quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Advertência para a noite...

“Esta noite, vós ficareis escandalizados por Minha causa..” (Mt 14,31)

Quando Deus criou o mundo, começou dizendo: “Haja luz!” (Gn 1,3) Fez-se a luz! Deus é o Autor da luz; Ele separou a luz das trevas.

A Luz veio ao mundo. Jesus mesmo disse: “Eu sou a luz do mundo! Eu, a luz, vim ao mundo!” (Jo 8,12; 12,46)

A Luz veio ao mundo, mas as trevas não A compreenderam...
E agora, nestes dias, nestes tempos, é a hora das trevas; a hora da noite... Trevas densas, amedrotadoras, noite fechada, muitas vezes, nos modos e lugares e situações que menos imaginaríamos...

Jesus previne os Seus discípulos: “Esta noite, escandalizar-vos-eis por Minha causa!”...

É uma advertência tremenda, esta, do Senhor!
Quantas vezes nas noites da vida – “Esta noite”, seja quando ela for... – a nossa enorme tentação é a de nos escandalizarmos, isto é, de tropeçarmos em Jesus, não mais O vendo, já não mais O compreendendo, duvidando Dele, do Seu amor, da Sua presença, da Sua providência, do Seu cuidado conosco...
“Esta noite – noite de uma doença, de uma derrota, de uma perda, de uma decepção, de um fracasso, da percepção tenebrosa do mal, da dissimulação, da ambiguidade perniciosa e da mentira que parecem dominar tudo, noite da morte –, esta noite, vos escandalizareis Comigo, porque não sou como gostaríeis, porque antes de responder às vossas respostas Eu faço as perguntas e subverto o vosso modo de pensar e as vossas expectativas...
Sou o Messias do Pai, mas não sou o messias de encomenda que gostaríeis que Eu fosse. Caminhar Comigo exige que vos convertais a Mim, que mudeis vosso modo de pensar, de perceber, de agir...”

Noite no mundo, noite na Igreja, noite na vida, noite no nosso coração...
“Esta noite, vós vos escandalizareis por causa de Mim... Vigiai, orai!”


segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Os Sacramentos - Quem os instituiu?

Voltamos, com este texto, a falar sobre os sacramentos. Seria bom que você relesse os outros três que já escrevi. As questões que vamos responder agora são: Foi Cristo quem instituiu os sacramentos? Como os instituiu? Como entender este conjunto de sete gestos? Quem celebra os sacramentos? Com que objetivo?

Quem instituiu os sacramentos e como os instituiu?

É convicção da Igreja que os sacramentos todos foram instituídos por Cristo. Somente assim eles têm, de fato, um valor salvífico verdadeiro, pois nenhuma instituição meramente humana poderia conceder eficazmente a graça se esta não fosse concedida pelo próprio Senhor, autor da graça e doador do Espírito. Corrigindo os erros de Lutero e Calvino, pais do protestantismo, o Concílio de Trento ensinou de modo infalível, com a autoridade que Cristo deu aos Apóstolos e seus legítimos sucessores, os Bispos: “Se alguém afirmar que os sacramentos da nova lei não foram todos instituídos por Jesus Cristo, nosso Senhor... seja anátema” (Denz 1606).
Mas, onde, na Bíblia aparece a instituição dos sete sacramentos, um por um? Antes de responder esta questão é necessário compreender o que o Concílio quis afirmar com a palavra “instituir”. Quando estudamos as atas do Concílio de Trento, vemos explicado lá que os Bispos participantes do Concílio afirmaram que Cristo “instituiu” no sentido que é Ele, Jesus Cristo, diretamente, quem confere eficácia, poder e efeito ao rito celebrado. Em outras palavras: a força do sacramento vem de Cristo e só Dele, é manifestação da Sua obra de salvação. Os sacramentos não são, como dizia erradamente Calvino, instituições da Igreja. Para compreender isto é necessário reler o que escrevi sobre Jesus Cristo, o Sacramento primordial e sobre a Igreja, sacramento de Cristo! Jesus é a presença de salvação, visível e eficaz, de Deus no nosso meio – por isso Ele é o Sacramento do Pai; a Igreja, por sua vez, sustentada e impregnada da força da Espírito de Cristo, é continuadora da presença do Senhor ressuscitado e operante: o Cristo Senhor fez dela sinal visível e eficaz de Sua Palavra e de Sua ação – ela é sacramento de Cristo! Então, ao instituir a Igreja, o Senhor Jesus tinha a intenção clara que ela fosse sacramento da Sua presença e que seus gestos e palavras fossem sinais eficazes da Sua ação e da Sua presença. É isto que o Concílio tridentino deseja ensinar dogmaticamente, sem entrar na questão do modo e do tempo da instituição de cada sacramento em particular e sem afirmar se Cristo estabeleceu a última e detalhada especificação de cada sacramento. É a Igreja que, ouvindo e meditando as Escrituras do Antigo e do Novo Testamento, escutando os seus santos doutores de todas as épocas e discernindo os próprios sentimentos e caminhos que o Espírito de Cristo foi suscitando no seu seio, foi discernindo e identificando com sempre maior consciência a vontade a ação do Senhor nos ritos sacramentais.
Neste sentido, toda a Igreja é sacramental: Jesus, nosso Senhor, não quis apenas os sete sacramentos; quis muito mais: desejou a própria estrutura sacramental da Igreja; quis que Sua presença graciosa e salvífica fosse vista, concreta, palpável nos ritos, gestos, ação de serviço que a Igreja realiza entre os homens. É isto que o Concílio de Trento quis ensinar: a estrutura sacramental da Igreja não vem nem dos Apóstolos nem da própria Igreja, mas soberanamente do próprio Cristo Jesus, Sacramento primordial! E isto é dogma de fé!

Insisto nesta observação importante: o Concílio de Trento não quis entrar na questão de como cada sacramento foi instituído pelo Senhor Jesus durante a Sua vida terrena e muito menos se preocupou em catar versículos da Escritura para provar, tintim por tintim a instituição de cada sacramento. Esta tarefa a Igreja deixa para o estudo dos exegetas e teólogos! Interessa à Igreja que, biblicamente, está mais que dito que Cristo fez de Sua Igreja sacramento de Sua presença, prolongamento de Seus gestos e palavras salvíficos! No entanto, isto não significa que não possamos ver no próprio Novo Testamento o embrião da prática de cada um dos sacramentos. Vejamos somente alguns exemplos – existem outros:

- para o Batismo“Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus”(Jo 3,5); “Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...”(Mt 28,19).

- para a Eucaristia“Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e pronunciou a bênção. Depois, partiu o pão e o deu aos discípulos, dizendo: ‘Tomai e comei, isto é o Meu corpo’. Em seguida, tomando um cálice, depois de dar graças, deu-lhes, dizendo: ‘Bebei dele todos, pois isto é o Meu sangue, o sangue da Aliança, derramado por muitos, para o perdão dos pecados’” (Mt 26,26ss; cf. Mc 14,22-24; Lc 22,19s; 1Cor 11,24s).

- para a Penitência“Em verdade vos digo: tudo quanto ligardes na terra será ligado no Céu e tudo quanto desligaredes na terra será desligado no Céu” (Mt 18,18); “Após essas palavras, soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados serão perdoados. A quem não perdoardes os pecados não serão perdoados’” (Jo 20,22s).

- para a Confirmação“Quando os apóstolos, que estavam em Jerusalém, ouviram que a Samaria recebera a Palavra de Deus, enviaram para lá Pedro e João. Estes, assim que chegaram, fizeram uma oração pelos novos fiéis a fim de receberem o Espírito Santo, visto que ainda não havia descido sobre nenhum deles. Tinham sido somente batizados em Nome do Senhor Jesus” (At 8,14ss); “Ouvindo isso, foram batizados em Nome do Senhor Jesus. Pela imposição das mãos, Paulo fez descer sobre eles o Espírito Santo. Falavam em línguas e profetizavam” (At 19,5s).

- para a Ordem“E tomando um pão, deu graças, partiu-o e deu-lhes dizendo: ‘Isto é o Meu corpo, que é dado por vós. Fazei isto em memória de Mim’” (Lc 22,19); “Por este motivo eu te exorto reavivar a chama do dom de Deus que recebeste pela imposição das minhas mãos” (2Tm 1,6).

- para o Matrimônio“Não lestes que no princípio o Criador os fez homem e mulher e disse: Por isso o homem deixará o pai e a mãe para unir-se à sua mulher, e os dois serão uma só carne? Assim, já não são dois, mas uma só carne. Não separe, pois, o homem o que Deus uniu” (Mt 19,4-9); “Sujeitai-vos uns aos outros no temor de Cristo. Maridos, amai vossas esposas, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela... Quem ama sua mulher, ama a si mesmo. Decerto, ninguém odeia sua própria carne mas a nutre e trata como Cristo faz com Sua Igreja, porque somos membros de Seu corpo. Por isso deixará o homem o pai e a mãe e se unirá à sua mulher, e serão os dois uma só carne. Grande é este mistério. Quero referir-me a Cristo e Sua Igreja (Ef 5, 21-32).

- para a Unção dos enfermos“Há algum enfermo? Mande, então, chamar os presbíteros da Igreja, que façam oração sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor. A oração da fé salvará o enfermo e o Senhor o levantará e, se tiver cometido pecado, será perdoado” (Tg 5,14s).

Compreenda-se bem: estes textos não são provas do momento em que os sacramentos foram instituídos! Eles simplesmente mostram como o embrião de cada ação sacramental da Igreja estava presente na ação de Cristo e dos Apóstolos por Ele enviados! Assim, todos e cada sacramento remota a Cristo, que fez de Sua Igreja sacramento de salvação! O Catecismo da Igreja afirma isto de modo muito belo: “As palavras e as ações de Jesus durante Sua vida oculta e durante Seu ministério público já eram salvífica. Antecipavam o poder do Seu Mistério Pascal. Anunciavam e preparavam o que iria dar à Igreja quando tudo fosse realizado. Os mistérios da vida de Cristo são os fundamentos daquilo que agora, por meio dos ministros de Sua Igreja, Cristo dispensa nos sacramentos, pois aquilo que era visível em nosso Salvador passou para Seus mistérios. Os sacramentos são forças que saem do Corpo de Cristo, sempre vivo e vivificante; são ações do Espírito Santo operante no Corpo de Cristo, que é a Igreja; são as obras-primas de Deus na Nova e Eterna Aliança” (nn. 1115s).

No próximo texto continuaremos: Como a Igreja chegou a compreender estes sete gestos sagrados como sacramentos: por quê sete? e para quê?


sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Homilia para o XXX Domingo Comum - ano c

Eclo 35,15b-17.20-22a
Sl 33
2Tm 4,6-8.16-18
Lc 18,9-14


Certamente, como no Domingo passado, caríssimos Irmãos, a Palavra do Senhor que a Igreja nos faz ouvir nesta santíssima Eucaristia trata ainda da oração; e da oração humilde, aquela que no dizer do Eclesiástico, “atravessa as nuvens e enquanto não chegar não terá repouso; e não descansará até que o Altíssimo intervenha”.
Vede, irmãos, que aqui, como há oito dias, ainda se fala da súplica, ainda se fala da perseverança, da teimosia em pedir e pedir e continuar pedindo sem repouso, até que o Altíssimo intervenha, como interveio para justificar o pobre e humilde publicano do Evangelho que escutamos e para salvar o Apóstolo de todo mal.

Mas, permiti que vos mostre um outro tema, anterior ao da oração, fundamento de toda oração, que também aparece hoje.
Ouvistes o Eclesiástico? Que diz? Afirma que o Senhor não discrimina ninguém, que não é parcial nos Seus juízos, que escuta a oração do oprimido, que nunca despreza o pobre e o órfão, que acolhe a prece do humilde... Afirmações comoventes!
Mas, atenção: é isto que vemos ao nosso redor? Ah, quanta dor não sarada, quanta lágrima não estancada, quanta tristeza não consolada, quanta morte não redimida! E o publicano, que o Senhor Jesus garantiu que voltou para casa justificado? Quem viu a justificação? Viu-se a empáfia do fariseu orgulhoso, viu-se a humilhação do publicano... Mas, a justificação, quem a viu? E o Apóstolo, na Epístola que escutamos? Combateu perseverante o bom combate, completou fiel a corrida, guardou firme a fé. E o que ganhou? O abandono dos irmãos mais próximos, a solidão na hora de comparecer ao tribunal e a certeza de que seria condenado à morte! É verdade que ele, esperançoso e fiel, garante: “O Senhor me libertará de todo mal e me levará para o Seu Reino celeste”. Mas, quem viu? Viu-se o abandono no tribunal, viu-se o sofrimento, viu-se a condenação e a decapitação... Mas, ninguém viu a entrada no Reino celeste...

Não vos escandalizeis, irmãos! Não vos digo isto para incitar-vos à descrença ou à rebelião contra o Senhor Deus! Apenas desejo chamar-vos a atenção para algo profundo que aparece nas leituras de hoje: a necessidade absoluta da fé para caminhar com Deus! Eis o tema que desejo colocar no vosso coração!

Diz a Escritura Sagrada que “a fé é a certeza daquilo que ainda se espera, a demonstração de realidades que não se veem” (Hb 11,1). Diz também que “por ela – pela fé – os antigos receberam um bom testemunho de Deus” (Hb 11,2). Eis, meus irmãos, o que gostaria que gravásseis hoje no coração: é impossível agradar a Deus, caminhar com Deus, ser humilde realmente diante do Senhor Deus sem a fé! Digo isto porque muitas vezes não vemos na prática, no dia a dia, aquilo que nos foi prometido; muitas vezes parece que a realidade visível desmente miseravelmente a invisível realidade na qual cremos e em que esperamos! Atentos, irmãos, que crer é coisa séria, crer deve impregnar a nossa vida, formatar a nossa existência! Mas, crer não é compreender tudo, ter na palma da mão a explicação, ter tudo sob controle! Nada disso: crer é abandonar-se ao Senhor, Nele confiar totalmente, absolutamente, caminhando como se já víssemos o invisível e já possuíssemos em plenitude aquilo que ainda esperamos na penumbra e na certeza da fé! Só assim, como nossos antepassados, poderemos receber um bom testemunho de Deus, ser chamados de Seus amigos, como Abraão e receber a coroa da glória como prêmio.

Agora, dizei-me? Quem pode levar realmente a sério a palavra do Eclesiástico e, assim, teimar em continuar rezando, suplicando ao Eterno por justiça, perseverando no bem, humildemente entregando a Ele a sua causa? Responso: somente quem crê de verdade, quem de verdade arrisca a vida, a única vida que possui, apostando-a na Palavra do Senhor!

Quem ousaria de verdade ter certeza de que, por grande que seja a miséria humana – até a do ladrão publicano, que desprezou a Lei do Senhor – por grande que seja o meu pecado, o pecado dos outros, o pecado de um mundo tão afastado de Deus, Ele, o Senhor, é capaz de justificar, de perdoar, de renovar o transgressor arrependido que de verdade reconhece seu pecado e confessa sua culpa? Quem pode de verdade levar isso a sério e, assim, tomar o caminho de uma verdadeira e humilde conversão? Somente quem crê de verdade, quem verdadeiramente começa a olhar e sentir tudo com os olhos da fé, que são os olhos de Deus!

E ainda, quem pode perseverar na corrida para Cristo como o Apóstolo? Quem pode estar disposto a oferecer a vida em libação, isto é, em sacrifício até a morte violenta, esperando a Vida gloriosa após a morte? Quem pode, quem se dispõe, quem arrisca? Eu vos digo: somente quem de verdade crê, quem de fato, movido pela fé, ama!

Irmãos, o cristianismo não pode se resumir a palavras bonitas, a pensamentos belos, a boas intenções! O cristianismo funda-se na fé, que dá a certeza que Deus é Deus e enviou o Seu Filho; que Jesus assumiu nossos pecados, morrendo, destruiu nossa morte e, ressuscitando verdadeiramente, abriu-nos o caminho da Vida imperecível! Se realmente crermos nestas coisas, vale a pena sermos humildes, como o orante da primeira leitura, vale a pena entrarmos no caminho da conversão do publicano do Evangelho, vale a pena a fidelidade até a morte, que o Apóstolo testemunhou na Epístola!

- Senhor, Deus bendito! Nós cremos, mas, por misericórdia, aumenta a nossa fé, sustenta a nossa fé, faz-nos perseverantes na fé! Tantos dizem que és o Ausente, o Nada, o Omisso! Senhor, é tanta a tentação de nos vermos sozinhos na corrida da vida! Tantos gritam a Tua morte! Expulsam-Te de nossas leis, das decisões importantes, dos critérios que norteiam a vida da sociedade... A noite cai, faz frio! Fica conosco, revela-nos Tua presença bendita, aquece-nos com o dom de uma fé firme, inabalável, ó Deus bendito, Deus real, Deus concreto, Deus presente, Deus eternamente misterioso, Tu que és misteriosamente Pai e Filho e Espírito Santo, único. Deus verdadeiro, fora do Qual não há nem pode haver outro, que vives e reinas para sempre. Amém.


sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Homilia para o XXIX Domingo Comum - ano c

Ex 17,8-13
Sl 120
2Tm 3,14 – 4,2
Lc 18,1-8

Amados no Senhor, é claríssimo que um dos temas da Palavra de Deus que acabamos de escutar neste hoje é uma séria exortação à oração: “rezar sempre, e nunca desistir”, rezar perseverantemente, sem jamais desfalecer, diz o Evangelho! E aqui se trata, de modo especial, do mais escandaloso de todos os tipos de oração para o mundo atual, tão autossuficiente: a oração de súplica; aquela que somente tem coragem de fazer quem é pobre e sabe que depende de Deus em tudo; somente tem coragem de fazê-la quem crê realmente que Deus Se preocupa com Suas criaturas e, de verdade, age neste mundo, age, presente na nossa vida tão pequena...

Eis: a oração de súplica é coisa de gente simples, de gente que tem coração de criança, que tem fé humilde e atitude de pobre diante de Deus; é coisa de quem acredita que o Senhor Deus é próximo, é presente, é atuante neste mundo, mete-Se com a nossa vida e é capaz de dirigir de pertinho os nossos passos; é coisa de quem não tem vergonha de pedir, de teimar, de insistir!

Bem que Jesus disse que somente os simples, somente os que têm um coração de criança podem compreender os segredos Reino (cf. Mt 11,25), daquele Reino, que vindo em plenitude no Dia de Cristo, já está, no entanto, no meio de nós (cf. 2Tm 4,1; Lc 17,21)! Eu vos digo: a oração de súplica é tropeço para os sábios segundo a carne, para os inteligentes do mundo, para os que não abrem sua razão ao infinito de Deus!

Já ouvistes, caríssimos, aqueles que, cheios de si, dizem assim: “Na minha oração, eu nunca peço, só agradeço!” Pois é! São soberbos, são autossuficientes, não se conhecem, não percebem a miséria, a limitação, a debilidade da humana natureza, que necessita continuamente do socorro do Senhor, Daquele que nos ordenou expressamente: “Pedi e vos será dado! Procurai e encontrareis! Batei e a porta vos será aberta! Se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai que está nos Céus dará coisas boas aos que Lhe pedirem!” (Mt 7,7.11) Sim, caros! É necessário pedir ao Senhor, e pedir com a insistência da viúva pobre e necessitada do Evangelho, com a persistência de Moisés, que passou todo o dia com as mãos erguidas, como Cristo na Cruz, suplicando a vitória para Israel, Povo de Deus, contra Amalec, personificação da Antiga Serpente, do Mistério da Iniquidade, do Mal, do Maligno, do Pecado, que sempre combaterá o Povo dos santos, a Igreja! Não vos iludais! Não nos iludamos: há uma luta tremenda que perpassa o coração de cada um de nós e a vida da Igreja e o coração da história humana, um duelo estupendo entre o Mistério da Piedade (cf. 1Tm 3,16), que é Jesus, nosso Senhor, e o Mistério da Iniquidade (cf. 2Ts 2,7), que é tudo aquilo que diz respeito a Satanás e suas malditas garras e manifestações, dentro e fora da Igreja! E sem a humilde perseverança na oração, nós não venceremos e quando o Filho do Homem vier não encontrará fé em nós e até mesmo sobre a terra!

Mas, talvez, alguém de vós pergunte, curioso: “Por que pedir, se o Senhor já sabe do que temos necessidade? E por que ainda pedir com insistência se, já suplicando uma vez, Ele decide o que fazer, Ele que tudo sabe eternamente, Ele que não muda? Pode o homem mudar a vontade de Deus, alterar o desígnio do Altíssimo?”

Obedeçamos, irmãos caríssimos! O Senhor, no Seu insondável mistério, sabe por que nos manda pedir e insistir no pedido!
No entanto, mesmo nós, na nossa pouca sabedoria, podemos perceber um pouco a necessidade absoluta de suplicar. Pensai um momento:
Suplicando, reconhecemos que somos totalmente dependentes e tudo nos vem do Senhor, Daquele que dá a vitória e a derrota, que faz o rico e faz o pobre, que fere e cura a ferida, que faz morrer e faz viver!
Suplicando, vamos aprendendo a confiar Nele, a Nele esperar e, assim, vamos experimentando a Sua presença misteriosa e real na nossa vida e vamos crescendo no nosso amor para com Ele.
Suplicando com insistência, vamos desenvolvendo a certeza de que Ele nos escuta, de que nos envolve com Sua presença e nos socorrerá na nossa necessidade.
Ainda mais: de tanto suplicar e teimar na súplica, vamos nos abandonando aos Seus tempos misteriosos, à Sua vontade que nos ultrapassa, aos Seus modos que nos desconcertam e, então, vamos interiormente nos dispondo a acolher o que Ele quer, a aceitar a Sua santa vontade, ainda que não seja a nossa nem na medida das nossas expectativas humanas.

Sim! Bom amigo de Deus não é o que só aceita o que pediu, mas aquele que, pedindo com perseverança e amor confiante, acolhe o que o Senhor concede, tendo a firme convicção – nascida da oração teimosa – de que o Senhor nos dá o que é melhor para nós, ainda que muitas vezes não o compreendamos bem! Por isso a misteriosa palavra do nosso Salvador no final da perícope de hoje: “Deus não fará justiça aos Seus escolhidos, que dia e noite gritam por Ele? Será que vai fazê-los esperar? Eu vos digo que Deus lhes fará justiça bem depressa!” Palavra espantosa! Jesus, nosso Senhor e Salvador, não somente afirma que Deus nos escuta e vem em nosso socorro, mas também que vem bem depressa! E nós pensamos: “Mas isto não acontece assim! Quanta oração fiz que não foi ouvida! Quanta oração demorada na resposta! Não é a própria Escritura Santa que nos diz: “Suporta as demoras de Deus, agarra-te a Ele e não O largues”? (Eclo 2,3)

Ah, meus irmãos! O Senhor nos ouve sim, o Senhor vem logo em nosso socorro sim, o Senhor Se compadece daquele que a Ele suplica! Mas, os tempos de Deus não são os nossos, a pedagogia do Senhor nos ultrapassa, a ação do Senhor não pode ser totalmente alcançada por nós: Ele é Deus; nós, pó que o vento leva! Por isso mesmo, a misteriosíssima pergunta de Jesus: “Quando o Filho do Homem vier, encontrará fé sobre a terra?” Eis: O Senhor nos ouve, o Senhor Se compadece de nós – Ele nos deu tudo no Seu Filho por nós morto e ressuscitado! Como ainda nos seria possível duvidar Dele? Ele vem em nosso socorro, mas no Seu tempo, do Seu modo, segundo o Seu sábio e misterioso desígnio! Mas, encontrará fé em nós? Saberemos reconhecê-Lo? Sei eu, sabeis vós, sabemos nós reconhecer o Senhor nas Suas vindas?
Ele vem na alegria e vem também na tristeza;
no sorriso, ei-Lo aqui, mas também é Ele ainda no pranto;
é Ele na vitória e ainda é Ele na derrota;
é Ele presente no nosso nascer e no nosso morrer!
E isto nos escapa, como o Salmista exclama, admirado e perplexo: “Como são profundos para mim Teus pensamentos, como é grande seu número, ó Deus! Se os conto, são mais que a areia, se acho que terminei, ainda estou Contigo!” (Sl 138/139,17s).

Caríssimos, sejamos pobres diante do Senhor Deus! Sejamos humildes!
Oremos sempre,
oremos suplicando,
oremos com um coração confiante,
oremos sem desfalecer,
oremos esperando contra toda esperança,
oremos na certeza de que o Senhor nos ouve e nos acode, do Seu modo, no Seu tempo, para o nosso bem, segundo o Seu misterioso desígnio!

Para o homem soberbo tudo isto é tolice; para o autossuficiente e o racionalista tudo isto é loucura sem sentido! Para esses, Deus é um grande ausente: não é real, não age no mundo, não interfere na nossa vida, não tem nada a ver, nada a dizer, nada a fazer com o mundo dos homens! Quanta soberba! Quanta ilusão! Quanto engano!
Cuidado, irmãos! Tomemos seriamente o conselho do santo Apóstolo a Timóteo, na Epístola de hoje: “Permanece firme naquilo que aprendeste e aceitaste como verdade! Conheces as Sagradas Escrituras: elas têm o poder de te comunicar a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Cristo Jesus!” Eis aqui! Num mundo de tanta soberba humana, numa época de tanto paganismo, de tantos pensamentos mundanos, mesmo dentro da Igreja, num tempo de relativismos e confusões, quando se escutam mais as modas e raciocínios carnais que a simples e potente palavra do Evangelho, mantenhamos a firmeza naquilo que aprendemos como verdade em Cristo! Ora, esta é a diferença entre crer e não crer: o verdadeiro crente tem a coragem ousada de abrir-se à lógica de Deus, de por Ele deixar-se conduzir, de não ceder à lógica do mundo e à medida da simples razão humana; o descrente, ao invés, deseja medir a ação de Deus e compreendê-la e abarcá-la na medida da sua lógica, na estreiteza de sua própria racionalidade!

Creiamos, irmãos; rezemos, irmãos!
Com perseverança supliquemos, irmãos,
com inteira confiança esperemos,
elevando as mãos como Moisés
e os olhos como o Salmista,
certos de que “do Senhor é que nos vem o socorro, do Senhor que fez o Céu e fez a terra, pois não dorme nem cochila o Guarda de Israel!”
Seja Ele bendito na Igreja e no nosso coração, hoje, como no princípio, de geração em geração e por toda a eternidade, nos séculos dos séculos. Amém!


quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Os sacramentos - Cristo, sempre presente na Sua Igreja

No último texto desta série, vimos que a Igreja é sacramento de Cristo, sinal real, eficaz de Sua presença salvífica e atuante. Dito de outro modo: Cristo está realmente presente no mundo e age realmente no mundo, continuando Sua obra de salvação através da Igreja e na Igreja!
Agora perguntamos: onde, em que momentos Cristo está presente na Sua Igreja?

Para compreender bem isto é necessário recordar o que vimos no artigo passado: Cristo está presente na Igreja pela potência do Espírito Santo: Ele partiu para o Pai, mas nos deu o Seu Espírito, que é Sua própria Vida ressuscitada, Sua energia, Sua potência salvadora, Sua força no caminho deste mundo. É assim que Ele, na Glória, age continuamente sobre nós e em nós, que ainda peregrinamos neste mundo: “Eu rogarei ao Pai e Ele vos dará outro Paráclito, para que convosco permaneça para sempre” (Jo 14,16); “Eu vos digo a verdade: é do vosso interesse que Eu parta, porque se Eu não for, o Paráclito não virá a vós. Mas seu Eu for, enviá-Lo-ei a vós!” (Jo 16,7). É isto que significam aquelas palavras da Escritura: “Eu sou a videira. Todo ramo em Mim que não produz fruto Ele o corta... Permanecei em Mim, como Eu em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanece na videira, assim também vós, se não permanecerdes em Mim. Eu sou a videira e vós os ramos. Aquele que permanece em Mim e Eu nele produz muito fruto; porque, sem Mim, nada podeis fazer” (Jo 15,1-5).

Vejamos bem: Jesus, nosso Senhor, imagina nossa união com Ele não simplesmente como um afeto, uma emoção, um sentimento, uma lembrança, uma união de ideal e de ação. É algo muito mais forte e real: Ele quer que Sua própria Vida ressuscitada, gloriosa, aquela que recebeu do Pai na Ressurreição, esteja em nós; Ele deseja que nós, realmente, vivamos Nele, Dele e por Ele! Por isso a alegoria da videira: como os ramos vivem da seiva do tronco, nós vivemos da seiva de Jesus Cristo, o Ungido do Pai. Esta seiva é o Santo Espírito. Sem ela, não há Igreja, não há Vida de Cristo para nós! Sem o Espírito agindo constantemente na Comunidade dos discípulos, a Igreja seria somente a Fundação Jesus de Nazaré, ou o PJN: Partido de Jesus de Nazaré, um personagem do passado, vivo somente na nossa lembrança! Sem o Espírito Santo, a Igreja seria apenas a comunidade de Jesus de Nazaré... Ora, Jesus de Nazaré, rigorosamente falando, não existe mais! Jesus de Nazaré, por Sua Morte e Ressurreição, foi feito Senhor e Cristo na potência do Santo Espírito, para a glória de Deus Pai; morto na carne, isto é, na Sua natureza humana, Ele foi glorificado no Espírito Santo (cf. 1Tm 3,16)! O Apóstolo São Paulo chega mesmo a dizer, de modo impressionante: “Se conhecemos Cristo segundo a carne, agora já não O conhecemos assim” (2Cor 5,16). Ele agora é Deus, é divinizado na Sua natureza humana; agora, “Nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade” (Cl 2,9); Ele é Senhor e Cristo, Ele é glorioso! Jesus, feito plenamente Cristo, Ungido pelo Pai com o Espírito, por Sua Morte e Ressurreição, é agora plenamente Cabeça da Igreja, de modo que os cristãos, membros da Igreja, estão enxertados em Cristo, são com Ele uma só coisa, vivem a vida Dele! São Paulo ensina a mesma coisa com outra imagem, a da Cabeça e do corpo com seus membros: “Ele é a Cabeça da Igreja, que é Seu corpo” (Cl 1,18); “(O Pai) O pôs acima de tudo, como cabeça da Igreja, que é Seu corpo (Ef 1,22); “Há um só Corpo e um só Espírito, assim como é uma só a esperança da vocação a que fostes chamados; há um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos!” (Ef 4,4-6); “Ele (Cristo) é que concedeu a uns ser apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, a outros pastores e mestres, para aperfeiçoar os santos (os cristãos) em vista do ministério, para a edificação do Corpo de Cristo” (Ef 4,11-12).

Em todos estes textos aparecem de modo claro algumas idéias importantes:

1) Cristo é Cabeça da Igreja. Para a medicina do tempo de Paulo, a cabeça dava vida, crescimento, harmonia e direção ao corpo. Paulo pensa Cristo exatamente com esta função capital (=capital, do latim caput = cabeça). Os teólogos da Idade Média falavam até em graça capital: a graça que Cristo Cabeça (caput) derrama continuamente sobre o Corpo, que é a Igreja!

2) Cristo Cabeça age no Seu Corpo, que é a Igreja, pela energia, pela potência do Seu Espírito Santo. Assim Ele, dos Céus, onde está à direita do Pai, enche continuamente o Seu Corpo com a Sua Vida divina, com a Sua força, fazendo-o crescer, permanecer unido e no caminho certo. O Espírito é a Presença de Cristo entre nós e em nós!

3) Este Espírito que torna o Cristo presente e atuante na Igreja, dá aos discípulos a santidade de Cristo, fá-los permanecer firmes na única fé e numa só esperança, suscita os vários ministérios e carismas, tudo para que a Igreja vá sendo edificada cada vez mais como Corpo do Senhor e possa crescer sempre mais na direção do Cristo Cabeça.

Então, podemos concluir algo importantíssimo: toda a vida da Igreja, tudo quanto ela faz, tudo que ela é, está impregnado do Espírito Santo e, portanto, da presença do Cristo Ressuscitado. Ele age sempre na Comunidade dos Seus discípulos. Em certo sentido, tudo na vida da Igreja é um sacramento de Cristo. Eis alguns exemplos:

= Cristo está presente na Comunidade reunida para rezar, para refletir e, sobretudo, para celebrar a Eucaristia: “Onde dois ou três estiverem reunidos em Meu Nome...”
= Está presente na Comunidade que evangeliza e anuncia o Senhor: “Ide! Eu estarei convosco...”
= Está presente nos irmãos, sobretudo nos mais pequeninos e necessitados: “O que fizerdes a eles, a Mim o fizestes”.
= Está presente na Palavra santa proclamada, meditada, partilhada e sobretudo anunciada e comentada na homilia da Celebração eucarística: “O Verbo Se fez carne e habitou entre nós!”
= Está presente nos ministros sagrados, sobretudo naquele que preside à Eucaristia, o Bispo diocesano e seus presbíteros: “Quem vos ouve a Mim ouve, quem vos recebe a Mim recebe”.
= Está presente no Bispo de Roma, sucessor de Pedro, primeiro responsável por conservar e proclamar fielmente a verdadeira fé católica e apostólica e conservar a Igreja na unidade e na paz: “Tu Me amas? Apascenta as Minhas ovelhas! Confirma teus irmãos!”
= Está presente de modo especial nos sacramentos e, de modo único, e excelente na Eucaristia!

Então, a presença de Cristo, graças à ação do Espírito, está em toda a Igreja, em cada um de nós. Por isso mesmo é toda a Igreja e a Igreja toda que é sacramento do Senhor Jesus Cristo!
No entanto, o Senhor Jesus, pelos Seus próprios gestos enquanto viveu entre nós, inspirou Sua Igreja a ver em sete momentos particulares, momentos de celebração, uma presença especial, intensíssima do Cristo Salvador, pela potência do Espírito. Estes sete momentos são o que chamamos sacramentos! Assim, chegamos aos nossos conhecidos sete sacramentos: Batismo, Confirmação Eucaristia, Penitência, Unção dos Enfermos, Ordem e Matrimônio. Lembre-se de que o número sete significa, nas Escrituras Santas, plenitude. Pois bem: estes sete momentos celebrativos dão-nos, de verdade, na força do Espírito do Ressuscitado, a plenitude da graça, da Vida divina que o Cristo recebeu do Pai na Sua gloriosa Ressurreição! Por eles, nós vivemos intensamente a Vida do próprio Senhor Jesus, sacramento do Pai!


No próximo texto vou apresentar melhor o significado dos sete sacramentos: como Cristo os instituiu? Como entender este conjunto de sete gestos? Quem celebra os sacramentos? Para quê? Somente depois de compreendermos bem isto é que exporei cada sacramento em separado!


sábado, 12 de outubro de 2019

Homilia para o XXVIII Domingo Comum - ano c

2Rs 5,14-17
Sl 97
2Tm 2,8-13
Lc 17,11-19

Salta aos olhos a mensagem da Palavra de Deus neste Domingo: a gratidão, o reconhecimento cheio de amor pela ação benéfica de Deus na nossa vida. Gratidão e ingratidão – eis o que aparece nas leituras de hoje.
Primeiro, a gratidão de Naamã, um pagão, inimigo de Israel, que, no entanto, sabe ser grato a Deus. Curado de sua lepra, voltou para agradecer ao profeta Eliseu e, como sinal de conversão ao Deus verdadeiro, levou terra de Israel para Damasco, sua cidade, para, sobre essa terra, adorar a Deus, que o havia curado. Também a gratidão de outro pagão, o leproso samaritano que soube, reconhecido, voltar a Jesus “para dar glória a Deus”.
Mas também, hoje, aparece a ingratidão dos nove leprosos, filhos do povo de Israel, que curados, não retornam para agradecer o dom... Dez foram curados, somente um foi salvo: “Levanta-te e vai! Tua fé te salvou!”

Estejamos atentos! Hoje, temos tudo. Chegamos a um alto grau de desenvolvimento tecnológico e científico, compreendemos tantos dos processos e dinamismos da natureza e, num mundo ativista e autossuficiente, temos a sensação ilusória de que nos bastamos, de que tudo é nosso, de que tudo é fruto de nossos esforços, de que tudo foi conquista nossa, simplesmente. Vamos nos tornando cegos para a presença cuidadosa, providencial e cheia de amor de um Deus que sempre vela por nós. É impressionante como o mundo nos vai tornando dormentes, insensíveis mesmo, para Deus! A vida já não mais é percebida como um dom e do nosso coração já não mais brota a ação de graças. Mas, uma vida assim é ela mesma, sem graça, ela mesma uma “des-graça”! Somente quando abrimos o coração e os olhos da fé, podemos perceber que tudo é graça, imenso dom de um Amor sem fim e, então, seremos realmente curados de uma vida sem sentido e libertos para correr livres nos caminhos da existência. Poderemos ouvir a palavra de Jesus: “Levanta-te e vai! A tua fé te salvou!” Mas, para isso – nunca esqueçamos – é necessário um coração de pobre, um coração humilde, que reconheça que tudo quanto possuímos foi recebido de Deus, gratuitamente. Como são verdadeiras as duras palavras de São Paulo: “Que possuis que não tenhas recebido? E, se recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido? Vós já estais saciados! Já estais ricos!” (1Cor 4,7s)

Vale, então, no corre-corre da vida, a exortação do Apóstolo, na segunda leitura de hoje: “Lembra-te de Jesus Cristo, ressuscitado de entre os mortos!” Lembrar-se de Cristo é tê-Lo como palavra última e total de amor que o Pai nos pronunciou. Lembrar-se de Jesus é nunca esquecer que Deus está conosco, amando-nos, perdoando-nos e acolhendo-nos como Deus providente e misericordioso. Lembrar-se de Jesus morto e ressuscitado é nunca duvidar da misericórdia de Deus e do Seu compromisso na nossa existência e na existência do mundo. “Lembra-te de Jesus Cristo ressuscitado! Merece fé esta palavra: se com Ele morremos, com Ele viveremos. Se com Ele ficamos firmes, com Ele reinaremos. Se nós O renegarmos, também Ele nos negará. Se Lhe formos infiéis, Ele permanece fiel, pois não pode negar-Se a Si mesmo!” Aqui está o motivo último e irrevogável de toda a nossa gratidão a Deus: Jesus Cristo, dado-nos como carinho e fidelidade do Pai! É de tal modo este dom, tão irrevogável, tão absoluto, que vale a pena morrer com Ele para, Nele, viver uma Vida nova; vale a pena sofrer com Ele para, Nele, reinarmos.
É interessante como o Apóstolo sublinha a fidelidade amorosa de Deus em Jesus: “Se Lhe somos infiéis, Ele permanece fiel!” Eis um Deus que não Se escandaliza com nossas debilidades, mas é sempre disposto a recomeçar conosco. “Se nós O negamos, também Ele nos negará”... Esta é a única atitude que nos faz perdê-Lo para sempre: a ingratidão de negá-Lo em nossa vida, de fecharmo-nos de tal modo para Ele, que já não mais O reconheçamos, que já não mais deixemos que Ele seja o Senhor da nossa existência, que já não mais percebamos que tudo é graça, tudo é presente de amor.

Cuidemos, então do modo como estamos construindo a nossa existência: como um fechar-se sobre nós mesmos, na autossuficiência, ou como uma abertura livre e filial, pronta a acolher e viver a vida como um dom do Senhor. Como cantam os focolares: “Se um dia perguntares quem sou, não direi o meu nome. Direi: ‘Obrigado, por tudo e pra sempre, obrigado, obrigado”!

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Homilia para a Solenidade de Nossa Senhora da Conceição Aparecida

Est 5,1b-2; 7,2b-3
Sl 44
Ap 12,1.5.13a.15-16a
Jo 2,1-11

A Solenidade hodierna recorda a proteção da Virgem Maria, sua presença materna e consoladora, experimentada em 1717, por três pobres pescadores, ainda na aurora de nossa história nacional. As redes vazias dos pobres quase se romperam pela abundância de peixes, após o “aparecimento” da Imagem enegrecida da Imaculada Conceição. Desde então, aquela imagenzinha humilde e feiosa recorda ao Povo brasileiro a presença materna da Mãe do Senhor na nossa história e na nossa terra.

Sim, hoje a festa é nossa, do Povo brasileiro; hoje, por todo o território nacional, gente de todas as raças que fazem esta Nação, canta com devota gratidão: “Viva a Mãe de Deus e nossa, sem pecado concebida! Salve a Virgem Imaculada, a Senhora Aparecida!” Hoje, nossos olhares, atenções, corações, voltam-se para o Santuário Nacional, Casa de Deus, só a Deus dedicada, em honra de Nossa Senhora da Conceição Aparecida!

Esta presença materna, carinhosa, providente e atuante da Virgem Santíssima é ilustrada de modo admirável nas leituras da Palavra de Deus, que escutamos nesta Solenidade.
Primeiramente, a Virgem é evocada pela rainha Ester, que arriscou a vida para salvar o seu povo da condenação à morte. Quem não se comove com o apelo da Rainha? “Se ganhei as tuas boas graças, ó rei, e se for de teu agrado, concede-me a vida – eis o meu pedido! – e a vida do meu povo – eis o meu desejo!” Como tais palavras cabem hoje na boca da Mãe do Senhor!

Ela, perfeita e completamente salva e redimida de todo pecado por pura graça de Deus; ela, a Imaculada, a Agraciada! Mais que ninguém, ela pode cantar as palavras de Isaías, que o Missal coloca no início da Eucaristia deste dia: “Com grande alegria rejubilo-me no Senhor, e minha alma exultará no meu Deus, pois me revestiu de justiça e salvação, como a noiva ornada de suas jóias”.
Maria Virgem, totalmente agraciada, totalmente salva por Deus, não esquece de nós, filhos que o Filho lhe deu ao pé da Cruz: “Salva a vida do meu povo – eis o meu desejo!” Ela é a Mulher do Apocalipse, em luta constante contra a Serpente, o antigo Inimigo, que ameaça o Povo de Deus; ela é a Mulher que, em Caná, intercede pelos esposos, ensina-nos a fazer o que o Filho disser e cuida para que a água das nossas pobrezas e das nossas angústias seja transformada no vinho da alegria, fruto da ação do Espírito do Cristo ressuscitado.

A Festa de hoje recorda-nos a presença constante de Nossa Senhora na vida da Igreja, na vida do Povo brasileiro e na vida de cada um de nós. Não poderia ser diferente! Foi o próprio Cristo Quem lhe deu essa missão materna em relação a nós, Seus discípulos amados. Recordemo-nos da cena dramática no Calvário. Jesus diz à Sua Mãe, indicando o Discípulo Amado, que é cada um de nós, cada cristão, católico ou não: “Mulher, eis o teu filho!”(Jo 19,26). Não foi ela quem escolheu ser nossa Mãe. Não! Foi o Filho mesmo Quem lhe deu a missão:
“Eis o teu filho, os teus filhos, Virgem Maria!
Tu és a Mulher do Gênesis, inimiga da Serpente;
tu és a Mãe dos viventes, a verdadeira Eva!”

Fidelíssima à vontade do Senhor, como sempre foi, a Virgem vela por todos os cristãos; até por aqueles que não lhe têm amor e veneração, chegando mesmo a difamá-la de modo injusto! Mãe dos discípulos do Senhor Jesus Cristo nosso Deus, Mãe da Igreja, Virgem Maria!

Foi esta maternidade tão amorosa, fecunda e providente que o Povo brasileiro experimentou às margens do rio Paraíba do Sul, quando a Imagem enegrecida da Imaculada apareceu nas redes dos pescadores. É esta maternidade que nós experimentamos continuamente em nossa vida! Quem de nós não tem uma história para contar a respeito da presença da Virgem no nosso caminho? “Filho, eis a tua Mãe!” (Jo 19,27). Repito com insistência: Não fomos nós que escolhemos Maria por Mãe. Cristo mesmo, no-la deu como aconchego materno. Na Cruz, Ele olhou para o Discípulo Amado, para cada um de nós, e deu-nos Sua Mãe: “Filho, eis a tua Mãe!” Que generosidade, a do Senhor: deu-nos tudo, Seu corpo, Seu sangue, Sua vida, deu-nos Sua Mãe! Realmente, amou-nos até o fim (cf. Jo 13,1).

Jesus olha para todo cristão – católico ou não – e indica: “Eis a tua Mãe!” E o Evangelho diz qual deve ser a atitude do discípulo ante um dom tão generoso, tão belo, tão grande: “A partir daquele momento, o discípulo a levou para sua casa” (Jo 19,27). Todo discípulo de Cristo tem o dever de acolher o dom do Senhor, o dever de levar a Mãe de Jesus – agora Mãe de cada cristão – para sua casa. Não fazê-lo é desobedecer a um preceito expresso e claro do Senhor, é privar-se de tão grande dom! Por isso, mil vezes tem razão o Povo brasileiro em orgulhar-se hoje de ter Maria por Mãe. Tem razão o nosso povo de tê-la proclamado Rainha e Padroeira do Brasil!

Virgem ãe Aparecida, Mãe de Deus e nossa!
Vela pelo Povo brasileiro, acolhe nosso brado filial!
Desvela teu amor materno pelo Brasil sofrido e tentado pela desesperança, neste momento tremendo da nossa história!
Intercede, com tua oração materna, por nossos governantes: que sejam retos, justos, tementes a Deus, honestos, servidores do bem comum, sobretudo dos mais frágeis e necessitados!
Que a justiça prevaleça, que a impunidade não triunfe, que a corrupção, o populismo, o cinismo, sejam debelados de nossa Pátria! 

Ó Mãe santíssima do Senhor e nossa,
Sê consolo para quem chora, força para quem se encontra alquebrado, inspiração e encorajamento para os pobres, saúde para os enfermos e rosto maternal de Deus para todos nós! 

Mãe e Rainha do Povo brasileiro,
Lembra-te de que nossa Nação nasceu católica, filha da Igreja do teu filho!
Livra-nos, pois, daqueles que pretendem erradicar o santo Nome do Senhor da nossa cultura;
Ajuda-nos a repelir, com serenidade e firmeza, tudo quanto atenta contra a nossa fé, contra os nossos valores, contra as nossas famílias, contra a concórdia e a verdadeira liberdade dos brasileiros!
Vela pelas crianças, mantém na harmonia as famílias de nossa Pátria, vela pela paz no campo e nas cidades!

Senhora Aparecida, protege a Santa Igreja em terras brasileiras! Roga pelo clero, pelos religiosos, por todo o Povo de Deus!

Ajuda-nos, Mãe de Deus-Jesus e Mãe nossa, ajuda-nos a construir um Brasil mais cristão, mais justo, mais decente, mais pacífico e solidário, e que, pelas tuas preces maternas, jorre para nós o vinho bom da alegria e sejamos todos, um dia, herdeiros do Reino dos Céus. Amém!


quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Do Mayor, uma ideia menor...

Ontem, li uma entrevista do astrofísico suíço Michel Mayor, um dos ganhadores do Nobel de Física deste ano por ter descoberto um exoplaneta, isto é, um planeta fora do nosso sistema solar. Lá para as tantas, o entrevistador fez a seguinte pergunta:

“Giordano Bruno, que foi queimado pela Igreja no século XVII, propôs que existem muitos outros sistemas solares no universo, o que não concorda com o relato cristão da criação. Qual é o lugar de Deus no universo?”

A resposta de Michel Mayor:

“A visão religiosa diz que Deus decidiu que só houvesse vida aqui, na Terra, e a criou. Os fatos científicos dizem que a vida é um processo natural. Eu creio que a única resposta é investigar e encontrar a resposta, porém para mim não há lugar para Deus no universo”.

O que dizer deste diálogo?

Deixando de lado o modo maldoso com o qual o jornalista fez a pergunta, é preciso corrigi-lo:
Primeiramente, Giordano Bruno, frade dominicano, foi condenado e queimado pela Inquisição não no século XVII, mas no século XVI, em 1600. E não foi condenado por questões meramente científicas, como o entrevistador levemente insinua, mas por heresia a respeito de vários pontos da fé cristã: doutrina sobre a Trindade, sobre Cristo, sobre a transubstanciação...
Em segundo lugar, o relato da criação não é simplesmente cristão, como afirma o jornalista; é bíblico e, portanto, diz respeito também ao judaísmo! Não sei se o entrevistador de uma Espanha  hoje descristianizada e, em larga escala, anti-clerical, sabe que o Antigo Testamento nasceu no seio do povo de Israel e é também livro sagrado dos judeus... Talvez nem isto saiba... Então, o Gênesis não é simplesmente um "relato cristão"...

Mas, o que espanta mesmo é a resposta do astrofísico! Pode-se ser um grande astrofísico e um grande ignorante em outras áreas; isto não é demérito para ninguém... Mas, quando um grande cientista se mete a comentar temas que não compreende e para os quais não tem competência  acadêmica porque os ignora, comporta-se como um grande tolo. É o caso, aqui, do tolo Michel Mayor...

Primeiramente, de qual “visão religiosa” esse senhor está falando? Não é justo, não é condizente com a realidade colocar todas as religiões num saco só... Há tantas visões religiosas, com cosmogonias tão diversas... Seria de se esperar de um cientista um pouco mais de exatidão...

Depois, nem o judaísmo nem o cristianismo afirmam de modo dogmático que “Deus decidiu que só houvesse vida aqui, na Terra”... Isto é uma lorota de ignorante, um grosseirão em teologia...
Numa linguagem própria da época em que o texto foi escrito e usando ideias desse tempo e dessa cultura, a Sagrada Escritura dá conta de que tudo foi criado por Deus, foi criado livremente e tudo quanto Ele criou é bom. Este é o ensinamento que importa: tudo foi criado por Deus livremente, Deus tirou tudo do nada e tudo quanto Ele criou é bom: “No princípio Deus criou o céu e a terra... E Deus viu que era bom!”

Em terceiro lugar: não é dogma judaico ou cristão que Deus decidiu que só existisse vida na terra... Parece que depois do catecismo básico para a primeira comunhão na primeira metade do século passado, esse senhor astrofísico não leu mais nada de sério sobre a fé cristã! Deveria, portanto, sobre estes temas, calar a boca!
O que o cristianismo sabe e afirma é que exista o que existir no universo, inclusive algum tipo de vida, tudo é criação de Deus e é radicalmente bom! As Escrituras Sagradas não são uma obra de filosofia sistemática ou de astrofísica, não se preocupam com outra coisa que não a relação do homem e do mundo do homem com Deus! A finalidade das Escrituras é nos falar sobre Deus em relação conosco, Deus que Se dirige a nós e de nós espera uma resposta: a fé! A Escritura não é um tratado sobre tudo e muito menos numa abordagem científica ou filosófica...

Em quarto lugar, outra bobagem recorrente entre cientistas que pensam saber tudo do cristianismo sem saberem quase nada: a ideia de que afirmar que Deus criou tudo se choca com a teoria da evolução: se Deus criou tudo, a criação não poderia ser um processo natural... Pura lorota!
Já na metade do século passado, desde os tempos de Pio XII, o Magistério da Igreja admitia que não há contradição entre as duas ideias: criação e evolução... É doutrina de fé da Igreja que Deus criou tudo do nada. O modo como esta criação evoluiu, as leis que o Senhor Deus nela imprimiu, não pertence à Igreja dizer nada sobre isto... É competência das ciências e a elas cabe investigar, descobrir as leis e processos que o Criador , de modo admirável, imprimiu na Sua obra!

Conclusão: o senhor “Mayor” ficou “menor” com a resposta boba que deu! Mostrou que precisa caminhar muito para saber algo realmente sério sobre a fé e o cristianismo... Ele acertou ao afirmar que o único modo de saber se há vida além do nosso planeta é pesquisar, mas errou de modo lastimável quando julgou que não há lugar para Deus no universo...
Que interessante: um bichinho tão pequenininho, tirado do pó da terra, que não sabe de onde vem tudo nem para onde vai, que não sabe quase nada a respeito desta estupenda e misteriosa realidade que são a existência e o universo (ou universos), ousa afirmar que não há lugar para um Criador no universo porque não cabe na sua razão ou não foi visto no seu telescópio! Incrível!
De onde vem tudo? Por que existe o ser e não o nada, a harmonia e não o puro caos?  Quem imprimiu leis ao mundo da energia e da matéria? Para onde vai tudo isto? Qual o sentido de tudo existir? Como surgiu a vida? Como surgiu a vida inteligente? E para quê? E este ser misteriosíssimo, que é o homo sapiens? Por que somente ele tem inteligência reflexa? E esta sede de sentido e de infinito que habita o seu coração? E a dor, o amor, a solidão, a sede da verdade, o visceral inconformismo diante da morte como destruição total do ser? Tudo isto é liquidado pelo sr. “Mayor” com uma resposta “menor”, menorzinha, mesquinha: “Para mim, não há lugar para Deus no universo”...
Como me decepciona e entristece ouvir da boca de um homem de ciência uma resposta tão rasa! Queira Deus, na Sua infinita sabedoria e invencível misericórdia, que haja um lugar para o sr. Mayor no Céu...