terça-feira, 5 de junho de 2018

Ó Beleza tão antiga e tão nova!

Recordei, hoje, de uma ocasião em que apreciava algumas obras de arte. Alguém me perguntou, diante de algumas pinturas de várias escolas, estilos e épocas, de qual eu mais gostava. Apontei uma, que decepcionou meu interlocutor: “O senhor, tão jovem, com um gosto tão acadêmico?!”
Não! Não é gosto acadêmico! É sede do simplesmente belo, sereno reflexo da beleza que Deus escondeu em todas as coisas!

Segundo Joseph Ratzinger, a arte cristã, hoje, encontra-se num dilema: por um lado, deve opor-se ao culto da feiura, que diz que tudo o que é belo é uma ilusão e que só a representação do cruel, baixo e vulgar é a verdade, a verdadeira luz do conhecimento, que exprime a crua e verdadeira realidade. Nesta linha, pense-se na grosseria das novelas e filmes, pense-se em certa arte que se compraz no bizarro, no exótico e hermético e até mesmo, em nome de certo tipo de denúncia, no simplesmente grotesco... No fundo, tal arte exprime o não-sentido, o absurdo de uma realidade que não é fruto de um Logos, de um Amor eterno e, portanto, de um Sentido que preenche toda a realidade. No fundo, trata-se de uma arte ateia...

Por outro, deve a sensibilidade artística cristã contrapor-se à beleza fraudulenta, que faz com que o ser humano se rebaixe ao invés de fazê-lo grande, e que, por essa razão, é falsa. Aqui, nesta falsa beleza, temos a arte do culto da forma sem conteúdo, como, por exemplo, a exposição do corpo humano, reduzido a objeto de sedução e incitação ao erotismo claro ou implícito... Nesta linha, a realidade aparece desprovida de consistência: tudo é reduzido a consumo e satisfação dos próprios sentidos: fica-se na casca, na aparência das coisas, sem a capacidade de contemplar realmente o ser em toda a sua beleza e em todo o seu mistério! Nunca deveríamos esquecer que o ser, pelo simples fato de ser, de ter escapado do nada, é digno de admiração e profundo respeito, afinal ele, por ser, torna-se gramática de um Criador, do Criador, Daquele que, sendo o próprio Ser, fonte de todo ser, chamou tudo do nada e conferiu-lhe um sentido!

Ratzinger invoca a famosa a frase do grande escritor russo, Dostoievsky: “A beleza salvará o mundo”. A que beleza alude o ilustre pensador? Refere-se ele àquela Beleza de que fala Santa Teresa d’Ávila: “Formosura que excedeis a toda formosura, sem ferir dor fazeis e sem dor desfazeis o amor da criatura!” Sim, a Beleza suprema que nos é dada a contemplar neste mundo, a Beleza, critério de toda outra beleza, a norma de toda estética realmente libertadora, é a Beleza redentora de Cristo, o Crucificado e Ressuscitado!

Precisamos aprender a contemplá-Lo, contemplar a beleza do Cristo – insiste Ratzinger. Contemplar significa entrar em simpatia, em sintonia com a estupenda realidade que Ele representa e produz no mundo: um Amor que Se doa totalmente para nos redimir, para nos divinizar! Um Amor que revela o sentido último de toda a realidade, mesmo a mais dolorosa e aparentemente absurda! Sem este Amor, o mundo morre sufocado pela banalidade e a feiura! Se nós O conhecermos, não apenas nas palavras, mas se formos trespassados pela flecha da Sua beleza paradoxal,  - e só então O conheceremos verdadeiramente -, e não apenas porque ouvimos outras pessoas falando a Seu respeito, então teremos encontrado a beleza da Verdade, da Verdade que redime e seremos Suas felizes e entusiasmadas testemunhas!

Mas, precisamente aqui encontramo-nos na profunda crise do cristianismo atual, da Igreja dos nossos dias: perdemos o sentido da Beleza, do gozo de contemplar desinteressadamente! Nossa fé, nossa liturgia, nossa teologia tornaram-se demasiadamente conceituais, cartesianas!
Há quem possa realmente alimentar sua fé, sua paixão por Cristo com a enorme maioria de nossas missas barulhentas, cheias de comentários, entupidas de paramentos de mal gosto, artificialmente criados por modas discutíveis? Há devoção que suporte uma missa na qual o padre inventa os gestos como um animador de auditório ou não exprime os gestos indicados no missal – gestos que não são seus, mas de Cristo e da Igreja? E os comentários dos nossos folhetos e livretos litúrgicos? E o “reino”(= sociedade socialista), que substituiu Jesus? E a cruz retirada de nossos presbitérios? E a teologia escrita por gente sem fé e sem espírito contemplativo: teologia racionalista e rasteira, que eleva tanto quanto um voo de galinha?

Nada pode pôr-nos em contato tão próximo com a beleza do próprio Cristo como o mundo de beleza criado ao longo dos séculos pela fé e a luz que brilha na face dos santos, através dos quais a própria luz do Senhor se torna visível.
É pela falta dessa realidade que sentimos o peso de um cristianismo sem graça, de uma Igreja muitas vezes burocrática, seca, de uma falta de espiritualidade sólida e profunda... É preciso urgentemente uma Igreja que volte ao silêncio, que volte ao belo, que volte ao rito litúrgico, que volte ao Cristo, que seja Seu sacramento, espaço palpável de Sua presença neste mundo ferido e cansado! 


segunda-feira, 4 de junho de 2018

Arraigados na fé apostólica


Para você, caro Leitor, este importante texto do famoso teólogo africano do século II, Tertuliano:

Cada coisa deve ser caracterizada segundo a sua origem. Por essa razão, todas as Igrejas, por mais que sejam numerosas e grandes, procedem todas de uma única primitiva Igreja apostólica.

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Observações minhas:
Primeiramente, é importante compreender que na grande Tradição da Igreja, herdada do Novo Testamento, todas as vezes que se utiliza “Igrejas” no plural está-se referindo ou às Igrejas locais, isto é, às dioceses, ou às comunidades concretas reunidas para a Eucaristia. Aqui, neste texto, Tertuliano refere-se ao que hoje chamamos dioceses.
Observe-se como não se pensa nem se prega nem se ensina que a Igreja vem da Bíblia! As Igrejas de Deus nascem da Tradição Apostólica, que é a pregação, a vida e as Escrituras canônicas da própria Igreja. Nenhuma Igreja é Apostólica se não está na comunhão de fé e de origem com a Igreja apostólica!
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Essa unidade é atestada pelo fato de que elas se comunicam reciprocamente na paz, chamam-se pelo nome de irmãs e se acolhem com hospitalidade.
Esse estilo de vida não é regido por outra lei a não ser a única Tradição do mesmo sacramento.

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Observações minhas:
No cristianismo antigo, as Igrejas exprimiam a sua comunhão umas com as outras pelas cartas de comunhão, pelos símbolos de fé e, sobretudo, pela hospitalidade eucarística. As cartas de comunhão eram escritos de uma Igreja para as outras, seja para comunicar o nome do novo Bispo que tomara posse, seja para apresentar cristãos de uma Igreja que viajavam e deveriam hospedar-se entre os cristãos de outra Igreja. Uma Igreja aceitar a carta de comunhão de outra era expressão de estar em comunhão de fé e de caridade com aquela que enviara a carta. Os símbolos de fé, ainda como hoje, eram resumos dos principais artigos da fé. Serviam como uma carteira de identidade para averiguar se determinado cristão era ou não de uma Igreja ortodoxa, não herética. Finalmente, o mais importante: a hospitalidade eucarística: as Igrejas apostólicas pronunciavam os nomes dos principais Bispos das Igrejas irmãs, os metropolitas, durante a Eucaristia, sacramento da unidade, e acolhiam fieis dessas outras Igrejas nas suas celebrações eucarísticas.
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De tudo isso, então, eis a lição que devemos conhecer: visto que o Senhor Jesus Cristo enviou os Apóstolos para pregar, não se deve dar ouvidos a outros pregadores a não ser àqueles instituídos por Ele, uma vez que o Filho Se manifestou somente aos Apóstolos, os quais enviou para pregar o que havia revelado.
Mas qual era o tema de Sua pregação? Em outras palavras, o que Cristo lhes revelou?
Eu afirmo que não podemos conhecê-lo de outra forma a não ser por meio dessas mesmas Igrejas que os Apóstolos fundaram pessoalmente e que eles mesmos instruíram, seja por viva voz, seja por meio de cartas.

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Observações minhas:
É importante notar como nunca se pensou em alguém simplesmente sair “pregando a Bíblia” ao seu bel-prazer! Nem mesmo existia um volume chamado Bíblia! A imprensa somente surgiu no século XV... Os pregadores verdadeiramente eclesiais, portadores da fé apostólica, recebiam sua fé da Igreja e pregavam a fé da Igreja, que é a fé apostólica. A Bíblia pela Bíblia, interpretada “livremente”, não transmite a fé apostólica e, muitas vezes, foi usada para sustentar o erro e a heresia! Como em tantas ocasiões tenho repetido: as Escrituras somente transmitem a verdadeira fé quando interpretadas na Igreja, no seio da Comunidade eclesial, que tem a garantia de ser sustentada pelo Espírito do Cristo ressuscitado.
É interessante a questão colocada por Tertuliano: O que Cristo pregou? O que ensinou aos Apóstolos? A resposta dele é simples, correta e surpreendente: pregou e ensinou aquilo que as Igrejas apostólicas vivem e ensinam. É preciso olhar o ensinamento delas, as Escrituras que elas usam e os costumes que elas aprovam. É o todo da vida dessas Igrejas, guiadas pelos legítimos pastores que sucedem aos Apóstolos, que revela a Tradição Apostólica, a fé viva e dinâmica “uma vez por todas confiada aos santos” (Jd 3).
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Nessas condições, é claro que toda doutrina que esteja em acordo com a dessas Igrejas, matrizes e fontes originárias da fé, deve ser considerada autêntica, pois contém, evidentemente, aquilo que receberam dos Apóstolos, e que os Apóstolos receberam de Cristo, e Cristo, de Deus. 
Por outro lado, cada doutrina que esteja em contradição com a verdade da Igreja dos Apóstolos de Cristo e de Deus, deve ser, a priori, considerada proveniente da mentira.

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Observações minhas:
Não há como fugir: ainda hoje este critério é sem apelo! É certo que não se pode desrespeitar a consciência ou as convicções de ninguém; mas, a verdade é objetiva e a regra da verdadeira fé encontra-se somente nas Igrejas de Deus que provêm dos Apóstolos sem alterações ou adulterações ou mutilações na sua profissão de fé! Esta verificação é sincrônica (com quem estamos em comunhão atualmente: com os Bispos legítimos, em comunhão entre si e com a Sé de Pedro?) e diacrônica (geração após geração, Domingo após Domingo, a verdadeira Igreja de Cristo, presidida pelos legítimos sucessores dos Apóstolos, celebrou e celebra a Eucaristia na potência do Espírito da Verdade e professou a sua fé apostólica)...
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Resta, portanto, demonstrar que a nossa doutrina, da qual acima formulamos a regra, procede da Tradição apostólica e que, pela mesma razão, as outras provêm da mentira. 

Estamos em comunhão com as Igrejas apostólicas, porque a nossa doutrina não difere em nada delas: este é o sinal da verdade. A prova é tão simples que, uma vez exposta, se torna incontestável. 

Suponhamos que não a expusemos e permitamos que os nossos adversários produzam argumentos para a invalidar. Eles costumavam dizer que os Apóstolos não sabiam tudo; em seguida, inspirados pelo espírito de loucura, contradizem-se, declarando que os Apóstolos sabiam, sim, tudo, mas não o transmitiram. Em ambos os casos está implícita uma crítica a Cristo, por ter enviado Apóstolos ou mal instruídos, ou muito astutos. 

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Observações minhas:
Os hereges sempre mudavam e adulteravam a reta fé apostólica argumentando (1) que os Apóstolos não tinham ensinado tudo e eles estariam agora completando esse ensinamento inspirados por Deus ou, então, (2) argumentavam que os Apóstolos não tinham ensinado tudo aos fiéis comuns, mas somente a um grupo restrito de perfeitos e esses perfeitos teriam transmitido aos que agora estavam ensinando essas novidades condenadas pela Igreja e seus Bispos... É a estas loucuras que Tertuliano responde a seguir...
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Que homem sensato pode acreditar que ignoraram algo aqueles que Cristo nos deu como mestres, e que foram Seus companheiros, Seus discípulos, Seus amigos mais próximos?
Jesus, em privado, clareava-lhes toda a escuridão, dizendo que a eles era dado conhecer os mistérios do Reino dos Céus, mas ao povo não (cf. Mt 13,11).
Poderia ignorar algo Pedro, a pedra sobre a qual deveria ser edificada a Igreja, ele que recebeu as chaves do Reino do Céus, com o poder de ligar e desligar no céu e na terra? 
Poderia ignorar algo João, ele, o amado pelo Senhor, que repousava em Seu peito, o único a quem o Senhor indicou Judas como o futuro traidor, e que entregou a Maria como filho em Seu lugar?
Também ignoraram algo aqueles a quem, depois da Ressurreição, Ele Se dignou explicar, ao longo do caminho, todas as Escrituras? 

É verdade que um dia Ele disse: Muitas coisas ainda tenho a dizer-vos, mas não as podeis suportar agora. Mas acrescentou também: Quando vier o Espírito da Verdade, ensinar-vos-á toda a verdade (Jo 16,12-13). Demonstra, assim, que nada ignoraram aqueles a quem prometia a posse de toda a verdade, por meio do Espírito da Verdade. Promessa mantida, conforme os Atos dos Apóstolos, que atestam a descida do Espírito Santo. 

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Observações minhas:

O raciocínio do nosso Autor está correto: o Senhor nosso Jesus Cristo revelou o essencial da fé e da doutrina aos Doze primeiros. Ali estava o essencial, depois desenvolvido pela ação do Espírito Santo, derramado sobre a Igreja no Pentecostes. E aqui cumpre uma distinção muito importante: pela ação do Espírito de Cristo ressuscitado, tudo quanto os Doze e a geração apostólica ensinaram sob a ação do Espírito é fundante para a Igreja e não pode ser alterado! A partir de então, o Espírito continua agindo na Igreja, sob o pastoreio dos legítimos sucessores dos Apóstolos, fazendo-a compreender e aprofundar sempre mais aquilo que recebeu do Senhor através dos Apóstolos e da geração apostólica, falando sempre a mesma fé apostólica de modo sempre fiel e sempre novo a cada geração e a cada situação onde o Evangelho é anunciado e a Igreja se encontra!



domingo, 3 de junho de 2018

O Reino de Deus em nós

Deus, que disse: “Do meio das trevas brilhe a luz”, é o mesmo que fez brilhar a Sua luz em nossos corações, para tornar claro o conhecimento da Sua Glória na Face de Cristo. Ora, trazemos esse tesouro em vasos de barro, para que todos reconheçam que este poder extraordinário vem de Deus e não de nós.
Somos afligidos de todos os lados, mas não vencidos pela angústia;
postos entre os maiores apuros, mas sem perder a esperança;
perseguidos, mas não desamparados;
derrubados, mas não aniquilados;
por toda parte e sempre levamos em nós mesmos os sofrimentos mortais de Jesus, para que também a Vida de Jesus seja manifestada em nossos corpos.
De fato, nós, os vivos, somos continuamente entregues à morte, por causa de Jesus, para que também a Vida de Jesus seja manifestada em nossa natureza mortal (2Cor 4,6-11).

Comentando:

Texto estupendo! Serviu de segunda leitura para a Missa deste IX Domingo Comum...
Primeiramente, São Paulo compara a conversão a Cristo com a criação: como o Senhor Deus dissera “Faça-se a luz...”e criou tudo, dissipando as trevas, assim também, no coração daquele que se converte a Cristo, tudo é recriado: “Se alguém  está em Cristo é criatura nova. Passaram as coisas antigas; eis que se fez realidade nova!” (2Cor 5,17)A conversão ao Cristo Jesus – que certamente exige a fé e o Batismo, sacramento da fé – não somente nos torna justos diante de Deus de modo nominal, exterior, como também nos recria, nos renova realmente: somos novas criaturas!

Mas, como se dá tal renovação?
O Espírito de Cristo, recebido no Batismo, de tal modo habita em nós, que nos tornamos um reflexo da Glória que rebrilha na Face do próprio Cristo ressuscitado! Esta Glória é o próprio Espírito Santo. São Paulo o afirma um pouco antes, em 4,17-18: “O Senhor é o Espírito... E nós todos, que, com a face descoberta, contemplamos como num espelho a Glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é Espírito”. Texto impressionante! O Senhor ressuscitado é pleno do Espírito Santo; Ele é como um sol reluzente de Espírito Santo e Seus raios, Seu calor, Seu resplendor, nos vai cada vez mais impregnando, incandescendo, transfigurando, nos espirituando! É esta a nova criação de que fala São Paulo no texto mais acima! A luz da Face do Cristo, o fulgor do Espírito vai nos impregnando, de modo que conhecemos, isto é, experimentamos intimamente, saboreamos, a verdadeira Vida divina, que resplandece no Cristo ressuscitado!

Assim, cheio da Vida de Cristo, cheio de Sua Glória, da Sua Força, que é o Santo Espírito – e Ele é consolo, vigor, ânimo, coragem, alegria, conhecimento, entendimento –, o cristão, sobretudo o ministro do Evangelho, tem forças para suportar tudo: “Somos afligidos de todos os lados, mas não vencidos pela angústia; postos entre os maiores apuros, mas sem perder a esperança; perseguidos, mas não desamparados; derrubados, mas não aniquilados”...E por quê? Porque, no Espírito de Cristo, tudo se torna morte com Cristo e vida com Cristo, tudo se torna participação na Páscoa de Cristo; tudo se torna pascal: “por toda parte e sempre levamos em nós mesmos os sofrimentos mortais de Jesus, para que também a Vida de Jesus seja manifestada em nossos corpos. De fato, nós, os vivos, somos continuamente entregues à morte, por causa de Jesus, para que também a Vida de Jesus seja manifestada em nossa natureza mortal”.

Esta é a dinâmica da vida de todo cristão; é o centro mesmo da experiência cristã neste mundo; em outras palavras: para isto somos cristãos! Tudo nele, no cristão,  é transfigurado, tudo nele é cristificado, tudo nele tem o sabor e o sentido do Cristo em Seu mistério de Morte e Ressurreição, até que, no momento de sua saída deste mundo, o discípulo, depois de morrer na Morte de Cristo, possa ser totalmente configurado ao Cristo no Seu mistério de Glória, na Ressurreição do Cristo.

Certamente, o mundo jamais poderá experimentar ou compreender esta tremenda realidade! Somente o cristão – e cristão que verdadeiramente procura viver unido ao Senhor por uma vida santa e sacramental – poderá experimentar concretamente este tremendo mistério de cristificação, mistério de participação íntima e intensa da Páscoa do Senhor em si!

Esta é nossa herança! Esta é nossa certeza! Esta é nossa alegria! Este é o sentido da nossa vida! Esta é a bendita presença do Reino de Deus em nós!


sábado, 2 de junho de 2018

O bem da oração

Homilia de um Autor do século V:

O bem supremo é a oração, a conversa familiar com Deus. Ela é relação com Deus e união com Ele.

Tal como os olhos do corpo são iluminados à vista da luz, assim a alma voltada para Deus é iluminada com a Sua inefável luz.

A oração não é o efeito de uma atitude exterior, mas vem do coração. Não se limita a horas ou a momentos determinados, mas está em contínua atividade, de noite como de dia.

Não nos contentemos com orientar o nosso pensamento para Deus apenas quando estamos em oração; mas quando outras ocupações - como o cuidado dos pobres ou qualquer outra ocupação boa e útil - nos absorvem, é importante associar-lhes o desejo e a lembrança de Deus, a fim de oferecer ao Senhor do universo um alimento muito doce, temperado com o sal do amor de Deus. Podemos daí retirar grande vantagem, ao longo de toda a nossa vida, se a isso consagrarmos boa parte do nosso tempo.

A oração é a luz da alma, o verdadeiro conhecimento de Deus, a mediadora entre Deus e os homens. Por ela, a alma eleva-se ao céu e abraça o Senhor com um aperto inexprimível. Como um lactente a sua mãe, ela grita a Deus chorando, ávida do leite divino. Ela exprime os seus desejos profundos e recebe presentes que ultrapassam tudo que se pode ver na natureza. A oração, pela qual nos apresentamos respeitosamente perante Deus, é a alegria do coração e o repouso da alma.


Homilia para o IX Domingo Comum - Ano B

Dt 5,12-15
Sl 80
2Cor 4,6-11
Mc 2,23 – 3,6

Caríssimos, comecemos nossa meditação da Palavra de Deus com uma pergunta: o que diz a Escritura Santa sobre o sábado?
A palavra shabbat significa repouso.

Segundo a narrativa do Gênesis, no sétimo dia, o Senhor Deus repousou de toda a Sua obra, depois de ter visto que tudo que criara era muito bom: “Deus concluiu no sétimo dia a obra que fizera e no sétimo dia descansou de toda obra que fizera. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele descansou depois de toda a obra da criação” (2,2s). No pensamento do Antigo Testamento, o homem deveria, portanto, descansar no sábado para imitar o Senhor Deus e para reconhecer Nele o Criador de todas as coisas. O sábado seria o dia de louvar e bendizer o Senhor pela criação. O homem reconhece, então, que ele não é Deus; é apenas criatura: só o Senhor é Deus, o Criador do céu e da terra!

Segundo o Livro do Êxodo, o sábado é santo e deve ser guardado cuidadosamente “como uma aliança eterna” entre o Senhor e os israelitas (cf. 31,13-17). Assim, o sábado não somente celebra a criação, como também a aliança do Senhor Deus com Israel, o Seu Povo escolhido. Para o israelita piedoso, portanto, guardar o sábado é celebrar a Aliança com o Senhor Deus de Israel.

Depois, o Deuteronômio acrescentou ainda um terceiro motivo para que os israelitas guardassem o descanso do sétimo dia: Israel fora escravo no Egito; sabia o peso do trabalho escravo. Guardando o sábado, recordaria o Senhor que o libertara e dava um respiro aos estrangeiros e aos escravos (15,14): “Lembra-te de que foste escravo no Egito e que de lá o Senhor teu Deus te fez sair com mão forte e braço estendido. É por isso que o Senhor teu Deus te mandou guardar o sábado!” (5,15)

Assim, eram fundamentalmente três os motivos para o sábado: (1) imitar o Senhor, dando-Lhe graças pela criação; (2) celebrar a Aliança feita com o Povo eleito no Monte Sinai e (3) ser um dia de descanso e alívio para os que viviam debaixo do trabalho pesado. Portanto, o sábado, no pensamento de Deus, seria um dia de celebração, de descanso e de alegria diante do Senhor Deus.

Infelizmente, desde a volta do Exílio de Babilônia e no tempo de Jesus nosso Senhor, eram tantas as prescrições preceituais sobre o sábado, que sua observância tornara-se, em certo sentido, um fardo, uma tensão! Para que se tenha uma ideia, eis alguns exemplos válidos ainda hoje entre os judeus: no sábado não se pode nem mesmo tocar nos objetos de trabalho, não se pode escrever ou fazer marcas permanentes sobre quaisquer coisas, não se pode tocar em dinheiro, comprar, vender ou falar sobre negócios, não se pode acender fogo, produzir faísca nem acender nada, nem mesmo fazer brilhar um objeto de metal, não se pode cozinhar ou preparar alimentos já cozidos, não se pode tocar instrumentos musicais ou praticar esportes...

No Evangelho, o Senhor Jesus não desvalorizou o sábado. Ele mesmo, como judeu praticante, o guardou. Mas, o Senhor não aceitava que as observâncias de Lei se tornassem um peso, quase que como tendo um valor em si mesmas, desligadas do seu sentido e finalidade, que é levar o homem a Deus e, portanto, fazê-lo viver de verdade. Por isso, Sua sentença lapidar: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2,27).
E aqui, caríssimos, estejamos bem atentos, pois o Senhor nos dá um princípio que vale para tudo na prática da nossa religião: a finalidade de todas as práticas religiosas é levar o homem à comunhão com Deus e, assim, fazê-lo viver, pois a Vida do homem é a comunhão com o Senhor Deus, a amizade com Ele!

Uma prática religiosa que oprima, que mate, que seja um absoluto em si mesma, não deve ter lugar no cristianismo! O final da narrativa de hoje é trágico e é um triste indicador de uma prática religiosa tornada absoluta: Jesus desafia os escribas e fariseus: “É permitido no sábado fazer o bem ou mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?” (Mc 2,4) E aqueles lá não respondem nada! O apego ao preceito pelo preceito os impede de discernir, de compreender com o coração iluminado pelo Senhor. Mas, “ao saírem, imediatamente tramaram, contra Jesus, a maneira como haveriam de matá-Lo” (Mc 2,6). Vede, meus caros, a perversão! Vede a que leva o preceito pelo preceito: a matar! Dar a vida não se pode, fazer o bem não se deve, mas tramar a morte num sábado, é permitido... O Senhor nos livre de uma religiosidade assim!
Mas, atenção: isto não significa esvaziar ou desvalorizar os usos da nossa fé, mas deixar claro que eles não são absolutos! Só Deus é absoluto e tudo tem valor enquanto leva a Deus e, assim, plenifica o homem, imagem de Deus!

Tal realidade aparece de modo muito belo na segunda leitura deste hoje: São Paulo suporta tudo, trazendo na carne da sua vida os sofrimentos de Cristo para que a Vida de Cristo, a Glória de Cristo, obra do Espírito Santo de Cristo, seja manifestada na sua existência humana, em todo o seu ser, corpo e alma e, assim, ele mesmo, apóstolo, torne-se, para os irmãos, instrumento do conhecimento da Glória de Deus que brilha na Face de Cristo! Em outras palavras: tudo vale a pena, todo trabalho, todo sofrimento, todas as privações, somente enquanto nos levam a Cristo Jesus, que nos dá a Vida divina!

Que fique, portanto, a clara lição: nem devemos esvaziar e descuidar dos preceitos e costumes da nossa fé nem, tampouco, absolutizá-los! A religião verdadeira existe para o homem, para a sua salvação, para a sua comunhão com Deus! No entanto, ela não pode ser sob a medida do homem, sujeita aos nossos caprichos, mas sob o querer de Deus! E o critério último é o amor, pois Deus mesmo é Amor!

Mas, fica ainda uma questão: por que nós, cristãos, já não guardamos o sábado? Porque passou a antiga criação, celebrada no sábado judaico; passou também a antiga Aliança com os judeus!
O próprio Cristo nosso Senhor dissera: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado” (Mt 5,17s). Pois bem, o nosso Salvador cumpriu em Si tudo quanto estava profetizado na Lei.
No caso do sábado, Ele realizou a nova criação com a Sua santa Ressurreição; Ele estabeleceu a nova e eterna Aliança no Seu sangue no Sacrifício, presente agora em cada Eucaristia; Ele cumpriu plenamente em Si o repouso sabático quando passou o Sábado Santo no repouso da morte. Assim, nos fez ultrapassar o sábado dos judeus e entrar no novo tempo, na nova Aliança, no Dia sem fim, que já não é o sétimo, mas o oitavo, sete mais um, plenitude consumada, o dia que chamamos desde os tempos do Apocalipse de “Dia do Senhor” (cf. Ap 1,10). Por isso mesmo, a séria advertência do Apóstolo: “Ninguém vos julgue por questões de comida e de bebida, ou a respeito de festas anuais ou de lua nova ou de sábados, que são apenas sombra das coisas que haviam de vir. Mas, a realidade é o Corpo de Cristo!” (Cl 2,16)
É triste, depois de vinte séculos de cristianismo, constatar ainda cristãos preocupados em distinguir alimentos puros e impuros e preocupados em guardar o sábado dos judeus... Nunca esqueçamos: tudo isto era sombra, era figura, era profecia que cumpriu-se em Cristo e perdeu sua utilidade! A realidade é o Corpo de Cristo, é a Igreja, Israel da nova e eterna Aliança! E esta Aliança tem como preceito fundamental o amor a Deus e aos irmãos, como Cristo amou! A Ele a glória pelos séculos. Amém.


Sem medo de ser cristão

Meu caro Leitor,
Escrevi este texto em 2009, em Roma, no final de um dia cansativo... 
Coloco-o aqui, porque escreveria cada palavra novamente...

Ei-lo:

Sem medo de ser cristão

Hoje, mais que em qualquer outra época, caminhar pelas ruas de uma grande cidade como Roma é deparar-se com uma incrível mistura de pessoas, raças, culturas...

Caminho por Roma, tomo seu metrô, utilizo seus ônibus pensando na antiga Europa cristã...
Esta Europa não existe mais...
Existem sim, uma Europa e um Ocidente misturados, diversificados que, infelizmente, além de abertos aos demais (o que é bom), desconhecem e renegam seu passado cristão... e, desconhecendo suas gloriosas raízes cristãs, se desfiguram, se renegam a si mesmos...

Penso, então, em nós, “homens de Igreja”, tão preocupados em evangelizar: fazer novamente o Ocidente e a Europa conhecerem o Cristo e, mais ainda, plasmar uma nova cultura cristã, é o sonho e a obssessão de tantos de nós, “homens de Igreja”... Para isto, inventamos mil programas, mil modos para anunciar o Evangelho, levantamos mil hipóteses sobre o motivo da descristianização do mundo; culpamo-nos, culpamos a catequese, culpamos os erros históricos da Igreja, culpamos a liturgia...

Mas, nas nossas doutas análises – em geral tão pouco espirituais e tão desatentas ao Senhor – esquecemos o principal: o cristianismo não é uma proposta primeiramente a uma cultura, a um povo, a uma civilização;
o cristianismo é uma proposta a pessoas concretas, individuais, que, tendo a falta de juízo de acolher um Crucificado como Salvador, recebem o Batismo e entram no Povo santo de Deus, que é a Igreja...

Esquecemos que o anúncio cristão não deveria procurar fazer piruetas pastorais e malabarismos, coreografias litúrgicas ou coisinhas engraçadas para atrair as pessoas. Deveríamos somente anunciar Jesus, e Jesus crucificado e ressuscitado, que será sempre escândalo e loucura quando confrontado com a mentalidade do mundo!
Foi assim no princípio, quando ainda estávamos nas catacumbas; será sempre assim!
Se impérios converteram-se a Cristo foi porque, naqueles tempos, a conversão dos governantes levava consigo os governados... Hoje não é mais assim! A conversão é pessoal! E somente uma conversão deste modo corresponde ao que o Senhor Jesus espera de nós!

Então, pelo amor de Deus! A questão não é fazer malabarismos pastorais nem tornar o cristianismo palatável à nossa sociedade neopagã! A questão é somente anunciar o Senhor – um Senhor que quis aparecer aos homens na Sua humildade humana e, mais ainda, na Sua louca e incompreensível Cruz! O resto, é Ele, somente Ele, Quem faz!
Aceitar o Cristo, tornar-se cristão, é obra da graça, não perícia nossa! A nós cabe anunciar sem medo, sem meios termos, sem esconder as exigências e a originalidade do Evangelho... Ao homem – a cada homem que vem a este mundo! – cabe a decisão de crer ou não crer, aceitar ou não aceitar um Deus assim!

No mundo do bem-estar, do consumo, da técnica, do capitalismo mais despudorado, mais que nunca a lógica do Evangelho é escandalosa. Pois bem, é a este mundo que temos de propor Jesus! Mas, somente vamos fazê-lo de modo crível se não nos escondermos atrás de um falso diálogo, de uma secularização desavergonhada, da negação do Mistério e da gostosa loucura de crer!
Como se engana quem pensa que tomando o jeito do mundo e sorrindo para as suas loucuras seremos aceitos! E ainda que fôssemos, o Cristo que pregaríamos seria falsificado e inútil! "Anunciamos Jesus e Jesus Crucificado!"

Isto! Levar Jesus, sorrindo, não dando bola para quem nos achar loucos, reacionários, quadrados ou alienados - como umas freirinhas francesas jovens, bonitas, felizes, com hábitos bem compridos, que vi hoje na estação Términi, aqui em Roma!
Viver Jesus, saborear Sua presença nas Escrituras e na santa Liturgia - como experimentei hoje pela manhã na Missa em Rito bizantino eslavo no Pontifício Instituto Oriental...
Sem medo de sermos cristãos, sem medo de sermos felizes, sem medo de viver o Evangelho com todas as suas consequências pessoais e comunitárias - como o jovem de 19 anos, Enrico, que encontrei em Rovigo e que deseja largar tudo para ser padre.

Eis! Ser cristão foi e continuará sempre sendo isto e só isto: um encontro com o Senhor, uma paixão por Jesus, um desejo incontido e meio inexplicável de apostar a vida Nele e a Ele entregar tudo!
É isto o cristianismo, é isto que devemos proporcionar ao homem de hoje, sem apreensão, sem perda da paz, sem achar que está tudo perdido, sem pensar que salvaremos o mundo, sem cair na ilusão que nossos maravilhosos estudos e programas pastorais serão a solução...
O resto, o Senhor fará como Lhe aprouver!


Voltando a este espaço

Meu caro Leitor,

Decidi retomar meu Blog, parado desde 2015...
Depois de muito tempo utilizando somente o site www.domhenrique.com.br e o Facebook, resolvi retomar este espaço.

Por quê?
Porque aqui os textos são mais ágeis que no site e mais duráveis que no Facebook.

Quando um texto for mais elaborado, irá também para o site. Quando tratar-se de um escrito mais simples ou até que não seja de minha autoria, ficará somente aqui e no Facebook (Dom Henrique Soares da Costa). 

Deste modo, continuo com o site,
minha conta e página no Facebook
e, agora, com o Blog, novamente...

Vejamos se dará certo...

O objetivo é sempre o mesmo: partilhar, através dos meus escritos, a experiência cristã, um modo cristão de ver e experimentar a vida e o mundo.

Bem-vindo, mais uma vez!

Que o Senhor o abençoe!


+Henrique, de Palmares