Caro Amigo, aqui vai um antigo texto meu, que faço questão de repropor hoje, palavra por palavra...
O Governo francês está em guerra com os fundamentalistas muçulmanos. Por isso mesmo, reuniu o Conselho dos Sábios(!) – não se sabe de que sabedoria – e decidiu proibir nas escolas públicas de França quaisquer sinais religiosos: cruzes, turbantes, o véu das muçulmanas, o kippar dos judeus... Certamente, a medida é um desrespeito à liberdade de consciência e à liberdade de expressão, apesar de ter a desculpa esfarrapada de coibir o fundamentalismo e, por tabela, o terrorismo. A questão, no entanto, é mais profunda, mais ampla, mais séria. Trata-se do medo e da recusa, tão próprios de nossa sociedade ocidental, de abrir-se verdadeiramente para a ideia de um Ser transcendente, um Deus que seja realmente criador e interlocutor da humanidade.
Desde o século XVIII, a Europa vem cada vez mais relegando a questão religiosa para o campo do privado: a religião seria coisa de cada um, coisa para ser praticada no interior das casas e das consciências; não deveria ter nenhuma incidência na vida pública, social, comunitária. Esquecem os governantes franceses, esquecem os “sábios” da república pagã que, sem a religião, sem a Igreja católica, a França não seria França e a Europa não seria Europa. Esquecem o papel que o cristianismo, em geral, e o catolicismo, em particular, tiveram na formação da cultura e da consciência europeias. Isto é trágico, pois agora que desejam construir uma Europa unida, grande, atiram no pé ao esquecerem as origens culturais e humanas do Velho Continente. Ainda a França – primeiro país da Europa ocidental a receber o Batismo e já considerada “filha primogênita da Igreja” – foi contrária a uma referência ao cristianismo na nova constituição da União Europeia...
É necessário, no entanto, que se compreenda que o valor incomensurável, que é a liberdade religiosa, não deve ser confundido com a privatização da fé e da religião. A experiência religiosa é um valor imprescindível para a humanidade e a religião, como tal, pode e deve influenciar a consciência e o comportamento social, deve forjar um modo de ver o mundo e a vida, deve plasmar um jeito de encarar os problemas, realizar as escolhas e afrontar os desafios. É verdade que a religião não pode nem deve impor, mas pode e deve propor, insistir, recordar valores, exigências éticas, critérios morais. Sem isso, é a barbárie! Sem Deus, o humanismo é capenga, falso, simples e pura ideologia! Não resiste muito uma afirmação da dignidade do homem que não se funde na consciência do seu ser-amado-por-Deus. Nunca é demais insistir nas palavras do Senhor Deus, no livro do Gênesis: “Eu pedirei contas da vida do homem. Quem derrama o sangue do homem, pelo homem terá o seu sangue derramado. Pois à imagem de Deus o homem foi feito!” (Gn 9,5b-6)
É, pois, indispensável que as sociedades desenvolvidas do chamado Primeiro Mundo compreendam que, fechando-se para Deus - para Aquele que nos transcende e nos situa, fazendo-nos compreender a nós mesmos -, somente nos destruímos e perdemos o sentido mais profundo de nossa dignidade. Já nos anos sessenta, os Bispos do mundo inteiro, reunidos no Concílio Vaticano II, alertavam para esta triste possibilidade que se concretiza nos nossos dias. Primeiramente, colocavam a questão da essência do ser humano: “Que é o homem? Ele próprio já formulou, e continua a formular, acerca de si mesmo, inúmeras opiniões, diferentes entre si e até contraditórias. Segundo estas, muitas vezes se exalta, até se constituir norma absoluta, outras se abate até ao desespero. Daí as suas dúvidas e angústias... A Sagrada Escritura ensina que o homem foi criado à imagem de Deus, capaz de conhecer e amar o seu Criador, e por Este constituído senhor de todas as criaturas terrenas...” Depois, os Bispos recordaram que Deus é a verdade do homem: “A razão mais sublime da dignidade do homem consiste na sua vocação à união com Deus. E desde o começo de sua existência, o homem é convidado a dialogar com Deus: pois, se existe, é só porque, criado por Deus por amor, e por Ele, por amor, constantemente conservado; nem pode viver plenamente segundo a verdade, se não reconhecer livremente esse amor e se entregar ao seu Criador”.
Em essência, o grande desafio do mundo ocidental, se não quiser se perder de vez, perdendo o rumo de sua consciência e de seu coração, é reconhecer novamente o ser humano como estruturalmente aberto para Deus. A racionalidade ocidental tem que reconhecer que não pode abarcar o sentido último e global da realidade toda: nem as ciências da natureza, nem a filosofia, nem as ciências sociais poderão jamais chegar ao cerne da questão do sentido mesmo da existência! Também a incrível habilidade científica e tecnológica não deveria engabelar o Ocidente, dando-lhe a ilusão de tudo poder e de satisfazer o coração humano empanturrando-se de bem-estar. Tudo que conseguiremos assim é a destruição do coração e do planeta! O homo sapiens (homem que pensa) e o homo faber (homem que produz ciência e tecnologia) têm que ser também homo fidelis (homem que é aberto ao Transcendente e é capaz de crer e ser fiel a Deus). Não esqueçamos as dramáticas palavras de Miguel de Unamuno, ateu que procurava Deus: “Sofro eu à Tua custa, Deus não existente, pois se Tu existisses, eu existiria também de verdade”. Ou Deus e o homem, ou nem Deus nem o homem!
Amém 👏
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