segunda-feira, 18 de maio de 2020

Admiráveis mistérios!

Dos Tratados de São Gaudêncio, Bispo de Bréscia (séc. V):

O sacrifício celeste instituído por Cristo é verdadeiramente um dom do Novo Testamento concedido como herança; é o dom que ele nos deixou como garantia da Sua presença, na noite em que foi entregue para ser crucificado.

Observação minha: Durante todo o tempo da Páscoa, a liturgia insiste no novo modo de presença de Cristo na Sua Igreja, entre os Seus: trata-se de uma presença no Espírito Santo, já que “morto na carne” (1Pd 3,18), isto é, na existência humana, “foi vivificado no Espírito” (1Pd 3,18), isto é, recebeu Vida nova, divina, no Espírito, e agora, é na potência do Seu Espírito que Ele tem em plenitude desde a Ressurreição, e Se faz presente aos Seus. Ora, é fundamental compreender que a ação do Espírito opera maximamente na liturgia, nas celebrações dos santos sacramentos, sobretudo no Sacramento por excelência, que é a Eucaristia! Então, presença de Cristo, ação do Espírito e vida litúrgica-sacramental são aspectos diversos e complementares de uma mesma realidade, que não pode ser compreendida senão articulando estas três vertentes.

Este é o Viático da nossa peregrinação. É o alimento que nos sustenta nos caminhos desta vida até o dia em que, partindo deste mundo, formos ao encontro do Senhor. Pois Ele mesmo disse: “Se não comerdes a Minha carne e não beberdes o Meu sangue, não tereis a Vida em vós” (cf. Jo 6,53).

Observação minha: A Eucaristia é tudo isto – presença real, viático, sustento, penhor de Vida eterna – precisamente porque nos dá o Cordeiro imolado e ressuscitado (cf. Ap 5,6), pleno do Espírito Santo. Quando Jesus, nosso Senhor, diz que comendo Seu Corpo e bebendo Seu Sangue temos – já no presente! – a Vida em nós, refere-Se ao Espírito que Ele dá sem medida, Espírito que é “Senhor que dá a Vida” eterna.

Ele quis efetivamente com Seus dons permanecer junto de nós; quis que as almas, remidas com o Seu Sangue precioso, se santificassem continuamente pelo memorial de Sua Paixão. Por esse motivo, ordenou aos Seus discípulos fiéis, constituídos como primeiros sacerdotes de Sua Igreja, que sem cessar celebrassem estes mistérios da Vida eterna.

Observação minha: Atenção ao termo “memorial”, muito mais forte e correto que simplesmente “memória”. “Memória” pode dar uma ideia subjetiva: algo que somente está presente porque nós o tornamos presente com nossa recordação e desejo; “memorial” não: traduz o hebraico “zikaron”, ou seja, um acontecimento realmente tornado presente e atuante nos ritos que o celebram. Ora, quem torna realmente presente, atual, atuante o sacrifício do Senhor na Eucaristia? O Espírito Santo, invocado antes da consagração! Sem o Espírito do Imolado-Ressuscitado não há Igreja, não há sacramento, não há presença real, não há Vida eterna para nós e em nós, pois a Vida eterna é o próprio Espírito do Eterno, derramado pelo Pai sobre o homem Jesus para ressuscitá-Lo dos mortos.

É necessário, portanto, que estes sacramentos sejam celebrados por todos os sacerdotes em cada Igreja do mundo inteiro, até que Cristo desça novamente dos Céus. Deste modo, tanto os sacerdotes como todo o povo fiel, tendo diariamente ante os olhos o sacramento da Paixão de Cristo, tomando-o nas suas mãos e recebendo-o na boca e no coração, guardem indelével a memória de nossa redenção.

Observação minha: Aqui há algumas importantes considerações a serem feita:
[1] Note-se como São Gaudêncio – e o consenso dos Padres da Igreja – não hesita em chamar os ministros do Novo Testamento de “sacerdotes”. Não devemos ter medo de usar esta linguagem cultual! Os Bispos e presbíteros são realmente os sacerdotes da Nova Aliança, a serviço do Povo sacerdotal, conquistado por Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote que, pelos sacramentos, nos uniu a Ele, nos incorporou Nele, na Sua vida ressuscitada e no Seu ofício sacerdotal!
[2] Veja-se também como o modo de celebrar do sacerdote não é o mesmo do Povo sacerdotal. Por isso o Autor diz que os sacramentos são celebrados pelos sacerdotes em cada Igreja... É o Povo sacerdotal quem celebra os santos mistérios, mas o faz com e pelo sacerdote ordenado. Por isso mesmo o convite ritual do celebrante em cada Missa: “Orai, irmãos, para que o meu e o vosso sacrifício seja aceito por Deus Pai todo-poderoso”. A tradução brasileira trai e empobrece o texto original latino, regra do dizer litúrgico! Não se deveria dizer “o nosso sacrifício”, escondendo a especificidade do ministério sacerdotal; como não se deveria dizer “que ela cresça na caridade... com todos os ministros do vosso povo”, incluindo aí ministros ordenados e não ordenados de todo tipo, mas fiel ao latim e à tradição litúrgica, dever-se-ia dizer “que ela cresça na caridade... com todo clero (universo clero).
[3] Aqui aparece o sentido de memória também naquele sentido mais subjetivo de que falei acima: celebrando o memorial, guardamos e alimentamos em nós a devota e afetuosa memória da Paixão do nosso santíssimo Salvador, cumprindo assim na nossa vida o preceito do Apóstolo: “Tende em vós os mesmos sentimentos do Cristo Jesus” (Fl 2,5).

Com razão se considera o pão como uma imagem inteligível do Corpo de Cristo. De fato, assim como para fazer o pão é necessário reunir muitos grãos de trigo, transformá-los em farinha, amassar a farinha com água e cozê-la ao fogo, assim também o Corpo de Cristo reúne a multidão de todo o gênero humano e o leva à perfeita unidade de um só corpo por meio do fogo do Espírito Santo.

Observação minha: Eis aqui um texto comovente! As espécies eucarísticas não são uma presença estática, gélida, congelada de Jesus Cristo! Não! Ali está Jesus, nosso Salvador, amando, Jesus salvando, Jesus edificando a Sua Igreja na potência do Seu Espírito, fazendo-a semelhante a Si mesmo, nosso Salvador, provocando nos fieis a união com Ele no vínculo do Espírito e, assim, gerando o amor, a unidade, o serviço aos irmãos, sobretudo aos pobres... Por isso, o nosso Autor pode fazer do pão eucarístico uma parábola, cuja semente já aparece em São Paulo (cf. 1Cor 10,16-17): nós somos Igreja-corpo de Cristo porque como o Pão eucarístico, fomos feitos farinha na água do Batismo e cozidos no fogo do Santo Espírito, dado no Batismo como Vida e na Crisma como força! Assim, que comungamos o que somos – Corpo de Cristo – e comungando, nos tornamos mais e mais aquilo que recebemos!

Cristo nasceu pelo poder do Espírito Santo. E porque convinha que Nele se cumprisse toda a justiça, penetrou nas águas do batismo para santificá-las, e saiu do rio Jordão cheio do Espírito Santo que tinha descido sobre Ele em forma de pomba. O evangelista dá testemunho disso dizendo: “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão” (Lc 4,1).

Observação minha: O Autor aqui não desenvolve a ideia, mas é necessário recordar que esse batismo de Jesus é apenas imagem e prefiguração do nosso Batismo, quando o nosso Senhor, cheio do Espírito de Ressurreição, derramou sobre nós o Espírito, simbolizado pela água batismal [cf. Jo 7,37]).

Do mesmo modo, o vinho do Seu Sangue, proveniente de muitos cachos, quer dizer, feito das uvas da videira por Ele plantada, espremido no lagar da Cruz, fermenta por si mesmo em amplos recipientes que são os corações dos fieis. Todos vós, pois, que fostes libertados do Egito e do poder do Faraó, isto é, do demônio, recebei com santa avidez de coração junto conosco, este Sacrifício pascal portador de salvação. E assim, sejamos santificados até o mais íntimo de nosso ser por Jesus Cristo nosso Senhor, que cremos estar presente em seus sacramentos. Seu poder inestimável permanece por todos os séculos.

Observação minha: Só para arrematar:
[1] Note como a imagem do lagar onde se espreme a uva nos recorda que comungar no Corpo e Sangue do Senhor imolado exige que participemos com a vida concreta na Sua Paixão;
[2] Veja como o Autor fala em receber o Sacrifício... É que comungando a Vítima pascal, imolada e ressuscitada, entramos em comunhão real-sacramental com Cristo na Sua imolação, para fazer da vida uma oferta sacrifical ao Pai no Espírito (cf. Rm 12,1s).


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