quarta-feira da IV semana da Quaresma
Meditação XXIV: Um Deus docemente presente

Reze o Salmo 119/118,9-16
Detenhamo-nos ainda em Tb 9-10. Releia esta perícope como lectio divina.

1. Releia as palavras de Gabael a Tobias, em 9,6. Elas retomam muitos dos temas que já vimos nas meditações passadas... A Vulgata, a tradução feita por São Jerônimo, apresenta um texto mais completo dessas palavras: “Que o Deus de Israel te abençoe porque és filho de um homem de bem, justo, piedoso e esmoler. Abençoe também a tua mulher e os vossos pais, até a terceira e a quarta gerações! Bendita seja a vossa raça pelo Deus de Israel, que reina em toda a eternidade! Amém.” (Tb 9,9-12a, segundo a Vulgata - cf. Tradução da Ave Maria)

2. Agora veja Tb 10,1-3.7ab. Compare com Lc 15,11-13.20b-24. Na angústia desses pais e da mãe de Tobias, podemos entrever o amor do Coração do Pai dos Céus por todos nós! Foi este amor que Jesus nosso Senhor quis revelar com o Seu amor e a Sua misericórdia. Leia todo o capítulo 15 de São Lucas, sobretudo os vv. 7.10. Veja também Mt 7,7-11. Agora recorde Gn 22 e Rm 8,31-33. Estes textos nos dão uma pálida ideia do amor do Pai ao nos entregar o Seu Unigênito (cf. Jo 3,16).

3. Retome os vv. 11-13. São simples, feitos de alegria e piedade genuína. Observe:

(a) O profundo sentimento de pertença ao mesmo povo, ao mesmo sangue: irmão, filho, mãe, pai são palavras que aparecem a todo instante... Mais uma vez, recorde dos “irmãos de Jesus”, sobre os quais já falei antes... Este parentesco segundo a carne, na Nova Aliança, torna-se parentesco segundo o Espírito de Cristo: todo aquele que crer no Senhor Jesus Cristo e Nele for batizado é da Sua família, a Igreja, novo Povo de Deus, nascido não da carne ou do sangue, mas do Espírito de Deus! Por isso mesmo, em Cristo, somos todos irmãos verdadeiramente, pois nascemos da mesma pia batismal e fomos regenerados no mesmo Espírito Santo!

(b) Aparece também aqui a consciência sempre presente de que o Senhor está próximo dos Seus servos para protegê-los e guiá-los. Uma das grandes riquezas do homem antigo era esta profunda consciência da presença do Senhor. Hoje, tornamo-nos míopes para esta bendita presença e ação do Eterno. Nosso cientificismo, nosso apego à tecnologia, nossa vida empapada da satisfação dos sentidos corporais, nossa incapacidade de parar, meditar, rezar, silenciar, contemplar, tornaram-nos obtusos, fechados para o invisível. Somente consideramos real e efetivo o que cai no raio dos nossos sentidos e cabe na gaiola da nossa razão discursiva, analítica. Assim, bitolado em si mesmo e no seu mundozinho, o homem atual tornou-se pequeno, sozinho, sem graça... Reze o Sl 124/123.

(c) Encanta e causa santa inveja também a doçura e a riqueza da vida familiar. No seio da família, a pessoa se faz, se define, se constrói. Na família, ama e é amada; sai de si e se enriquece lançando-se no amor aos demais. Também nisto o homem atual é solitário, perdendo mais e mais os vínculos familiares, esquecendo de construir convivência, interação, partilha de tempo, bens, amor, vida... Mesmo entre os que creem, as relações familiares vão sendo reduzidas a relações meramente horizontais, seculares, perdendo-se o sentido do caráter sagrado das relações entre esposo e esposa, entre pais e filhos, entre irmãos, entre mais velhos e mais novos... Aqui é necessário perguntar-se pelas relações no interior da sua família... E você, como se coloca em tudo isto?

(d) Observe ainda quantos conselhos, quantos cuidados em construir relações, em criar vínculos, em cuidar para que a vida familiar seja cultivada, cresça e frutifique. Quais atitudes na sua família cultivam a vida familiar? Quais atitudes a deterioram e a destroem?

3. Agora, como Tobias, no v. 13, bendiga ao “Senhor do Céus e da terra, Rei de todas as coisas”, porque tudo Ele tem em Suas mãos benditas e, se Lhe formos fieis e obedientes, descobriremos sempre a Sua bendita presença em nossa vida e na vida dos que amamos. Peça a Nosso Senhor a graça de olhos que vejam, de coração que sinta e compreenda que o amor do Senhor enche o universo e penetra todas as coisas; como um Pai se compadece dos seus filhos, Ele Se compadece de cada um de nós! Reze o Sl 103/102.


terça-feira, 24 de março de 2020

Retiro Quaresmal 2020/24 - "Felizes aqueles que se abrigam no Senhor!" (Sl 2,12)

Terça-feira da IV semana da Quaresma
Meditação XXIII: Abençoados no Senhor Jesus Cristo

Reze o Salmo 119/118,1-8
Como lectio divina, tome ainda Tb 8-9. Depois, vá até o capítulo 10.

1. Antes de continuarmos com este capítulo 8 e seguirmos adiante, é preciso que voltemos ainda um pouco ao capítulo 7 para duas observações importantes.

a) Veja os vv. 11-13: três vezes está dito que o matrimônio de Tobias e Sara será regido “segundo a sentença da Lei de Moisés”. Moisés é o Legislador do Povo de Israel e a Torá, a Lei, é o critério último de todos os aspectos da vida do Povo do Antigo Testamento. Mas, como diz o Evangelho de João, “a Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (v. 17). Qual é, portanto, o critério último da vida do cristão? Qual é a sua norma? Qual a sua lei? É Cristo Jesus! Leia Lc 16,16s. Em Jesus nosso Senhor, a Lei foi cumprida; alcançou seu objetivo, cada vírgula foi cumprida. Agora, com Cristo, a Lei passou! Assim, o matrimônio entre dois cristãos não é segundo o mundo, não é simplesmente segundo a lei civil de cada país, não é segundo o Antigo Testamento, quando não se tinha a ideia de sacramento e o divórcio era permitido. O matrimônio cristão é um sacramento: sacramento do amor entre o Cristo-Esposo e a Igreja-Esposa (cf. Ef 5,32), e os cristãos casam-se “no Senhor” (cf. 1Cor 7,39). É por isso que o matrimônio cristão deve sempre ter as mesmas propriedades da aliança de amor conjugal entre Cristo e a Igreja: a fidelidade, a fecundidade e a indissolubilidade. Já falei sobre isto numa meditação mais acima (cf. Meditação XX: Um amor forte como a morte).
Compreende você que a estrutura do matrimônio e a sua finalidade e propriedades não podem ser alteradas pelo homem e nem mesmo pelos cônjuges? Compreende que o matrimônio e a família são realidades queridas por Deus, estruturadas por Deus e santificadas e elevadas em Cristo à sublime dignidade de sacramento? Pense nisto! Reze pela sua família; reze pelas famílias cristãs, para que tenham consciência de tão grande realidade. Peça, interceda, suplique pelos jovens cristãos, para que vivam o namoro, o noivado e o matrimônio com esta consciência!

b) Em Tb 7,12, Raguel, o pai de Sara, realiza o matrimônio entre os jovens, dando-lhes a bênção. Na tradução da Vulgata, a Bíblia latina oficial da Igreja, o texto é mais extenso: “Pegando a mão direita de sua filha, pôs na mão direita de Tobias, dizendo: ‘O Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó esteja convosco! Que Ele mesmo vos una e vos cumule com a Sua bênção!’” (Tb 7,15 da Vulgata). Esta bênção inspirou a liturgia da Igreja numa de suas bênçãos matrimoniais: “O Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, o Deus que abençoou os nossos primeiros pais no Paraíso, confirme e abençoe em Cristo este compromisso que manifestastes perante a Igreja. Ninguém separe o que Deus uniu”.
Deixo para você também esta bênção que o ministro sagrado dá aos esposos: “Pai santo, criador do universo, Vós fizestes o homem e mulher à Vossa imagem, e quisestes cobrir de bênçãos a sua união. Nós vos pedimos por estes Vossos servos, que hoje se unem pelo sacramento do Matrimônio. Desçam as Vossas copiosas bênçãos sobre esta esposa e sobre o seu companheiro de vida. Que a força do Vosso Espírito inflame, do Alto, os seus corações. Assim, encontrando a felicidade no amor conjugal, adornem de filhos o seu lar, enriqueçam a Igreja com novos membros e sirvam a todos de exemplo. Na alegria Vos louvem e, na tristeza, Vos procurem, sintam em seus trabalhos, Vossa assistência, e nas aflições, Vosso consolo. Que eles celebrem com seus irmãos a sagrada Liturgia e deem ao mundo o testemunho do Vosso amor. Enfim, após uma vida longa e feliz, depois de terem visto os filhos dos seus filhos, possam, com os amigos que os cercam, chegar ao Reino do Céus. Por Cristo, nosso Senhor”.

2. Agora, feitas as duas observações quanto ao capítulo 7, vamos adiante. Este capítulo 8 tem algo de tragicômico: o velho Raguel, precavido, manda logo cavar o túmulo para Tobias e, quando constata que o genro não morreu, manda fechá-lo imediatamente (vv. 10/11s.18/20). Raguel está longe daquela fé madura, sofrida e serena de Abraão... Também nós, muitas vezes, somos como este Raguel ou como Jacó, que, em Betel, colocou tantas condições para crer, para dizer “o Senhor será o meu Deus”. Leia Gn 28,20-22. Quantos “se”... E você: crê com um coração de criança? Crê abandonando-se verdadeiramente ao Senhor, com um coração de pobre? Vale a pena ler e rezar Hb 11. Quando não cremos com fé serena, profunda e madura, sentimo-nos como joguetes nas mãos de um destino cego e absurdo; então, sentimos solidão, impotência e pavor... Quem crê verdadeiramente, encontra no Senhor a sua força e a sua esperança. Leia Eclo 2,6-18/22.

3. Leia a oração de Raguel com o coração grato ao Senhor, que é providente e fiel (cf. vv. 15-17/17-19). Depois de constatar a graça providente do Senhor, ele bendiz a Deus! Observe como a bênção é a oração central dos judeus: “Bendito és, ó Deus! Bendito sejas, Senhor nosso Deus”. Compare com Tb 3,11; 8,5/7; 11,14/17; 13,1; 14,15. Na tradição judaica, bendizer e agradecer são inseparáveis. A maior ação do homem é bendizer a Deus, isto é, “dizer bem” Dele pelos Seus benefícios. É este o sentido da bênção! “Bem-dizer” (dizer bem) é o mesmo que abençoar, é dizer “bendito sejas!”, reconhecendo a bondade do Altíssimo. O Senhor nos abençoou primeiro: no princípio (cf. Gn 1,28; 2,3), no recomeço da humanidade (cf. Gn 9,1), no início do Povo de Israel (cf. Gn 12,2s) e nós O abençoamos como ação de graças, como agradecimento jubiloso e confiante pela benção que Ele nos concede.
Agora pense: qual a bênção por excelência que o Senhor Deus nos concedeu? Foi dar-nos Jesus Cristo e, através Dele, todo bem e toda graça. Leia Ef 1,3b-14. Observe bem e você verá que, misteriosamente, o Senhor Deus abençoou não somente os tempos da Nova Aliança, mas, desde “antes da fundação do mundo”, toda bênção vem pelo Cristo nosso Senhor! Com a Igreja diz ao Pai, na Liturgia, referindo-se ao Filho glorificado: “por Ele dais ao mundo todo bem e toda graça”. Ora, qual a nossa resposta a tamanha bênção, que tudo recobre? Qual a nossa atitude? Abençoar ao “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, com toda ação de graças (em grego se diz “eucaristia”). Leia Ef 1,3. A bênção por excelência, a ação de graças por excelência de Deus para nós e de nós para Deus é o Sacrifício eucarístico. Leia 1Cor 10,16s: o pão e o vinho, na Eucaristia, são transformados em bênção, em ação de graças ao Senhor por Cristo, com Cristo e em Cristo, ao Pai no Espírito Santo. Foi o que a Igreja aprendeu do seu Senhor. Leia 1Cor 11,23-27.

4. Reze com a Igreja: “Na verdade, Vós sois santo, ó Deus do universo, e tudo que criastes proclama o Vosso louvor, porque, por Jesus Cristo, Vosso Filho e Senhor nosso, dais vida e santidade a todas as coisas e não cessais de reunir o Vosso Povo, para que Vos ofereça em toda parte, do nascer ao pôr do sol, um Sacrifício perfeito. Por isso, nós Vos suplicamos: derramai o Vosso Espírito Santo sobre as oferendas que Vos apresentamos para serem consagradas, a fim de que se tornem o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo, Vosso Filho e Senhor nosso, que nos mandou celebrar este Mistério: estando para ser entregue, Ele tomou o pão, deu graças e o partiu... Do mesmo modo, ao fim da Ceia, Ele tomou o cálice, deu graças novamente e o deu aos Seus discípulos... Fazei isto em memória de Mim!”

5. Releia, agora, Tb 8,18-21/20-25. Como se celebra bênção do Senhor, a alegria, a vida, o matrimônio? Com um banquete farto, prolongado, sinal da alegria de Deus com os Seus servos e dos servos com o Altíssimo. Este banquete e todos os banquetes dos amigos de Deus preparam e recordam aquele Banquete que o Senhor Deus nos preparou no Seu Filho Jesus Cristo. Leia Is 25,6-9. Sentar-se à mesa do banquete, comer a mesma comida, alegrar-se com o mesmo vinho significa partilhar a mesma vida! Participar do Banquete que o Senhor Deus nos prepara é participar da Vida de Deus, Vida divina, Vida eterna! Leia Ap 19,6-9; Mt 22,1-14. Por isso, o Sacrifício eucarístico é em forma de banquete, o Banquete das núpcias do Cordeiro com a Igreja, humanidade redimida, o Banquete do Reino de Deus, pois ali, no Altar sagrado feito Mesa dos Céus, o homem já se alimenta na terra do alimento do mundo que há de vir, já come neste tempo o Pão da Eternidade (cf. Jo 6,32-35; Ap 2,17a), o Pão que alimenta os anjos (cf. Sb 16,20; Sl 78/77,24s), o Pão da plenitude do Reino de Deus (cf. Lc 14,15; 22,17s), Pão que é o Cordeiro para sempre imolado e vitorioso, “de pé, como que imolado” (Ap 5,6)“vencedor e para vencer ainda” (Ap 6,2)! Isto é o Banquete eucarístico, o Sacrifício da Missa, respiro do mundo, novidade que não passa, penhor do mundo que há de vir, sacramento da salvação!

6. Ainda tomando a oração de Raguel, observe como o Senhor tem nas mãos os dias e caminhos da nossa vida: “Bendito sejas por me haveres alegrado, por não ter sucedido o mal que eu temia!” Nos nossos dias de plena confiança na ciência e na tecnologia, o homem teme e fica somente no seu temor... E permanecer no temor conduz à angústia e ao desespero. Feliz aquele que recolhe o seu temor diante do Senhor nosso Deus, que tem nas Suas mãos benditas a nossa existência: “Quanto a mim, Senhor, confio em Ti, e digo: ‘Tu és o meu Deus! Meus tempos estão em Tua mão: liberta-me da mão dos meus inimigos e perseguidores! Faze brilhar Tua Face sobre o Teu servo, salve-me por Teu amor! Senhor, que que não me envergonhe de Te invocar!’” (Sl 31/30,15-18a) Ah, se o mundo soubesse gritar ao Senhor assim; se cada um compreendesse que o Senhor não é um Deus de longe, frio, ausente, mas, nas nossas aflições e apertos, Ele está sempre presente! De uma coisa deveríamos sempre ter plena segurança: o Senhor nos trata sempre segundo a Sua misericórdia e Sua compaixão! Reze o Sl 121/120.

7. Agora, pensando nos benefícios do Senhor, abençoe a Deus, dando-Lhe graças, com o Sl 136/135. Observe que este salmo começa dando graças a Deus pela Sua majestade na Glória, depois, passa para criação do céu e da terra com todas as suas criaturas; posteriormente, passa para a história do Povo de Israel e, para terminar, dá graças ao Senhor porque Ele continua cuidando de todas as Suas criaturas. Pense na sua vida, pense nas tantas e tantas coisas para dar graças a Deus e continue o salmo com as suas palavras, dando graças e bendizendo ao Senhor pelo que Ele fez na sua vida e na vida das pessoas às quais você ama!