Caro Irmão, na Solenidade de São Pedro e São Paulo, partilho com você este comentário que fiz à leitura proposta no Ofício de Leituras para a festa que celebramos. Trata-se de um texto de rico conteúdo teológico. Ei-los, o texto e os comentários.
Dos Sermões de Santo Agostinho, Bispo (séc. V)
(Sermo 295,1-2.4.7-8:PL38,1348-1352)
O martírio dos santos apóstolos Pedro e Paulo consagrou para nós este dia. Não falamos de mártires desconhecidos. “Sua voz ressoa e se espalha em toda a terra, chega aos confins do mundo a sua palavra” (Sl 18,5). Estes mártires viram o que pregaram, seguiram a justiça, proclamaram a verdade, morreram pela verdade.
Observação minha:
Logo neste parágrafo aparecem claramente três motivos para uma celebração especial dos santos Apóstolos Pedro e Paulo. Primeiro, pelo que eles foram na Igreja apostólica: insignes pregadores do Evangelho do Cristo Jesus. Se todos os Apóstolos foram anunciadores do Senhor imolado e ressuscitado, Pedro e Paulo destacaram-se e tiveram um papel de primeira grandeza na pregação, na ação missionária e na constituição da vida eclesial. O segundo motivo é comum a toda a geração apostólica: “viram o que pregaram”, ou seja, foram testemunhas de primeira ordem: não foram propagadores de mitos e crendices, mas testemunhas de um maravilhoso evento e, por último, mas não menos importante, comprovaram o testemunho que deram com os lábios com a vida e com a morte: “morreram pela Verdade”, que é Cristo!
São Pedro, o primeiro dos Apóstolos, que amava Cristo ardentemente, mereceu escutar: “Por isso Eu te digo que tu és Pedro” (Mt 16,19). Antes, ele havia dito: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16). E Cristo retorquiu: “Por isso Eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra construirei Minha Igreja” (Mt 16,18). Sobre esta pedra construirei a fé que haverás de proclamar. Sobre a afirmação que fizeste: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo, construirei a Minha Igreja. Porque tu és Pedro. Pedro vem de Pedra; não é pedra que vem de Pedro. Pedro vem de Pedra, como cristão vem de Cristo.
Observação minha:
Parágrafo muito importante para a reta compreensão do ministério petrino, tal qual a constante Tradição da Igreja antiga o compreendeu. Observe bem a dinâmica do parágrafo: Onde começa a autoridade de Pedro? Donde promana? Onde encontra sua raiz e fecundidade? No amor: “Primeiro dos Apóstolos, que amava Cristo ardentemente, mereceu escutar: Tu és Pedro”. Não deveríamos nunca pensar o ministério petrino primeiro nos parâmetros do direito canônico, da lei, das normas e do poder. Não são estas as coordenadas principais. Isto aparece muito claro no Evangelho de São João, recordado mais abaixo por Santo Agostinho. Calcar o ministério petrino simplesmente na lógica do poder e da jurisdição é empobrecê-lo e, até certo ponto, deturpá-lo.
Depois, observe a ligação e dependência da autoridade recebida por Pedro em relação à profissão de fé que ele faz: é porque ele professou “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”, que escutou “Eu te digo que tu és Pedro!” Em outras palavras: Pedro não é Pedro como pessoa isolada, automaticamente, desvinculado da Igreja inteira e da sua profissão de fé essencial! Pedro é Pedro porque confessa a fé da Igreja e enquanto confessa a fé da Igreja! Por isso mesmo, segundo vários bons teólogos, um papa que caísse pessoalmente em heresia, ensinando o que a Igreja nunca ensinou ou claramente rejeitou na sua profissão de fé, já não poderia ser Sucessor de Pedro! Agostinho deixa bem claro o vínculo entre o ser Pedro e a profissão de fé da Igreja, toda sintetizada firmemente no “Tu és o Cristo, o Filho do Deu vivo”, quando afirma, no parágrafo acima: “Sobre esta pedra construirei a fé que haverás de proclamar. Sobre a afirmação que fizeste: ‘Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo, construirei a Minha Igreja’”. Observe-se com todo cuidado como os dois aspectos são inseparáveis: Pedro é pedra para proclamar a reta fé, não para dizer o que bem quiser ou fazer o que bem compreender! O ministério petrino somente pode ser retamente exercido em função “da fé que haverás de proclamar”. Trata-se, pois, de um ministério importantíssimo na Igreja, em vista da proclamação da verdadeira fé, que tem como núcleo duro e inamovível o “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!”, com todas as suas implicações e desenvolvimentos posteriores.
Por isso, o santo Bispo de Hipona prossegue com estilo e acuidade teológica: “Porque tu és Pedro. Pedro vem de Pedra; não é pedra que vem de Pedro. Pedro vem de Pedra, como cristão vem de Cristo”. À primeira vista, parece tratar-se de um mero jogo de palavras. Mas, não é assim! Pedro vem de Pedra! A Pedra, aqui é Cristo, professado nas palavras de Pedro! Pedro é pedra porque professa a verdadeira fé em Cristo, a reta fé! Não é Pedro quem faz a fé ser verdadeira, mas é a proclamação da reta fé que torna Simão verdadeiramente Pedro! Observe a ordem das coisas: Pedro vem de Pedra como cristão vem de Cristo: como ninguém é cristão se não nascer de Cristo no Batismo e professar a reta fé Nele, Simão não pode ser Pedro se não estiver alicerçado na verdadeira Pedra, que é o Cristo professado nas palavras “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!” E Agostinho insiste: não é a Pedra que vem de Pedro; é Pedro que vem de Pedra; não é Pedro que torna a verdade verdadeira, é a verdade católica que faz Simão tornar-se Pedro!
São estas afirmações muito importantes, porque muitas vezes se pensa no Sucessor de Pedro como um personagem isolado, quase acima da Igreja. Esta nunca foi a visão dos Santos Padres nem dos grandes Doutores da Igreja antiga. O ministério petrino dá-se na Igreja, com a Igreja e para a Igreja, nunca sem ela, acima dela ou fora dela! Veremos isto ainda neste texto, no parágrafo seguinte...
Como sabeis, o Senhor Jesus, antes de Sua Paixão, escolheu alguns discípulos, aos quais deu o nome de Apóstolos. Dentre estes, somente Pedro mereceu representar em toda parte a personalidade da Igreja inteira. Porque sozinho representava a Igreja inteira, mereceu ouvir estas palavras: “Eu te darei as chaves do Reino dos Céus “(Mt 16,19). Na verdade, quem recebeu estas chaves não foi um único homem, mas a Igreja una. Assim manifesta-se a superioridade de Pedro, que representava a universalidade e a unidade da Igreja, quando lhe foi dito: “Eu te darei”. A ele era atribuído pessoalmente o que a todos foi dado. Com efeito, para que saibais que a Igreja recebeu as chaves do Reino dos Céus, ouvi o que, em outra passagem, o Senhor diz a todos os Seus Apóstolos: “Recebei o Espírito Santo”. E em seguida: “A quem perdoardes os pecados, eles serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos” (Jo 20,22-23).
Observação minha:
Perfeito e coerente o raciocínio de Santo Agostinho: aqui se trata da relação Pedro-Apóstolos-Igreja. A Igreja é indivisivelmente una, é o Corpo vivente do Senhor, que é continuamente vivificada e guiada no Espírito Santo, do qual é Templo santo. Ela não é primeiramente uma realidade jurídica, deste mundo: ela é Mistério, "Povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo", como afirmava São Cipriano de Cartago, no século III, "é o Corpo dos Três", isto é visibilização da Trindade Santa neste mundo, como afirmava Tertuliano, quando ainda era católico. Assim, a Igreja do Cristo nosso Senhor será sempre um mistério de unidade e diversidade, de unidade indivisível e diversidade indestrutível, como a própria Trindade Una e Consubstancial: uma Triunidade! O modelo de organização da Igreja não são os modelos humanos, mas a própria vida Triúna do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Isto aparece com certa frequência nas Epístolas paulinas, quando o Apóstolo apresenta a comunidade cristã inserida nas divinas Pessoas! Concretamente, jamais se poderia pensar a Igreja como uma monarquia no sentido humano, como oligarquia, democracia, ou qualquer outra forma humana de organização social! A Igreja é comunhão à luz da Trindade Santa!
Pois bem, toda a comunidade eclesial se estrutura no um e nos vários: Pedro e os Apóstolos, o Bispo de Roma e os Bispos nas suas Igreja locais como Colégio Episcopal, o Bispo e seus presbíteros e diáconos, os presbíteros e as várias manifestações da vida eclesial nas suas comunidades paroquiais. Nem os muitos sufocam o um nem o um elimina a comunhão e diversidade dos muitos!
Dito isto, observe-se que Santo Agostinho explica que quem recebeu o poder das chaves foi a Igreja inteira. E aqui convém insistir e alargar: quem recebeu a infalibilidade foi a Igreja: é ela quem pode perdoar ou reter os pecados, é ela quem não pode errar na sua profissão de fé! Vale a pena comparar o capítulo 16 de Mateus, quando Cristo dá a Pedro o poder de ligar e desligar, com o capítulo 18, quando Ele o entrega à Igreja inteira, sintetizada nos Doze! O poder é dado a Pedro de modo específico não para se esgotar em Pedro e se resumir a Pedro, mas para que seja garantida a unidade do Corpo. Aquilo que é dado a todos de igual modo é dado a um de um modo especial para que a unidade não destrua a diversidade e a diversidade não desvirtue e macule a unidade. Este pensamento precioso não somente aparece em Agostinho, mas também em vários outros Padres da Igreja, como São Cipriano, por exemplo.
É muito importante para nós, de mentalidade latina, afeitos ao visível, ao prático, ao organizacional, ao estipulado legalmente, que para os Santos Padres, as realidades eclesiais pertencem primordialmente à ordem do Mistério, que somente pode ser acolhido e vivenciado na fé. Toda vez que o ministério petrino foi compreendido simplesmente no marco canônico segundo os modelos do mundo, esse ministério tão importante na Igreja foi deformado de algum modo, tornando real o belo e trágico Mt 16. Note que a perícope toda adverte: quando Pedro pensa não como a carne e o sangue, mas como o Pai que está nos Céus, ele é pedra da Igreja; quando pensa como os homens, ele se torna, tragicamente, pedra de escândalo! Cristo sabia muito bem do que estava falando!
No mesmo sentido, também depois da Ressurreição, o Senhor entregou a Pedro a responsabilidade de apascentar Suas ovelhas. Não que dentre os outros discípulos só ele merecesse pastorear as ovelhas do Senhor; mas quando Cristo fala a um só, quer, deste modo, insistir na unidade da Igreja. E dirigiu-Se a Pedro, de preferência aos outros, porque, entre os apóstolos, Pedro é o primeiro.
Observação minha:
Temos aqui o mesmo raciocínio do parágrafo anterior: O Senhor dirige-se a Pedro, mas mira a todos. Dirige-se a Pedro porque ele é o primeiro, o primus, que não somente representa a todos, mas também a todos inclui, sem eliminar a multiplicidade do Colégio Apostólico. Basta pensar como Paulo não se sente amedrontado nem eliminado por Pedro, basta recordar as belas palavras de São Gregório Magno ao Patriarca de Alexandria: “A minha honra é a honra dos meus Irmãos!” e, coerente, chamou-se a si próprio “Servo dos Servos de Deus”, precisamente quando o Patriarca de Constantinopla se autoproclamou “Patriarca Ecumênico”... Pedro não estava acima nem fora do Colégio Apostólico, como o Sucessor de Pedro não está acima nem fora do Colégio Episcopal: Pedro era o cabeça, o centro, o polo de unidade do Colégio Apostólico, como o Sucessor de Pedro o é em relação ao Colégio Episcopal.
Não fiques triste, ó apóstolo! Responde uma vez, responde uma segunda, responde uma terceira vez. Vença por três vezes a tua profissão de amor, já que por três vezes o temor venceu a tua presunção. Desliga por três vezes o que por três vezes ligaste. Desliga por amor o que ligaste por temor. E assim, o Senhor confiou suas ovelhas a Pedro, uma, duas e três vezes.
Num só dia celebramos o martírio dos dois apóstolos. Na realidade, os dois eram como um só. Embora tenham sido martirizados em dias diferentes, deram o mesmo testemunho. Pedro foi à frente; Paulo o seguiu. Celebramos o dia festivo consagrado para nós pelo sangue dos apóstolos. Amemos a fé, a vida, os trabalhos, os sofrimentos, os testemunhos e as pregações destes dois apóstolos.
Observação minha:
O belíssimo texto que a Liturgia propõe, termina voltando ao ambiente do amor, como iniciou; afinal, no cristianismo, na Igreja, tudo deve começar no amor e no amor terminar! Aqui, o amor de Pedro é persistente, é crescente, é dinâmico: três vezes é afirmado com insistência, três vezes deve vencer a covardia da negação. E Santo Agostinho, de modo muito belo, afirma que o amor de Pedro, sua profissão de amor a Cristo, desliga primeiro seu próprio pecado, sua covarde negação: “Desliga no amor o que ligaste no temor!” E porque desligou o temor covarde com o amor, o Senhor o confirmou como princípio da unidade pastoral da Sua Igreja!
Depois, mais uma vez, a unidade e a diversidade: referindo-se a Pedro e a Paulo, tão diferentes no temperamento, na sensibilidade, nos caminhos pastorais, o Santo Doutor de Hipona afirma: “Os dois eram como um só!” E ainda, para terminar o mais importante: o amor manifestado na total coerência de vida, na entrega de toda a existência doada a Cristo Senhor, o Messias, o Filho do Deus vivo: “Amemos a fé, a vida, os trabalhos, os sofrimentos, os testemunhos e as pregações destes dois apóstolos”. Sem isto, nenhum ministério pastoral na Igreja é legítimo ou digno do Cristo, Bom e único Pastor do rebanho!
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