quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

"Não farás para ti imagem esculpida..." (IV)

Depois de termos visto o Antigo e o Novo Testamento, vejamos agora a questão das imagens na Tradição da Igreja. 
Os cristãos, inspirados na Escritura, sobretudo no Novo Testamento, que é a plenitude a Revelação divina, sempre usaram pinturas e imagens.

Já nas antigas catacumbas cristãs da Roma antiga, no tempo dos mártires, podem ser encontradas imagens inspiradas em textos bíblicos: Noé salvo das águas do dilúvio, os três jovens cantando na fornalha, Daniel na cova dos leões, Susana, os pães e os peixes da multiplicação operada por Jesus, o peixe (= ICHTHYS), símbolo de Cristo. Na catacumba de Priscila, em Roma, pode-se ver ainda hoje uma pintura da Virgem com o Menino Jesus. Esta pintura é do início do século III, quando os cristãos ainda morriam torturados nos circos da Roma pagã para testemunharem sua fé no Senhor Jesus Cristo. Ainda dessa época é a pintura de um pastor tocando flauta, imagem de Cristo Pastor, Filho de Davi, e uma outra, do Bom Pastor, com a ovelhinha aos ombros.

As pinturas dos santos e das cenas bíblicas eram consideradas pelos cristãos não somente normal, como também educativa:

O desenho mudo sabe falar sobre as paredes das igrejas e ajuda grandemente (São Gregório de Nissa - séc. IV).
O que a Bíblia é para os que sabem ler, a imagem o é para os iletrados (São João Damasceno - séc. VIII).

Gregório Magno (séc. VII) repreendia o Bispo de Marselha:

Tu não devias quebrar o que foi colocado nas igrejas não para ser adorado, mas simplesmente para ser venerado. Uma coisa é adorar uma imagem, outra coisa é aprender, mediante essa imagem, a quem se dirigem as tuas preces. O que a Escritura é para aqueles que sabem ler, a imagem o é para os ignorantes; mediante essas imagens aprendem o caminho a seguir. A imagem é o livro daqueles que não sabem ler.

Entre os séculos VIII e IX surgiu, no entanto, a heresia iconoclasta. Influenciados pelo judaísmo, pelo islamismo e por seitas gnósticas cristãs, que negavam a verdade da Encarnação do Verbo divino e, portanto, que Cristo Se tivesse realmente feito homem de carne e osso, com um corpo material, os iconoclastas passaram a negar a legitimidade das imagens sagradas. Os Bispos da Igreja de Cristo, então, reuniram-se no II Concílio de Niceia, em 787, afirmando a legitimidade e validade do culto das imagens, condenando a heresia iconoclasta. O Concílio distinguia entre latréia (= adoração), devida somente a Deus e proskynesis (= veneração) tributável aos santos e suas imagens já que estas os recordam e representam. Na reta doutrina cristã, o culto às imagens é relativo: só se explica e é aceitável na medida em que é tributado indiretamente àqueles que as imagens representam. Note-se que nesta época do II Concílio de Niceia não havia outra Igreja cristã, a não ser a Igreja católica, com exceção de pequenas facções heréticas que não aceitavam a divindade ou a humanidade de Cristo na sua totalidade.

Eis o ensinamento desse Concílio, inspirado pelo Espírito Santo:

Definimos... que, como as representações da Cruz... assim também as veneráveis e santas imagens, em pintura, em mosaico ou de qualquer matéria adequada, devem ser expostas nas santas igrejas de Deus, nas casas e nas estradas... Quanto mais os fieis contemplarem essas representações, mais serão levados a recordar-se dos modelos originais, a se voltar para eles, a lhes testemunhar... uma veneração respeitosa, sem que com isto seja adoração, pois esta só convém, segundo a nossa fé, a Deus.

Esta é a doutrina da Escritura e da Igreja de Cristo sobre as imagens! E tal doutrina vem das origens! A Igreja permite as imagens de Cristo porque o próprio Deus Se fez imagem, em Jesus nosso Senhor: Ele, como já vimos é a imagem do Deus invisível. São João Damasceno (séc VIII) explicava:

Como fazer a imagem do Invisível?... Na medida em que Deus é invisível, não O represento por imagens; mas desde que viste o Incorpóreo feito homem (Deus feito homem em Jesus), podes fazer a imagem da forma humana; já que o Invisível Se tornou visível na carne, podes pintar a semelhança do invisível.

A ideia é clara: Deus fez-Se imagem para Si mesmo em Cristo, portanto, pode-se fazer imagem de Cristo! E a dos santos? Os santos são cristãos como qualquer outro, mas que tiveram a coragem de não se fechar para a graça de Cristo, fazendo de suas vidas uma imagem da vida de Cristo. Como dizia São Paulo:

Os que de antemão Deus conheceu, esses também predestinou a serem conformes à imagem do Seu Filho, a fim de ser Ele o primogênito entre muitos irmãos (Rm 8,29).
Assim como trouxemos a imagem do homem terrestre, assim também traremos a imagem do Homem celeste (1Cor 15,49).

A ideia de Paulo é belíssima, profunda e central no cristianismo: como o homem trouxe em si a imagem do homem pecador, do primeiro Adão, agora, convertido e batizado, traz em si a imagem do Homem celeste, o novo Adão, Cristo Jesus. E quanto mais se vive a Vida nova de Cristo, mas se é conforme à imagem de Cristo
:
E nós todos que, com a face descoberta, refletimos num espelho a Glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma Imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é Espírito (2Cor 3,18),
Vós vos desvestistes do homem velho com as sua práticas e vos revestistes do novo, que se renova para o conhecimento segundo a Imagem do seu Criador. Aí não há mais grego e judeu, circunciso ou incircunciso, bárbaro, cita, escravo, livre, mas Cristo é tudo em todos (Cl 3,9-11).

Os cristãos fazem imagens dos santos - particularmente da Virgem Maria - porque eles, com a sua vida, foram de tal modo abertos à graça de Cristo que se tornaram imagens vivas Daquele que é a Imagem do Deus invisível. Os santos tiveram a coragem de levar até às últimas conseqüências o apelo de Paulo: Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (Fl 2,5).

Vê-se, assim, que a Igreja tem motivos de sobra para venerar as sagradas imagens. Tanto que Martinho Lutero (séc. XVI) principal fundador dos protestantes, apesar de errar em muitas de suas doutrinas, escrevendo sobre as imagens, na obra “Sobre a Ceia de Cristo”, afirmava o seguinte:

Tenho como algo deixado à livre escolha as imagens, os sinos, as vestes litúrgicas... e coisas semelhantes. Quem não os quer, deixe-os de lado, embora as imagens inspiradas pela Escritura e por histórias edificantes me pareçam muito úteis... Nada tenho em comum com os iconoclastas!

Penso que estas informações sejam suficientes para explicar o uso das imagens e refutar decididamente a calúnia de quem afirma que os católicos adoram imagens. Certamente, contudo, é necessário reconhecer que há pessoas que abusam e exageram na sua prática. Tais pessoas, no entanto, e tais práticas abusivas não são de acordo com o sentimento nem com a fé da Igreja de Cristo. Elas, certamente, não adoram as imagens, mas podem, por ignorância e má formação, cometer excessos na veneração às sagradas imagens. Por isso, a necessidade de uma catequese paciente e constante, neste e em outros pontos da doutrina cristã.


Um comentário:

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