Dos sermões de São Leão Magno, Papa (séc. V):
De nada serve afirmar que nosso Senhor, filho da Virgem Maria, é verdadeiro e perfeito homem, se não se acredita que Ele também pertence a essa descendência proclamada no Evangelho.
Escreve São Mateus: “Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1,1). E, a seguir, apresenta a série de gerações desde os primórdios da humanidade até José, com quem estava desposada a Mãe do Senhor.
São Lucas, porém, percorrendo em sentido inverso a ordem dos descendentes, chega ao começo do gênero humano, para mostrar que o primeiro e o último Adão têm a mesma natureza.
Observação minha:
O fato de o Verbo eterno do Pai ter-Se feito homem torna-O solidário com toda a humanidade e até mesmo com toda a criação. Fazendo-Se homem, o Verbo fez-Se mundo, fez-Se parte do universo, entrou no tempo, tudo assumindo da criação, tudo elevando, tudo revestindo de uma nova dignidade, tudo levando à plenitude que o Criador, desde o princípio, desejou para a Sua criatura.
Mas, este mistério de salvação estaria escondido, desconhecido à humanidade, caso não tivesse sido preparado na história do Povo de Israel e não tivesse sido anunciado e explicado pelos profetas e pelos textos sagrados do Antigo Povo. Nesses textos santos havia duas promessas claras: através da descendência de Abraão toda a humanidade seria abençoada (cf. Gn 12,3) e da descendência de Davi, da sua casa real, nasceria o Rei Messias (cf. 2Sm 7,12-16). Por isso, São Leão Magno insiste na importância de se afirmar que Jesus é filho de Abraão e filho de Davi; por isso também mostra a importância da alusão de São Lucas ao fato de Jesus ser filho de Adão. Como filho de Adão, é humano e salvador da humanidade, como filho de Abraão, é israelita e portador da bênção a toda a humanidade, como filho de Davi, é Messias, Rei de Israel, cheio do Espírito Santo e consumador do desígnio salvífico de Deus.
Com efeito, seria possível à onipotência do Filho de Deus, para ensinar e justificar os homens, manifestar-Se do mesmo modo que aparecera aos patriarcas e profetas, como, por exemplo, quando travou uma luta ou manteve uma conversa, ou quando aceitou os serviços da hospitalidade a ponto de tomar o alimento que Lhe apresentaram.
Mas essas aparições eram imagens, sinais misteriosos, que anunciavam a realidade humana do Cristo, assumida da descendência daqueles antepassados.
Observação minha:
Era pensamento comum dos Santos Padres da Igreja que as várias manifestações do Senhor Deus no Antigo Testamento eram, na verdade, misteriosas e preparatórias manifestações do próprio Verbo, preparando-Se para fazer-Se carne no ventre da Virgem. Assim, o Anjo do Senhor que falou na sarça e a tantos personagens, Melquisedec, a Anjo que combateu com Jacó, era sempre o Verbo. Esta ideia vem de uma convicção muito profunda dos Padres da Igreja: o Pai é absolutamente transcendente: ninguém pode vê-Lo ou ouvi-Lo diretamente. Sua voz é o Filho, o Verbo, Sua manifestação é sempre o Filho; é através do Filho sempre e somente que o Pai Se dirige à criação e revela-Se à humanidade! Santo Irineu, no século II, dizia de modo admirável: “A Realidade invisível que Se manifestava no Filho era o Pai; e a Realidade visível na qual o Pai Se revelou era o Filho” (Contra as Heresias, IV). No entanto, para os nossos Santos Padres, todas estas manifestações, estas cristofanias, eram apenas preparações para o mistério da Encarnação, quando o Filho eterno, o Verbo do Pai, pessoal e realmente, assumiria a nossa natureza humana e, através dela, entraria pessoalmente na criação, assumindo-a e elevando-a à Sua Vida divina.
Nenhuma daquelas figuras, entretanto, poderia realizar o mistério da nossa reconciliação, preparado desde a eternidade, porque o Espírito Santo ainda não tinha descido sobre a Virgem Maria, nem o Poder do Altíssimo a tinha envolvido com a Sua sombra; a Sabedoria eterna não edificara ainda a Sua casa no seio puríssimo de Maria para que o Verbo Se fizesse homem; o Criador dos tempos ainda não tinha nascido no tempo, unindo a natureza divina e a natureza humana numa só Pessoa, de modo que Aquele por Quem tudo foi criado fosse contado entre as Suas criaturas.
Observação minha:
Muito importante a percepção de São Leão: a salvação que provém do Pai através do Filho, somente pode dar-se no Espírito Santo. É a ação do Espírito Criador, Espírito no qual tudo foi criado e é sustentado, que cria em Maria Virgem a natureza humana, corpo e alma, do Verbo eterno do Pai. Aqui, este Santo Espírito é chamado Sabedoria, aquela que no Livro dos Provérbios (cf. 9,1) edificou Sua casa. No pensamento de São Leão Magno, a casa é a Virgem Maria: nela habitando, o Espírito torna-a fecunda do próprio Filho eterno, feito pessoalmente homem, assumindo uma natureza humana completa (corpo humano e alma humana) sem deixar a Sua natureza divina, ambas unidas na divina Pessoa do Verbo eterno, segunda da Trindade Santa.
Se o Homem Novo, revestido de uma carne semelhante à do pecado (cf. Rm 8,3), não tivesse assumido a nossa condição, envelhecida pelo pecado; se Ele, consubstancial ao Pai, não Se tivesse dignado ser também consubstancial à Mãe e unir a Si nossa natureza, com exceção do pecado, a humanidade teria permanecido cativa sob o jugo do demônio; e não poderíamos nos beneficiar do triunfo do Vencedor, se esta vitória fosse obtida numa natureza diferente da nossa.
Observação minha:
Aqui, basta sublinhar a afirmação de que o Cristo Jesus é consubstancial ao Pai e fez-Se consubstancial à mãe. Em outras palavras: Cristo Jesus é realmente verdadeiro Deus, da mesma substância divina do Pai, e verdadeiro homem, da mesma substância humana da Virgem. A Virgem não foi somente a “casa” na qual o Verbo encarnado habitou: o Verbo-Deus recebeu dela, realmente, a natureza humana, de modo que ela é verdadeiramente Mãe de Deus feito homem, Mãe da Pessoa divina na Sua natureza humana! Ainda uma observação delicada, talvez um pouco complicada para quem não é estudioso da teologia: Jesus não é consubstancial ao Pai como é consubstancial à mãe... A união da natureza divina do Filho com o Pai é não somente genérica (gênero divino), mas também numérica: não são duas naturezas divinas iguais, mas uma só natureza divina, infinitamente simples e igual. Já a união da natureza humana de Jesus com Sua mãe, conosco é somente genérica (Ele pertence ao gênero humano, como cada um de nós, mas em cada um de nós, a natureza humana pertence de modo próprio a cada pessoa. Em nós, a unidade da natureza não é numérica; é somente genérica)...
Dessa admirável união, brilhou para nós o sacramento da regeneração, para que renascêssemos espiritualmente pelo mesmo Espírito por quem o Cristo foi concebido e nasceu.
Por isso diz o Evangelista, referindo-se aos que creem: “Estes não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus mesmo” (Jo 1,13).
Observação minha:
É digno de atenção como o Papa Leão refere-se ao mistério da Encarnação: sacramento, isto é, ação pela qual o Senhor Deus realmente concede a Sua graça salvífica! Sacramento da regeneração, porque o Filho eterno feito homem, como homem morreria, como homem seria ressuscitado pelo Pai na potência vivificante do Espírito Santo e, como homem glorificado à Direita do Pai, derramaria o Seu Espírito sobre a Igreja, que, através dos sacramentos, sobretudo do Batismo e da Eucaristia, daria continuamente aos fieis o Vida nova, Vida divina, Vida eterna, que é dom do próprio Santo Espírito do Deus nascido da Virgem, morto, ressuscitado e glorificado nos Céus, na plenitude do Reino do Pai e do Filho e do Espírito Santo! Assim, o mistério do Santo Natal do Senhor é o princípio, o sacramento da nossa salvação: o filho de Adão, filho de Abraão e filho de Davi, veio para que, no Seu Santo Espírito de Filho, sejamos tornados verdadeiramente filhos de Deus! Esta é a salvação! Este é o Reino de Deus!
Magistral!
ResponderExcluirBispo, o senhor poderia se aprofundar futuramente, em um texto ou em um vídeo, sobre a união genérica e a numérica? Eu não entendi muito bem. A sua bênção.
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