quinta-feira, 7 de maio de 2020

Das trevas ao Deus vivo e verdadeiro

É convicção inerente ao cristianismo e, portanto, absolutamente irrenunciável que o cristianismo é a única religião verdadeira (religio vera). Somente nela Deus revelou-Se plenamente. Toda a história do Povo de Israel foi revelação autêntica e verdadeira do Senhor Deus, preparando a plenitude dos tempos, quando veio o Santo Messias, Jesus Cristo, Verbo do Pai, Deus gerado e vindo de Deus, Luz gerada e vinda da Luz, através de Quem e para Quem tudo foi criado no Céu e na terra. Neste sentido, a situação do judaísmo é única: ele não é propriamente uma religião falsa, mas incompleta, como um botão que não chegou a ser flor, como um fruto que não chegou a amadurecer, como uma promessa que não consegue enxergar o cumprimento. Isto acontecerá, com a graça de Deus, quando o Messias, nosso Senhor, Se manifestar em glória, na Sua gloriosa Parusia, que esperamos e desejamos. Neste sentido coincidimos com os judeus, que também esperam o Messias. Nós já sabemos quem Ele é: é Jesus, nosso Senhor; eles saberão ao final; saberão e reconhecê-Lo-ão! Sobre isto, leia-se Rm 9 – 11. Um cristão não pode, portanto, avaliar o judaísmo como uma religião falsa: ele nasceu da vontade de Deus em vista de Cristo; misteriosamente este propósito divino persiste...

Todas as outras religiões são, fundamentalmente, feitos humanos, realidiades plasmadas pelo home, dele se originando. Em si, têm um aspecto fundamental muitíssimo positivo: são expressão da irrefreável busca de Deus por parte do homem, são expressão da saudade do Infinito que habita o coração humano. Em todas as religiões pagãs o homem procura, às apalpadelas, o Deus escondido. E esta sede, esta procura, este desejo visceral do coração humano é pelo Senhor Deus desejada e foi pelo Senhor Deus colocada no mais íntimo dos filhos de Adão. Por isso mesmo, todas as religiões têm elementos positivos e sementes de verdade e de bem, que devemos reconhecer e pelos quais damos graças a Deus, pois são até preparação para o Cristo (preparatio evangelica). No entanto – e o Concílio Vaticano II é claríssimo nisto -, possuem também graves lacunas e até mesmo erros sérios. Nunca esqueçamos: nenhuma religião pagã é revelada por Deus! É uma procura de baixo para cima: é um desejo do homem, é uma frágil palavra do homem sobre Deus. E, por isso mesmo, provisória, incompleta e, muitas vezes, errônea.

O dever dos cristãos é anunciar claramente Jesus, o Senhor, a todos os povos, a todos os homens, para que conheçam a salvação que Deus nos oferece no Seu bendito Filho e, assim, todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (cf. 1Tm 2,4), que é unicamente Jesus Cristo. A Igreja e os cristãos não podem se eximir desse testemunho sob nenhum pretexto: “Ide e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que Eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos!” (Mt 28,19s) Isto não é desrespeitar ninguém, desde que o anúncio seja feito sem detratar os outros, sem desrespeitar ou violentar a consciência alheia, sem agredir nem impor: a verdade impõe-se por si, pela sua profundidade, pela sua beleza e harmonia e pelo testemunho pessoal de quem a comunica. No entanto, deixar o paganismo e abraçar o cristianismo é, no dizer de São Paulo, abandonar os ídolos e converter-se ao Deus vivo e verdadeiro, é sair das trevas e ver a grande Luz, que é Cristo, nosso Senhor (cf. Ef 2,1-5; Cl 1,21-23; 2,13ss; 3,5-8).

Um cristão que seja fiel às Escrituras e à constante fé da Igreja, não tem como negar esta realidade: as religiões pagãs trazem, em grau maior ou menor, deturpações na imagem de Deus e do homem e, consequentemente, escravidões. É a escravidão típica do paganismo! A Escritura santa e a própria experiência estão cheias de constatações dessa realidade... O mundo antigo vivia sob a opressão de superstições, da imoralidade, de violência desmedida, do desprezo pela pessoa humana, de opressão e do desrespeito pela consciência. Muitas regiões do nosso planeta, dominadas pelo paganismo, vivem assim! Foi o cristianismo que libertou o homem de tudo isto, revelando-lhe a dignidade de filho de Deus e sua condição de pessoa. Mesmo quando os cristãos não foram fiéis aos princípios evangélicos e também violentaram consciências e até mesmo perseguiram e mataram – e infelizmente, fizeram isto! –, a seiva do cristianismo estava sempre lá, corrigindo as consciências e obrigando os discípulos de Cristo a retomarem, cedo ou tarde, o caminho correto. Por mais que hoje em dia queira-se incutir que todas as religiões são iguais ou que se tem que renunciar a toda obra de difusão do Evangelho, basta escutar com espírito de fé e obediência as Sagradas Escrituras e basta conhecer melhor essas religiões e ver-se-á o quanto de lacunas e erros há nelas. Somente em Cristo é manifestada toda a dignidade do ser humano, pois, como afirma o Segundo Concílio do Vaticano, o mistério do homem somente encontra sua plena luz à luz do mistério do Verbo encarnado... O respeito intransigente que devemos ter pela liberdade religiosa, a liberdade de consciência que devemos defender vigorosamente, o respeito pelas culturas e valores próprios e legítimos de cada povo e pessoa não nos devem jamais perder o foco e esquecer a verdade do Evangelho, seu poder libertador, seu vigor humanizador e o dever que temos de proclamar o Senhor a todos os povos!


domingo, 3 de maio de 2020

Jesus: o sentido, o consolo, a vida

O grande dom que Cristo nos faz não são milagres nem curas nem solução de problemas. Deixemos essa visão miserável, mesquinha e pagã para os pagãos e os que enganam e ganham dinheiro e poder em nome de Cristo. Nosso modo de ver é outro, é aquele mesmo que o Cristo nos ensinou e do qual Ele mesmo nos deu o exemplo pela Sua vida e pela Sua morte!

O Santo Padre Bento XVI, quando ainda era Cardeal Ratzinger, assim escreveu: “Uma visão do mundo que não pode dar um sentido também à dor e não consegue torná-la preciosa, não serve para nada. Tal visão fracassa exatamente ali, onde deveria aparecer a questão mais decisiva da existência. Aqueles que sobre a dor não têm nada mais a dizer a não ser que se deve combatê-la, enganam-se. Certamente, é necessário fazer tudo para aliviar a dor de tantos inocentes e limitar o sofrimento. Mas, uma vida humana sem dor não existe e quem não é capaz de aceitar a dor, foge daquelas purificações que são as únicas a nos tornar maduros. Na comunhão com Cristo, a dor torna-se plena de significado, não somente para mim mesmo, como processo de purificação, no qual Deus tira de mim as escórias que obscurecem a Sua imagem, mas também, para além de mim mesmo, é útil para o todo, de modo que, todos nós podemos dizer como São Paulo: ‘Agora eu me alegro nos sofrimentos que suporto por vós, e completo na minha carne o que falta dos padecimentos do Cristo pelo Seu corpo que é a Igreja’ (Cl 1,24)... A vida vai além da nossa existência biológica. Onde não há mais motivo pelo qual vale a pena morrer, também não há motivo que faça valer a pena viver.”

Não vivamos como os pagãos, que vão sendo levados pela existência, fugindo da realidade e refugiando-se nas ilusões. Quanto excesso de divertimento, de eventos esportivos, de programas turísticos, de sonhos de consumo, de lazer e diversão... Se tudo isso numa justa medida é saudável, com o excesso que hoje se vê, é prejudicial, é sinal de uma humanidade doente, que tem medo de enfrentar as verdadeiras e profundas questões da existência! É que sem uma relação viva e íntima com o Senhor, é impossível enfrentar a nossa dura realidade! É neste sentido que o cristianismo nos apresenta um Evangelho, uma Boa Notícia: porque nos dá o Sentido, que aparece em Cristo Jesus!

Abramo-nos para o Senhor; Nele apostemos nossa existência e tornemo-nos para os outros sinais de esperança e de vida, como São Paulo que se sentia devedor do Evangelho a todos. Que seja o Senhor Jesus consolo de nosso pranto, força no nosso caminho, alívio de nossas dores e prêmio de Vida eterna!


sábado, 2 de maio de 2020

Homilia para o IV Domingo da Páscoa - ano a

At 2,14a.36-41
Sl 22
1Pd 2,20b-25
Jo 10,1-10

“Ressuscitou o bom Pastor, que deu a vida por Suas ovelhas e quis morrer pelo rebanho”. Estas palavras da Liturgia exprimem admiravelmente o espírito deste Domingo IV do Tempo Pascal, chamado Domingo do Bom Pastor.
Valeria a pena ler e meditar de modo contemplativo o capítulo 10,1-18 do Evangelho de São João. Aí, Jesus Se revela como o Bom Pastor, ou melhor, o Perfeito, o Belo, o Completo e Pleno Pastor: “Eu sou o bom Pastor: o bom pastor dá Sua vida pelas Suas ovelhas” (Jo 10,11). Criticando duramente os pastores, isto é, os líderes do Povo de Israel, Deus havia prometido Ele mesmo vir pastorear o Seu rebanho: “Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Os Meus pastores não se preocupam com o Meu rebanho! Eu mesmo cuidarei do Meu rebanho e o procurarei. Eu mesmo apascentarei o Meu rebanho, Eu mesmo lhe darei repouso. Buscarei a ovelha que estiver perdida, reconduzirei a que estiver desgarrada, pensarei a que estiver fraturada e restaurarei a que estiver abatida” (cf. Ez 34). Pois bem! Agora, o Senhor Jesus – e pensemos Nele ressuscitado, trazendo as marcas gloriosas da paixão – declara solenemente: “Eu sou o Bom Pastor!” Ele é o próprio Deus, que vem apascentar pessoalmente o Seu Povo, o novo Israel, a Igreja!

Mas, sigamos a Palavra que hoje nos é anunciada. São Pedro e a Igreja proclamam com convicção: “Que todo o povo de Israel reconheça com plena certeza; Deus constituiu Senhor e Cristo a este Jesus que vós crucificastes”. Mas, quem é Este, constituído Senhor? Por que foi crucificado? A resposta está na segunda leitura, nas palavras do próprio São Pedro: “Cristo sofreu por vós. Ele não cometeu pecado algum, mentira nenhuma foi encontrada em Sua boca. Quando injuriado, não retribuía as injúrias; atormentado, não ameaçava... Sobre a Cruz, carregou nossos pecados em Seu próprio corpo, a fim de que, mortos para os pecados, vivamos para a justiça. Por Suas feridas fostes curados. Andáveis como ovelhas desgarradas, mas agora voltastes para o Pastor e Guarda de vossas vidas!” Eis o nosso Bom Pastor, Aquele que deu a vida pelas ovelhas e quis morrer para que o rebanho tivesse Vida!

Diante de um amor assim, de uma doação dessas, de um compromisso tão grande conosco, somente podemos fazer a pergunta que os ouvintes de Pedro fizeram: “Que devemos fazer?” E a resposta continua a mesma: “Convertei-vos e cada um de vós seja batizado, isto é, mergulhado, no Nome de Jesus Cristo! Salvai-vos dessa gente corrompida!”

Caríssimos, somos cristãos, somos ovelhas do rebanho do Bom Pastor! Ele é tudo: é o Pastor e é também a Porta do redil: somente encontra a Vida verdadeira quem entrar por Ele. Há tantos falsos pastores no mundo atual, tantos sábios a seus próprios olhos, tantos que, nos meios de comunicação e nas redes sociais determinam o que é certo e o que é errado, o que é verdade e o que é mentira. Pastores falsos, que vêm “para roubar, matar e destruir”. Nós somos cristãos; nosso Pastor é o Cristo, Aquele que por nós deu a vida, Aquele que diz: “Eu vim para que tenham a Vida e a tenham em abundância!” Atenção, que aqui, não se trata de uma vida qualquer, mas da Vida eterna, da Vida divina, da Vida que sacia o coração! Somente Jesus, o nosso Cristo, o nosso Bom Pastor, no-la pode dar pela Sua Morte e Ressureição e pelo dom do Seu Espírito! Nunca nos esqueçamos disto, nunca nos deixemos enganar! Nunca nos contentemos com menos que isto! É grande demais o que o Senhor nos conquistou e nos concede!

Mas, atenção, que seremos ovelhas desse Pastor se escutarmos Sua voz e atendermos ao Seu chamado. Seguindo-O, encontraremos pastagens para a nossa vida. Atenção ainda aqui: não poderemos segui-Lo sem a conversão do nosso coração, sem nos deixarmos a nós mesmos, sem rompermos com aquilo que, no mundo, é modo de pensar e viver contrário ao Evangelho. Supliquemos, pois, ao Bom Pastor, o estado de espírito da ovelha confiante do salmo da Missa de hoje: “O Senhor é o pastor que me conduz, não me falta coisa alguma. Ele me guia no caminho mais seguro. Mesmo que eu passe pelo vale tenebroso, nenhum mal eu temerei...”

Hoje também é Jornada de Oração pelas vocações sacerdotais e religiosas. Peçamos ao Senhor que nos envie santos e sábios sacerdotes, cheios daquele amor que o Senhor Jesus tem pelo Seu rebanho. Não nos iludamos: o único modo que o Senhor nos indicou para termos os pastores de que necessitamos é a oração: “Pedi ao Senhor da colheita que envie operários para a Sua messe”. Rezemos, portanto, e nos empenhemos também, tanto material como espiritualmente, pela formação de nossos seminaristas! E que o Cristo nosso Deus, Senhor da messe e Pastor do rebanho, nos conduza a todos, pastores e ovelhas à Vida plena que somente Ele nos pode conceder. Amém.


sábado, 25 de abril de 2020

Homilia para o III Domingo da Páscoa - ano a

At 2,14.22-33
Sl 15
1Pd 1,17-21
Lc 24,13-35

No Tempo Pascal a Igreja vive, celebra e testemunha sua certeza, aquela convicção que a faz existir e sem a qual ela não teria sentido neste mundo: “Jesus de Nazaré foi um homem aprovado por Deus pelos milagres, prodígios e sinais que Deus realizou por meio Dele entre vós. Deus, em Seu desígnio e previsão, determinou que Jesus fosse entregue nas mãos dos ímpios e vós O matastes pregando numa cruz... Deus ressuscitou este mesmo Jesus e disto todos nós somos testemunhas. Exaltado pela Direita de Deus, Jesus recebeu o Espírito Santo prometido e O derramou...” Este é o núcleo da nossa fé cristã, o fundamento da nossa esperança pascal, a inspiração para a nossa vida e nossa ação, isto é, para nossas atitudes concretas, nossa vida moral.

Na Liturgia da Palavra deste Domingo, o encontro de Emaús sintetiza muito bem a experiência cristã. Prestemos atenção, porque é de nós que fala o Evangelho de hoje! O que há aí?

Há, primeiramente o caminho – aquele da vida: nele, os discípulos conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido com o. Cristo Jesus. Mas, os acontecimentos, lidos somente à nossa luz, segundo a nossa razão e os nossos critérios, são opacos, são tantas e tantas vezes, sem sentido... Por isso, no coração e no rosto daqueles dois havia tristeza e escuro; eles estavam cegos e tristes... Dominava-os o desânimo e a incerteza: esperaram tanto e, agora, só restava um túmulo vazio... É isto o homem na sua própria medida, são estas as parcas esperanças, quando contamos simplesmente com nossas possibilidades!
Mas, à luz do Ressuscitado – quando o experimentamos vivo entre nós – tudo muda, absolutamente. Primeiro o coração arde no nosso peito. Arde com a alegria e o calor de quem vê um sentido – e um sentido de amor e de vida – para os acontecimentos da existência, mesmo os mais sombrios: “Não era necessário que o Cristo sofresse tudo isso para entrar na Glória?” Que palavras impressionantes! São do mesmo sentido dos Atos dos Apóstolos, na primeira leitura: “Deus em Seu desígnio e previsão, determinou que Jesus fosse entregue...” Aqui, compreendamos bem: só na fé se pode penetrar o mistério e ultrapassar o absurdo! Então, com o Senhor ressuscitado, na Sua luz, os olhos nossos se abrem e reconhecemos Jesus, experimentamo-Lo vivo, próximo, como Senhor, que dá orientação, sustento e sentido à nossa vida! Sentimos, então, a necessidade de conviver e compartilhar com outros que fizeram a mesma experiência, todos reunidos em torno daqueles que o Senhor constituiu como primeiras testemunhas Suas – os Apóstolos e seus sucessores, os Bispos. É assim que somos cristãos; é assim que somos Igreja!

Esta é, portanto, a certeza dos cristãos, a nossa certeza! Hoje somos nós as testemunhas! Hoje somos nós quem devemos pedir: “Mane nobiscum, Domine!” – “Fica conosco, Senhor!”
Somente seremos cristãos de verdade se ficarmos com o Senhor que permenece conosco, se O encontrarmos sempre na Palavra e no Pão eucarístico. Nunca esqueçamos: os discípulos sentiram o coração arder ao escutá-Lo na Escritura e O reconheceram ao partir o Pão! Esta é a experiência dos cristãos de todos os tempos. Poderiam ser recordadas aqui as palavras de São João Paulo II, na sua Carta Apostólica Mane Nobiscum Domine afirmando a necessidade absoluta de Cristo, a necessidade de voltar sempre a Ele: “Cristo está no centro não só da história da Igreja, mas também da história da humanidade. Tudo é recapitulado Nele. Cristo é o fim da história humana, o ponto para onde tendem os desejos da história e da civilização, o centro do gênero humano, a alegria de todos os corações e a plenitude de suas aspirações. Nele, Verbo feito carne, revelou-se realmente não só o mistério de Deus, mas também o próprio mistério do homem. Nele, o homem encontra a redenção e a plenitude!” (n. 6).

O mundo atual – e o mundo de sempre – deseja apontar outros caminhos de realização para o homem; outras possibilidades de vida... Os cristãos não deveriam se iludir! Sabemos onde está a nossa Vida, sabemos onde encontrar o caminho e a verdade de nossa existência: em Cristo sempre presente na Palavra e na Eucaristia experimentadas na vida da Igreja! Repito: este é o centro da experiência cristã; e, precisamente daqui, brotam as exigências de coerência de nossa vida: “Fostes resgatados da vida fútil herdade de vossos pais, não por meio de coisas perecíveis, como a prata e o ouro, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de um Cordeiro sem mancha e sem defeito. Antes da criação do mundo Ele foi destinado para isso, e neste final dos tempos, Ele apareceu por amor de vós!”
Eis, que mistério! O Autor sagrado afirma que, antes do início do mundo, o Pai nos tinha preparado este Cordeiro imolado, para que Nele encontrássemos a vida e a paz! Por Ele alcançamos a fé em Deus; por Ele, nossa vida ganhou um novo sentido; por Ele, não mais pensamos, vivemos e agimos como o mundo das trevas! E porque Deus O ressuscitou dos mortos e Lhe deu a Glória, a nossa fé e a nossa esperança estão em Deus, estão firmadas na Rocha! “Vivei, pois, respeitando a Deus durante o tempo da vossa migração neste mundo!” Vivamos para Deus e manifestemos isso pelo nosso modo de pensar, falar, agir e viver!

Irmãos! Irmãs! Não tenhais medo de colocar em Cristo toda a vossa vida e toda a vossa esperança! É Ele quem nos fala agora, na Palavra, e agora mesmo, para que nossos olhos se abram e o reconheçamos, Ele mesmo, na Eucaristia, nos partirá o Pão. A Ele a glória pelos séculos! Amém.


sexta-feira, 24 de abril de 2020

Tu me amaste primeiro; Tu me salvaste! Socorre-me!

Do Livro de Orações, de São Gregório de Narek (séc. X-XI), monge, místico e poeta armênio:

Houve um tempo em que eu não estava presente, e Tu me criaste.
Eu não tinha orado, e Tu, Tu me fizeste.
Eu não tinha ainda vindo à luz e, no entanto, viste-me.
Eu não tinha aparecido e, no entanto, tiveste piedade de mim.
Eu não Te tinha invocado e, no entanto, tomaste-me ao Teu cuidado.
Eu não Te tinha feito qualquer sinal e, no entanto, olhaste para mim.
Eu não Te tinha dirigido qualquer súplica e, no entanto, tiveste misericórdia para comigo.
Eu não tinha articulado o mínimo som e, no entanto, ouviste-me.
Eu não tinha sequer suspirado e, no entanto, a tudo estiveste atento.

Sabedor do que ia acontecer-me neste tempo presente,
não me votaste ao desprezo.
Considerando, com Teus previdentes olhos,
os erros deste pecador que eu sou,
vieste, contudo, a modelar-me.
Sou, agora, este ser que Tu criaste,
que salvaste,
que foi alvo de tanta solicitude!
Que a ferida do pecado, suscitada pelo Acusador,
não me perca para sempre!

Presa, paralisada,
curvada como a mulher que sofria,
a minha alma infeliz, impotente, não consegue reerguer-se.
Sob o peso do pecado, ela fixa-se à terra,
com as pesadas cadeias de Satã.
Inclina-Te, ó único Misericordioso, sobre mim,
esta pobre árvore que caiu.
A mim, que estou seco, faz-me reflorir
em beleza e esplendor,
segundo as palavras divinas do santo profeta (Ez 17,22-24).
Tu, Protetor único,
digna-Te lançar sobre mim um olhar
vindo da solicitude do Teu indizível amor
e do nada criarás em mim a própria luz (cf. Gn 1,3).


quarta-feira, 22 de abril de 2020

Nascer do Alto

No Evangelho, capítulo III de João, que a liturgia nos está fazendo ouvir nestes dias pascais, continua o diálogo de Jesus com Nicodemos. “Vós deveis nascer do Alto” – nascer de Deus por obra do Espírito Santo que Cristo dará no símbolo, no instrumento da água. O Senhor compara, então, ao vento, aquele que nasceu do Espírito e se deixa guiar por Ele: é livre, forte, impetuoso, mas, sobretudo misterioso, no sentido em que vive segundo a lógica e a força de Deus. Como diz a Escritura, “o homem espiritual julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado” (1Cor 2,15).Estas pessoas são sempre um santo perigo, um santo desafio na vida da Igreja, graças a Deus!

Mas, como isto pode acontecer? Jesus, nosso Senhor, diz uma frase misteriosa: “Nós falamos daquilo que sabemos e damos testemunho daquilo que temos visto, mas vós não aceitais o nosso testemunho”. É bom recordar que no modo de escrever do Evangelho de São João, o Autor sagrado apresenta Jesus falando ora na Sua vida terrena, ora já como ressuscitado e Senhor da Igreja. João é um teólogo alto, profundo: no seu Evangelho, Ele vê já na humildade da carne de Jesus, o Cristo glorioso, Senhor da Sua Igreja!
Agora, nestes versículos, é Jesus Senhor falando em nome de todos os cristãos, membros do Seu Corpo, que é a Igreja: sabemos do que falamos porque vivemos já a experiência do Espírito do Ressuscitado, mas os judeus não conseguem aceitar esse testemunho pois, sem crer e sem receber o Batismo, não podem experimentar o Espírito. Ninguém experimenta o Espírito sem o Batismo e a Eucaristia, sem uma vida de constante união com Cristo!
Os judeus nem mesmo conseguem acreditar quando Jesus e os cristãos falaram e falam sobre a água e o Espírito – realidades já tão presentes nos profetas de Israel... Como irão compreender quando Jesus faz a revelação mais surpreendente: que é necessário que o Messias seja levantado na Cruz, como Moisés levantou a serpente no deserto? Como compreender que Ele, levantado na Cruz, faria jorrar continuamente para a Igreja, a água do Batismo e o Sangue da Eucaristia, que dão ao homem a graça de nascer do Alto? (cf. Jo 19,34; 1Jo 5,6-8) Eis a coisa do Céu, da qual Jesus falará: o Filho do Homem deverá ser levantado na Cruz para poder dar o Espírito. Assim, quem Nele crê, terá a Vida eterna...

Contemplar o Messias crucificado, que entrega o Espírito continuamente na água do Batismo e no sangue da Eucaristia e viver em comunhão com Ele – eis a Vida eterna, eis o nascimento para o Reino, eis o que é nascer do Alto! Isto a Palavra anuncia pela pregação e o rito realiza pelo Sacramento! O Senhor fala e faz, promete e cumpre!


terça-feira, 21 de abril de 2020

Nascer da água e do Espírito

Nos dias da Oitava da Páscoa ouvimos na Missa diária os evangelhos que narram as aparições do Ressuscitado aos seus discípulos.
Agora, nesta segunda semana, ouviremos o capítulo terceiro de São João. E por quê? Porque a tradição da Igreja vê aí, no diálogo de Jesus com Nicodemos, uma catequese sobre o Batismo. Batismo e Eucaristia, os sacramentos pascais, simbolizados na água e no sangue que brotaram do lado do Crucificado logo depois que Ele entregou o Espírito.
Como afirma a Primeira Carta de São João: três são os que dão testemunho de Jesus: o Espírito, a água e o sangue. Em outras palavras: no Batismo e na Eucaristia recebemos o Espírito Santo que nos testemunha o Cristo morto e ressuscitado como Senhor vivente e nos dá a Sua própria Vida divina recebida do Pai no evento mesmo da Ressurreição: “Morto na carne, foi vivificado no Espírito” (1Pd 3,18).

Na perícope de João 3, Nicodemos vem de noite à procura de Jesus. É um chefe judeu versado na Torá. Vem de noite à procura da Luz... Ele reconhece que Jesus vem de Deus, acredita nos sinais que o Senhor realiza, mas ainda não sabe, não crê que Jesus é o Filho de Deus... Como judeu, ainda está na noite! Aqui, não há remédio: um filho de Israel, por bom que seja, por bem intencionado que se mostre, somente alcança a luz quando crê em Jesus como o Messias enviado pelo Pai. Até lá, está na noite!

Ora, para que que se veja a Luz é necessário nascer de Alto, nascer de Deus, recebendo uma Vida divina, ressuscitada, e somente Jesus Cristo pode realizar isto, dando-lhe o Seu Espírito. Nicodemos confunde “nascer do Alto”, isto é, nascer de Deus, receber a Vida divina, do Eterno, com “nascer de novo” (em grego ánothen significa as duas coisas). Jesus, no entanto, refere-Se ao Batismo, no qual se nasce para a Vida que vem de Deus, Vida dada pelo próprio Jesus morto e ressuscitado: nascer da água e do Espírito significa nascer pela água que é instrumento do Espírito, isto é, que é símbolo eficaz da potente ação do Espírito. O que nasce da carne, da pura natureza humana, é somente carne e não tem como chegar à Vida de Deus. É preciso receber essa Vida divina pela água que doa o Espírito no Batismo.

Aqui, a inteligência humana desfalece. A ação do Espírito de Deus é como o vento: vemos os seus efeitos, mas não sabemos de onde vem nem para onde vai, pois Deus é Mistério, Deus é liberdade em toda a Sua obra. Ao homem cabe acolhê-Lo com amor e adoração. Aquele que recebe o Espírito e se deixa por Ele conduzir, torna-se livre, como o vento, é uma nova criatura, tem uma nova compreensão e, finalmente, experimenta que Jesus, nosso Senhor, realmente veio de Deus não como um simples profeta realizador de sinais, mas como o próprio Filho, divino como o Pai.

É esta a experiência dos que foram batizados na Páscoa; é esta a nossa experiência: experimentar que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, Vivo e Vivificante, pleno do Espírito, Senhor que dá a Vida! Tal experiência é fruto da presença do Espírito de Cristo que recebemos nas águas batismais! Eis! Como os antigos hebreus atravessaram o Mar Vermelho, como Jesus atravessou o Mar da Morte, nós, atravessamos as águas batismais, deixando o Egito da velha vida para entrar na Terra Prometida que é a comunhão com o Pai através do Seu Filho Jesus Cristo, pois recebemos o Seu Espírito Santo!