sábado, 29 de fevereiro de 2020

Retiro Quaresmal 2020/4 - “Felizes aqueles que se abrigam no Senhor!” (Sl 2,12)

Sábado depois das cinzas
Meditação III: Ver as tribulações na perspectiva da fé

Reze o Salmo 119/118,17-24
Como lectio divina, leia agora Tb 2.

1. Retome os vv. 1-7a. Depois de ser perseguido, perder seus bens e fugir pela fidelidade ao Senhor, Tobit voltara para a sua família; com ela celebrara a festa de Pentecostes: era a festa chamada “das Semanas” (cf. Lv 23,15s): sete semanas após a Páscoa; a festa que celebrava o dom da Lei para Israel, quando o Senhor Deus a entregara a Moisés (cf. Ex 19,1; 24,12) e o final da colheita dos grãos do trigo e da cevada. Assim, era também uma festa de cuidado para com os pobres (cf. Lv 23,22). Observe a solenidade da festa: come-se reclinado sobre almofadas, junto a uma mesa baixinha. Note também o cuidado de Tobit para com os pobres, um dos sentidos espirituais da festa: manda buscar um pobre de coração fiel para participar da sua mesa. Leia Lc 14,12-14. Aqui seria bom perguntar-se sobre a sua generosidade de coração, sobre a sua abertura em relação aos demais, aos necessitados distantes ou próximos... Também para nós, cristãos, as festas litúrgicas como o Natal e a Páscoa, preparada pela Quaresma, devem abrir nosso coração aos mais necessitados...

2. Insisto: é importante recordar que no judaísmo como no cristianismo as festas do Senhor devem ser sempre um apelo à conversão e ao cuidado compassivo para com os pobres das várias pobrezas de cada época e lugar em que nos encontramos. É impossível voltar-se para o Senhor, celebrar Seus santos benefícios e a Sua salvação, sem abrir o coração para os próximos, que estejam ao nosso lado, necessitando de ajuda, atenção e afeto. Entre os cristãos, principalmente o tempo da Quaresma é um período sagrado que impele os fiéis de Cristo à prática da esmola, abrindo o nosso coração para os irmãos: capacidade de ajudar materialmente, visitar os doentes, os solitários, os prisioneiros, os idosos, aprender a escutar os outros, reconciliar-se com alguém de quem estamos afastados – eis algumas das coisas que se podem fazer neste sentido! O essencial é sair de nós mesmos, da nossa comodidade e conforto, da pura e simples abundância dos nossos bens, para ir ao encontro dos que necessitam da nossa mão estendida por amor do Senhor. Reze o Sl 112/111.

3. Que tristeza: Tobit é um exilado, vive em dias tristes para o seu povo: numa nação estrangeira, debaixo da opressão dos gentios, vendo morrer os filhos do Povo de Deus. Tobit chora... Para compreender a alma dos israelitas no exílio, reze, pensando nos seus exílios, o Sl 137/136. Recorde: somos todos estrangeiros neste mundo, pois “enquanto habitamos neste corpo, estamos fora da nossa mansão, longe do Senhor” (2Cor 5,6; cf. Hb 13,14). Também a Igreja, enquanto peregrinar neste mundo, viverá sempre na dispersão, na diáspora, dispersa pelo mundo inteiro, a caminho da Pátria celeste (cf. 1Pd 1,1). Inútil a ilusão de querer ser do mundo, viver nos moldes do mundo e ser pelo mundo aceita e aplaudida. Então: por que temos tanto medo de recordar que aqui estamos de passagem e somente lá, na plenitude do Reino, na Eternidade de Deus, viveremos para sempre? Por que viver na ânsia pelos bens e realizações desta vida, como se nossa existência aqui fosse o definitivo (cf. 1Cor 15,32)?

4. Tobit é um homem de fé: compreende as coisas da existência e lê a realidade à sua volta à luz de Deus. Ele sabe que os israelitas foram deportados porque, com suas infidelidades, se exilaram do Coração de Deus. Por isso recorda as palavras do Profeta Amós. Releia o v. 6. Amós fora um profeta do Reino do Norte, ao qual pertencia a tribo de Neftali, tribo de Tobit. Ele denunciou duramente os pecados de Israel e, em nome do Senhor, ameaçou Israel com a destruição e a deportação assíria. Não se brinca com Deus, não se zomba da Palavra do Senhor. Leia Am 2,6-16. Nunca esqueça: não há misericórdia ou perdão de Deus sem conversão! Leia Am 5,4-7: “Procurai o Senhor e vivereis!” Longe do Senhor, o homem encontra somente a morte, simbolizada pela tristeza da deportação...

5. Releia os vv. 7b-8. A dor de Tobit e a dor dos sofredores do mundo aumenta ainda mais pela indiferença e zombaria dos maus... No mundo, quem desejar viver na vontade do Senhor Deus e nos Seus preceitos será sempre incompreendido e, por vezes, de um modo ou de outro, perseguido... É um grave erro, para um cristão, desejar servir a Cristo estando de bem com o mundo; é uma ingenuidade diabólica procurar do mundo aplausos e elogios: “Se eu quisesse ainda agradar aos homens, não seria servo de Cristo” (Gl 1,10; cf. Tg 4,4-10)

6. Reze o Sl 42-43/41-42: é a oração do fiel ferido com saudade de Deus, experimentando as trevas e sendo zombado pelos ímpios. Sua confiança, no entanto, repousa no Senhor. Reze também o Sl 120/119.


Retiro Quaresmal 2020/3 - “Felizes aqueles que se abrigam no Senhor!” (Sl 2,12)

Sexta-feira depois da cinzas
Meditação II: A fidelidade mesmo nos exílios

Reze o Salmo 119/118,9-16
Como lectio divina, leia outra vez, com piedade e atenção, Tb 1.

1. Observe bem: Tobit encontra-se deportado na Assíria; está longe da pátria, da Terra Santa, da Casa do Senhor... Ele teria tudo para resignar-se e esquecer do seu Deus, teria tudo para levar uma vida religiosa frouxa, no meio dos gentios infiéis; esquecer seus compromissos com o Altíssimo, esquecer sua identidade de membro do Povo da Aliança, esquecer que este Povo, onde estiver é o Povo consagrado ao Senhor... Leia Dt 7,6-11. Mas, não procede deste modo, não deixa de lado o seu Deus e a santa Aliança: permanece fiel, não esquece o Senhor, mesmo nas desventuras da deportação do exílio numa terra estrangeira...
Pense um pouco: quantas vezes encontramo-nos em situação de exílio exterior ou interior: um lugar distante do nosso, uma situação estranha e dolorosa, pessoas e meios que nos são distantes e frios... Também situações como férias, viagens distantes a trabalho... São ocasiões que, de um modo ou de outro, podem nos fazer afrouxar nossa relação com o Senhor e com a prática dos Seus preceitos, podem nos tentar a viver longe da Face do Senhor... Mesmo no exílio exterior e interior, Tobit permaneceu fiel, afervorando o seu coração, sem esquecer-se do Eterno! Mesmo no exílio, Tobit dá aos demais um belo testemunho de fé e fidelidade, de inteireza de coração, de coerência de vida! Nossos atos e atitudes não devem ser moldados por fatores externos ou situações superficiais, mas pelas profundas convicções, vivências e valores interiores. Só assim o homem é realmente coerente, livre e maduro!
E você, exilado num mundo descrente e hostil à fé tantas vezes... Como se comporta, no exílio da social, do ambiente de trabalho e nas demais situações de exílio? Recorde: você é batizado, é membro do Povo Santo de Deus, Povo nascido da nova e eterna Aliança no sangue do Senhor. Leia e medite atentamente 1Pd 2,9-12.

2. Eis algumas das atitudes concretas de Tobit, expressão de piedade para um judeu daquele tempo:

=> sua fé não era simples sentimentos ou proclamação com palavras: ele se desvelava em obras de misericórdia. Sua fé o impelia às obras segundo os preceitos do Senhor em relação ao próximo;
=> ele dava esmolas com generosidade por amor de Deus: dava pão aos famintos, vestia os nus e enterrava os mortos;
=> mesmo depois do cisma que separou as tribos do norte da tribo de Judá, mesmo depois que criaram um culto concorrente ao de Jerusalém e figuraram o Senhor como um bezerro de ouro (cf. 1Rs 12,26-33), Tobit, sem abdicar da sua consciência e da sua reta fé, continuou a ir sozinho a Jerusalém para oferecer seus sacrifícios no Templo santo de Deus, como a Lei de Moisés ordenava;
=> sem ser legalista, Tobit era um fiel cumpridor dos preceitos da fé judaica.

3. Releia o capítulo 1, anotando todas as ações e atitudes retas e contra a corrente dominante que Tobit realizou por fidelidade ao seu Deus! Pense nas modas atuais, recorde o politicamente correto dentro e fora da Igreja, lembre as tentativas de mundanizar a Igreja, tão presentes no coração de muitos... Qual a sua atitude ante estas realidades? O que diz Jesus nosso Senhor? Leia Lc 12,8-9.

4. “Eu me lembrava do meu Deus com toda a minha alma” (v. 12) – que afirmação comovente! Quantas vezes as Escrituras Santas nos exortam a que não esqueçamos o Senhor! Esquecer é como fazer Deus não mais existir concretamente no nosso coração e na nossa vida! Recordar o Senhor constantemente, rememorar os Seus feitos, as Suas maravilhas, a Ele dirigir-se na oração, na invocação, no louvor, é deixá-Lo ser cada vez mais uma santa e atuante Presença na nossa existência. Leia Dt 4,9; 6,12s; 8,11-14; 2Tm 2,8.

5. Nos vv. 15-20, Tobit é perseguido, tem sua vida ameaçada e perde seus bens por cumprir os preceitos do Senhor. Muitas vezes, a fidelidade ao Senhor poderá nos colocar em crise, em situação difícil ou tensa em relação aos demais, em relação ao pensamento dominante à nossa volta... Jesus Cristo disse: “A Minha escolha vos separou do mundo!”. Leia Jo 15,18-20! Tobit não desiste; continua lembrando-se do seu Deus com toda a sua alma... Belo exemplo de verdadeira fé e piedade... Esta bela atitude do velho Tobit bem pode ser expressa nas palavras de Lm 3,19-26. Leia-as, reze-as...

6. Agora, tome o Salmo 71/70. Reze-o pensando em Tobit e em todos os que sofreram e sofrem por amor ao Senhor Deus. Leia ainda Mt 5,9-16.


Retiro Quaresmal 2020/2 -“Felizes aqueles que se abrigam no Senhor!” (Sl 2,12)


Quinta-feira depois das cinzas
Meditação I: Viver na Verdade

Reze o Salmo 119/118,1-8
Como lectio divina, leia piedosamente Tb 1.

1. Neste capítulo, Tobit, o pai de Tobias, apresenta-se. Ele é um modelo de judeu piedoso, que ama o Senhor Deus e cumpre os Seus preceitos e pode ser um modelo para nós, cristãos. Afinal, que é um cristão, senão alguém que verdadeiramente crê em Jesus como o Cristo, Filho de Deus e, assim, segue-O na vida, guardando os Seus preceitos? Vejamos, nesta meditação e na próxima, alguns aspectos do caminho deste homem piedoso diante de Deus:

2. Logo no início, no v. 3, Tobit afirma que trilhou sempre o caminho da verdade todos os dias da sua vida... A Verdade, nós sabemos, é Cristo nosso Senhor e tudo quanto a Ele se refere, tudo quanto Dele decorre. Então, quando as Escrituras falam em “verdade” não se referem a uma afirmação que pode ser verdadeira ou falsa, não pensam na verdade lógica, histórica ou científica... A verdade, nos Livros Santos, refere-se à vida, ao sentido da existência de tudo: é verdade o que existe diante do Senhor Deus, é verdadeiro o que é de acordo com a vontade e o desígnio do Altíssimo, porque somente Ele é o Verdadeiro, o Existente e Consistente! Fora Dele, tudo se esvai como a fumaça, como a erva que fenece; fora Dele tudo é ilusão, é mentira, é vaidade (cf. Ecl 1,1ss)! É este o sentido profundo das palavras do Salmo: “As sendas do Senhor são todas amor e verdade” (Sl 25/24,10). Em outras palavras: quem caminha com o Senhor, caminha na verdade, na realidade mais profunda, não cai na ilusão, não vive uma existência vazia e sem sentido. É neste profundo sentido que a Primeira Epístola de São João chama o Senhor Deus de “o Verdadeiro”, a Quem devemos conhecer e no Qual devemos estar, existir, permanecer. Leia 1Jo 5,20. Viver no Senhor é viver na verdade; Dele afastar-se é cair na mentira, numa existência vazia, ilusória, que conduz ao vazio neste mundo e ao Vazio definitivo e tremendo na outra vida. É isto que Tobit quer dizer quando afirma que trilhou os caminhos da verdade: ele trilhou os caminhos de Deus, viveu diante do Senhor, procurando ser-Lhe fiel!

3. Ora, os caminhos de Deus não são aleatórios, não são aqueles que, de acordo com as modas do momento, o mundo julga ser bons... Atenção que o deus da moda, o deus da maioria, o deus do politicamente correto, o deus bonzinho que tudo aceita, engole e perdoa sem conversão, não é o Deus verdadeiro; é um ídolo, não existe! Os caminhos do Deus verdadeiro, os caminhos dos mandamentos são expressos naquilo que o Senhor Deus revelou nas Escrituras Santa e na doutrina constante e imutável da Sua Igreja: “A descoberta de Tuas palavras ilumina e traz discernimento aos simples. Abro minha boca e aspiro, pois anseio pelos Teus mandamentos” (Sl 119/118,130s). Portanto, que nos fique bem claro: caminhar na verdade é caminhar com o Senhor, escutando o que Ele nos revelou pelas Escrituras e a interpretação constante e ininterrupta dada pela Igreja, prestando a esta revelação sagrada a “obediência da fé” (Rm 1,5) que brota do amor! Isto significa que a primeira palavra de Cristo para nós, Seu primeiro apelo, Sua primeira exortação é: “Convertei-vos e crede no Evangelho!” (Mc 1,15b)

4. Demos um passo adiante. O cristão sabe que tudo quanto foi escrito no Antigo Testamento, tudo quanto aconteceu na Antiga Aliança foi uma preparação para o Cristo (cf. 1Cor 10,6-11). Todo o Antigo Testamento é verdade porque nos fala da Verdade que é Jesus Cristo, para Ele nos prepara, para Ele nos conduz. É o Senhor Jesus Cristo, Verdade feita carne, que ilumina o Antigo Testamento e torna verdadeira cada palavra ali contida, porque tudo caminha para Ele e Dele dá testemunho! Leia 1Pd 1,10-12. É o Senhor Jesus Cristo a única Verdade que nos liberta: “Se permanecerdes na Minha palavra, sereis verdadeiramente Meus discípulos e conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará” (Jo 8,31s). Em outras palavras: quem é discípulo do Cristo Jesus, permanece na Sua palavra, nos Seus preceitos – e o Seu preceito é o amor! Vivendo no amor de Cristo, o cristão viverá de verdade, viverá segundo Deus, viverá na Verdade, Naquele que disse: “Eu sou a Verdade!” (Jo 14,6). Pois bem! Sendo cristãos, para nós, viver na verdade é muito mais do que para o velho Tobit, pois ele ainda estava na Antiga Aliança, no tempo da preparação para o Cristo; ele vivia a verdade vivendo na prática dos preceitos da Lei de Moisés. Para nós, viver na verdade é viver no mandamento de amor a Deus e ao próximo, como Cristo viveu e nos ensinou como preceito, “porque a Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1,17).

5. Nas próximas meditações vamos aprofundar algumas das atitudes e práticas concretas do velho Tobit, atitudes que o faziam viver na Verdade. São um belo exemplo e uma fecunda provocação para todos nós... Por agora, é importante que você se pergunte com toda a sinceridade:

a) Quem é a verdade, isto é, o critério último da minha existência: o mundo, as opiniões das pessoas, meus caprichos, as ideologias do momento ou o Cristo Senhor?

b) Eu vivo na Verdade, que é Cristo, ou nas minhas verdadezinhas ilusórias, que não passam de mentiras, pó que o vento leva?

c) Procuro encontrar o Senhor e Sua verdade nas Escrituras Santas interpretadas retamente pela Igreja na sua vida, na sua liturgia perene e no seu magistério ininterrupto?

d) Tenho consciência de que para deixar minhas verdadezinhas e caminhar na Verdade preciso converter-me continuamente ao Senhor?

6. Leia e reze: Rm 7,14-25; Jo 17,1.6-17; Sl 18/19,8-15



quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Homilia para o I Domingo da Quaresma - ano a

Gn 2,7-9; 3,1-7
Sl 50
Rm 5,12-19
Mt 4,1-11

Logo no início deste santo caminho para a Páscoa, a Palavra de Deus nos desvenda dois mistérios tremendos: o mistério da piedade e o mistério da iniquidade! Estes dois mistérios atravessam a história humana e se interpenetram de um modo que ultrapassa a nossa compreensão; dois mistérios que nos atingem e marcam nossa vida, e esperam nossa decisão, nossa atitude, nossa escolha! Um nos aproxima de Deus e nos faz viver na comunhão com Ele; o outro, afasta do Senhor e nos leva a construir a vida por nossa conta, do nosso modo; um é mistério de Vida; o outro, mistério de Morte.

Comecemos pelo mistério da iniquidade: “O pecado entrou no mundo por um só homem. Através do pecado, entrou a Morte. E a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”. Eis! A vida que vivemos, a vida da humanidade é uma vida de Morte, ferida por tantas contradições, por tantas ameaças físicas, psíquicas, morais... Viver tornou-se uma luta e, se é verdade que a vida vale a pena de ser vivida, não é menos verdade que ela também tem muito de peso, de dor, de pranto, de fardo danado.
Mas, como isto foi possível? Escutemos a primeira leitura: “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida e o homem tornou-se um ser vivente”. Somos obra de Deus, do Seu amor gratuito: do nada Ele nos tirou e encheu-nos de vida. Mais ainda: “O Senhor Deus plantou um jardim em Éden, ao oriente, e ali pôs o homem que havia formado”. Vede, Irmãos: o Senhor não somente nos tirou do pó do nada, não somente nos encheu de vida; também nos colocou no jardim de delícias, pensou nossa vida como vida de verdade toda banhada pela luz do Oriente. E mais: nosso Deus passeava no jardim à brisa do dia (cf. Gn 3,8), como Amigo do homem.
Eis o mistério da piedade, o plano, o desígnio que Deus concebeu para nós desde o princípio, apresentado pela Palavra de modo poético e simbólico: um Deus que é Deus de amor, de ternura, de carinho, de respeito pela Sua criatura, com a qual Ele deseja estabelecer uma parceria; um Deus que Se compraz em dar vida, em plenificar a obra de Suas mãos; um homem chamado a ser plenamente homem: feliz na comunhão com Deus, feliz em ter no seu Deus sua plenitude e sua Vida; homem plenamente homem nos limites de homem!
O homem é homem, não é Deus! Somente o Senhor Deus é o Senhor do Bem e do Mal. Por isso as duas árvores no Éden: a do conhecimento do Bem e do Mal (isto é, o poder de decidir por si mesmo o que é bem ou mal, certo ou errado) e a árvore da Vida (da Vida plena, da Vida divina, Vida bem-aventurada). Se o homem confiasse em Deus, se cumprisse Seu preceito, se reconhecesse seus próprios limites de criatura, um dia comeria do fruto da árvore da Vida... Ainda hoje é assim: o homem vive de verdade quando se abre ao Criador, quando aceita gostosamente, como criança, sua condição de criatura!

Mas, o homem foi seduzido; é seduzido ainda agora: desejou e deseja ser seu próprio Deus, sem nenhum limite, sem nenhuma abertura à graça, como se ele mesmo fosse um absoluto, dono da sua vida, o sentido mesmo da sua existência! Somente sua vontade lhe importa, somente sua medida! Hoje, como no princípio, ele pensa que é a medida de todas as coisas! Eis aqui o seu pecado!
O Diabo o seduziu e o seduz: primeiro distorcendo o preceito de Deus (“É verdade que Deus vos disse: ‘Não comereis de nenhuma das árvores do jardim’?”), semeando no coração dos filhos de Adão a desconfiança e o sentimento de inferioridade; depois, mentindo descaradamente: “Não! Vós não morrereis! Vossos olhos se abrirão e sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal!” Ser como Deus, decidindo de modo autônomo o que é certo e o que é errado; decidindo que a libertinagem é um bem, que as aventuras com embriões humanos, que o aborto, que a infidelidade feita de preservativos, que a destruição da família, que a destruição da natural determinação sexual são um bem... Decidindo loucamente que levar a sério a religião e a Palavra de Deus é um mal... Ser como Deus... Eis nosso sonho, nossa loucura, nossa mais triste ilusão; ser nosso próprio deusinho, nosso próprio critério e medida! Está aí, nos meios de comunicação, nas redes sociais, nas novelas e filmes, nas salas das universidades, nas palavras de tantos sábios segundo o mundo, nos formadores de opinião!
Tudo tão atraente, tudo tão apto para dar conhecimento, autonomia, felicidade... O resultado: os olhos dos dois se abriram: estavam nus... Estamos nus... Somos pó e, por nós mesmos, ao pó tornaremos, inapelavelmente!

Então, o nosso destino é a morte? Não há saída para a humanidade? O mistério da iniquidade destruiu o mistério da piedade? Não! De modo algum! Ao contrário: revelou-o ainda mais: “A transgressão de um só levou a multidão humana à Morte; mas foi de modo bem superior que a graça de Deus... concedida através de Jesus Cristo, se derramou em abundância sobre todos. Por um só homem a morte começou a reinar. Muito mais reinarão na Vida, pela mediação de um só, Jesus Cristo, os que recebem o dom gratuito e superabundante da justiça”.
Eis aqui o mistério tão grande, o mistério da piedade, o centro da nossa fé: em Cristo revelou-se todo o amor de Deus para conosco; pela obediência de Cristo a nossa desobediência foi redimida; pela Morte de Cristo na árvore da Cruz, nós temos acesso ao fruto da Vida, da Vida plena, da Vida em abundância, da Vida que nunca haverá de se acabar! Pela obediência de Cristo, pelo dom do Seu Espírito, nós temos a Vida divina, nós somos divinizados, somos, por pura graça, aquilo que, ilusoriamente, queríamos ser de modo autônomo e soberbo! Assim, manifestou-se a justiça de Deus: em Jesus Cristo morto e ressuscitado por nós – e só Nele, por pura graça Dele! – a humanidade encontra a Vida!

Mas, esta salvação no Senhor Jesus teve alto preço: a Encarnação do Filho de Deus e Sua humilde obediência, até a Morte e morte de Cruz. O Senhor desfez o nó da nossa desobediência, da nossa autossuficiência, da nossa prepotência, renunciando ser o senhor de Sua existência humana: Ele acolheu o caminho do Pai, o desígnio do Pai, Ele Se fez obediente:
à glória do pão (dos bens materiais, dos prazeres, do conforto, da segurança) Ele preferiu a Palavra do Pai como único sentido e única orientação e apoio de Sua vida;
à glória do sucesso (a honra, a fama, o elogio, o aplauso), Ele preferiu a humildade de não tentar Deus, adequando-Se aos modos e tempos do Pai;
à glória do poder (da força, das amizades poderosas e influentes, do prestígio político para impor e conseguir tudo) Ele preferiu o compromisso absoluto e total com o Absoluto de Deus somente. 
Assim, Cristo Jesus, o Homem novo, o novo Adão (de Quem o primeiro era somente figura e sombra – cf. Rm 5,14) abriu-nos o caminho da obediência que nos faz retornar ao Pai!

Este é também o nosso caminho, a nossa luta, o nosso combate. Nossa vocação é entrar, participar, da obediência de Cristo, é crescer no conhecimento de Cristo, pela oração, a penitência e a esmola, a caridade fraterna para sermos herdeiros de Sua vitória pascal! Este sagrado tempo que estamos iniciando é tempo de combate espiritual, para que voltemos, pelo caminho da obediência Àquele de Quem nos afastamos pela covardia da desobediência (cf. Regra de São Bento, Prólogo). É assim que corresponderemos ao amor do Senhor por uma vida santa!
Convertamo-nos, portanto! Planejemos bem nossas observâncias quaresmais, de modo que, vivendo piedosa e generosamente este tempo, estejamos prontos para a Páscoa deste ano e aquela outra, da Eternidade! Deixemos a teimosia e a ilusão de achar que nos bastamos a nós mesmos! Sinceramente, abracemos os sentimentos de Cristo, percorramos o caminho de Cristo, convertamo-nos a Cristo!

Concluamos com as palavras da coleta, a oração inicial da Missa deste I Domingo, suplicando pela misericórdia do Senhor o que somente com nossas forças não conseguiríamos jamais alcançar: “Concedei-nos, ó Deus onipotente, que, ao longo desta Quaresma, possamos progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder ao Seu amor por uma vida santa”. Amém.


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Retiro Quaresmal 2020/1 - Introdução

Quarta-feira de cinzas

“Felizes aqueles que se abrigam no Senhor!” (Sl 2,12)


Caro Amigo, Irmão no Senhor,

Já há alguns anos, tenho oferecido aos que frequentam minhas redes sociais – site, blog, twitter, instagram e facebook – um caminho quaresmal, sempre comentando algum livro das Escrituras Sagradas. Este ano não será diferente: a partir de amanhã, quinta-feira após as cinzas, iremos juntos percorrer os livros de Tobias, Judite e Ester. São narrativas edificantes, escritas sob a inspiração do Espírito de Cristo para alimentar a fé e a piedade do antigo Povo de Deus em momentos de aflição e grandes provações. Estes livros ainda hoje têm esta utilidade no coração da Igreja, novo Israel, novo Povo de Deus. São livros profundamente comoventes e edificantes, que nos incitam à confiança no Senhor e a uma vida de piedade.

Infelizmente, estes livros sagrados, utilizados pelos Santos Padres da Igreja Antiga, foram retirados das Escrituras pela tradição protestante, privando muitos cristãos não somente de uma parte da Palavra de Deus, mas também de narrativas verdadeiramente edificantes e salutares para nos motivar na entrega ao Senhor e na confiança absoluta na Sua fidelidade. Temas como a prática fiel da religião, a oração, a esmola, o jejum, a humildade, a confiança no Senhor são recorrentes nestes três escritos.

Sobre estas três obras discute-se muito: não se sabe quem as escreveu, não se tem certeza sobre o quando ou o onde foram escritas. Também é impossível determinar o núcleo histórico, isto é, os acontecimentos que possam ter originado essas narrativas. Mas, nada disto nos deve preocupar minimamente. Importa realmente que são textos inspirados, são Palavra de Deus e nos ensinam verdadeiramente o caminho da Vida. Para elas vale plenamente o ensinamento do Apóstolo: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para instruir, para refutar, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito, qualificado para toda boa obra” (2Tm 3,16). Por isto mesmo, nunca devemos deixar de perscrutar com ouvidos e coração abertos, procurando nas Santas Letras a Vida que nos vem do Cristo Senhor na potência do Seu Espírito. É isto que desejamos ao comentar estas três narrativas sagradas. Lendo-as com profundo espírito de fé e reverência, deixando-nos guiar pelo Espírito do Senhor, que inspirou as Escrituras e inspira a Igreja na sua leitura e interpretação, podemos recordar as palavras belíssimas do Profeta Baruc: “Felizes somos nós, Israel, pois aquilo que agrada a Deus a nós foi revelado” (4,4).

Então, com sede de ouvir o Senhor, com piedade e unção, a partir de amanhã, começaremos nosso caminho quaresmal rumo à santa Páscoa, tendo nas mãos Tobias, Judite e Ester. Que nos ajude o Senhor, dando a mim a iluminação do Espírito para escrever e comentar com fé e desejo de descobrir para os irmãos as riquezas da Palavra de Deus, e a você, a luz do Espírito para compreender, acolher e viver, pois as palavras do Senhor são palavras para serem colocadas em prática, tornando-se Palavra de Vida eterna!


Homilia para a Quarta-feira de Cinzas

Jl 2,12-18
Sl 50
2Cor 5,20 – 6,2
Mt 6,1-6.16-18

Caríssimos Irmãos no Senhor, chegou, para nós, mais uma vez, o grave tempo da Quaresma, o período sagrado que nos prepara para a maior e mais solene de todas as festas dos cristãos: a santa Páscoa da Paixão, Morte e Ressurreição do nosso Deus e Salvador, Jesus Cristo!
Não nos esqueçamos: este período de quarenta dias de penitência e combate espiritual não tem um fim em si mesmo: ele corre para a Páscoa como um rio corre para o mar: vivemos o tempo quaresmal com os olhos, o coração e do desejo firmes na Páscoa!
Devemos entrar nesta Quarentena santa conscientes de que somos guiados por Deus, como os israelitas nos quarenta anos a caminho da Terra Prometida, com a perseverança de Moisés, nos seus quarenta dias de jejum e oração sobre o Monte Sinai, com a confiança no Senhor Deus de Elias, ao caminhar para o Horeb, alimentado pelo pão do Céu, e, sobretudo, com o ânimo do nosso Senhor Jesus no Seu combate com o Diabo, logo no início do Seu ministério.

Escutemos com toda piedade, com temor e tremor, o Senhor que nos exorta: “Agora, diz o Senhor: Voltai para Mim!” Que significa voltar para o Senhor? Significa converter-se, sair de si mesmo, do próprio modo de pensar, falar, viver, dos seus vícios e pecados, significa ultrapassar nossa lógica estreita e até mesmo mundana, para ir ao encalço do Deus vivo, vivendo a Sua Vida, sendo verdadeiramente Seus amigos!
Irmãos, por desgraça, temos a mísera tendência de viver centrados em nós mesmos, presos na nossa lógica, estreitados na nossa mesquinha medida! Acolhamos o apelo do Senhor: “Rasgai o coração, deixai-vos reconciliar com Deus!” O Deus vivo e santo nos ama, caríssimos; o Senhor importa-Se conosco, Irmãos; o Senhor nos quer com Ele, deseja-nos salvos Nele! De tal modo nos ama que nos deu o Seu Filho; entregou-O por nós! Como não nos comover, admirados, ante a afirmação do Apóstolo, na segunda leitura de hoje? “Aquele que não cometeu pecado, Deus O fez pecado – isto é, vítima pelo pecado – por nós!” É muito amor pela Sua criatura, é muito compromisso conosco, com a nossa salvação, é muito desejo de levar-nos à plenitude para a qual fomos criados, apesar dos nossos pecados! Como ser indiferentes ao Senhor? Como duvidar do Seu amor? Como pensar que Ele não insista em nos procurar, nos converter, nos salvar? Ele entregou por nós o Seu Filho único, santo e bendito como vítima pelos nossos pecados! Como seríamos miseráveis se recebêssemos em vão tamanha prova de amor! Pois bem, “como colaboradores de Cristo, nós vos exortamos a não receberdes em vão a graça de Deus!” 

Recebê-la-emos com proveito se procurarmos verdadeiramente corrigir nossos vícios e pecados, neste Tempo favorável que o Altíssimo nos concede.
A Mãe católica nos prepara para tanto com a justiça da Quaresma, isto é, a observância quaresmal, ou seja, as práticas características deste período sagrado: a penitência, a oração e a esmola. Delas, o Senhor Jesus nos falou no Evangelho que escutamos nesta Eucaristia sagrada:

A oração, que deve ser sincera, brotando de um coração sedento de encontrar o Senhor, um coração humilde, dócil, obediente, cheio de amor pelo nosso Deus. A verdadeira oração é persistente e paciente, perseverante e cheia de confiança de que o Senhor Deus deseja e realiza sempre o melhor para nós, mesmo quando não compreendemos. A oração é uma luta, um combate, um esforço, uma disciplina, uma teimosia santa! Nesta Quaresma, procuremos rezar mais, sobretudo com os textos das Santas Escrituras e, de modo especial, os salmos, fazendo nossos os sentimentos do Cristo Jesus, que estão presentes neles.

O jejum e a penitência, sobretudo a mortificação no comer. Assim, com a graça do Senhor, aprenderemos a disciplinar nosso corpo, nossos desejos, instintos e afetos, deixando-nos guiar pelo mesmo Espírito que guiou o Cristo Jesus e nos transfigurará à imagem bendita do nosso Salvador. Atenção, Irmãos, que sem mortificação, sobretudo na comida, sem disciplina interior, sem renúncia, não há a menor possibilidade de uma verdadeira vida com Deus!

Por fim, a esmola e a caridade fraterna, de modo geral. De nada nos serviria a oração sem a mortificação que nos disciplina; de nada nos valeriam oração e penitência sem um coração aberto aos irmãos, sobretudo àqueles que mais necessitam de nós! Seja a nossa Quaresma um tempo de abrir o coração aos irmãos: um conselho, um afeto, um gesto de amor, um perdão, uma ajuda aos mais necessitados, um cuidado com os menos favorecidos nesta vida, um acolhimento a quem se encontra sozinho e abatido. Eis o que faz fecunda a nossa oração e coroa a nossa penitência! Eis a justiça que o Senhor espera de nós, Seus filhos e servos!

Neste tempo sagrado, cuidemos também de lutar contra os nossos pecados e vícios, aquelas más tendências que nos prendem e impedem de subir livremente ao Senhor. Sim, Irmãos, é tempo de lutar contra o pecado. E isto vale para cada um de nós, individualmente, e para toda a Igreja. Digamos com o coração, exclamemos com os lábios, insistamos com o procedimento, dizendo: “Perdoa, Senhor, o Teu Povo, e não deixes que esta Tua herança sofra infâmia!” Que infâmia maior que sermos infiéis ao Senhor? Que desgraça maior que O trairmos com uma vida mundana, frouxa, desregrada, imoral? Que infidelidade mais infiel que buscar aplausos e elogios do mundo às custas de trair, deturpar e até mesmo esconder o santo Evangelho?

Vamos, meus caros! Procuremos viver santamente este tempo que hoje se inicia com um santo jejum e abstinência de carne! Não recebamos em vão a graça que o Senhor Deus nos oferece pelo Seu Filho Jesus, nosso Senhor! Que cada um prepare sua observância quaresmal decidindo no seu coração, com piedoso cuidado, o que fará neste Tempo favorável no tocante à oração, à penitência na comida, à esmola, ao combate aos vícios, às leituras santas das Escrituras sagradas. Assim, com toda a certeza, estaremos prontos para celebrar na liberdade interior e na alegria espiritual os santos mistérios pascais! Que no-lo conceda o Cristo nosso Deus, bendito com o Pai e o Santo Espírito, pelos séculos dos séculos. Amém.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

A Quaresma: seu sentido, sua observância

Estamos para iniciar o sagrado tempo quaresmal. Explicarei alguns elementos deste tempo santo e farei algumas sugestões sobre o modo de bem vivê-la.
A Quaresma é um período de quarenta dias dedicados à abstinência de alimentos, visando fortalecer os cristãos para bem celebrarem a santa Páscoa. Inicia-se na Quarta-feira de Cinzas, prolongando-se até a Quinta-feira Santa, antes da Missa na Ceia do Senhor. Trata-se de um tempo privilegiado de conversão, combate espiritual, jejum e escuta da Palavra de Deus.

Na Igreja Antiga, este era o tempo no qual os catecúmenos (adultos que se preparavam para o Batismo) recebiam os últimos retoques em sua formação para a vida cristã: eles deveriam entregar-se a uma catequese mais intensa e aos exercícios de oração e penitência. Pouco a pouco, toda a comunidade cristã - isto é, os já batizados em Cristo -, começou a participar também deste caminho, tanto para unir-se aos catecúmenos, como para renovar em si a graça de seu próprio Batismo e o fervor da vida cristã, preparando-se, deste modo, para a santa Páscoa. Assim, surgiu a Quaresma: tempo no qual os cristãos, pela purificação e a oração, abstendo-se dos excessos na comida, buscam renovar sua conversão para celebrarem na alegria espiritual a santa Vigília de Páscoa, na madrugada do Domingo da Ressurreição, renovando suas promessas batismais.

As práticas da Quaresma

A oração: Neste tempo os cristãos se dedicam mais à oração. Uma boa prática é rezar diariamente um salmo ou, para os mais generosos, rezar todo o saltério no decorrer dos quarenta dias. Também seria muito bom rezar a Via Sacra às sextas-feiras!

A penitência: Todos os dias quaresmais (exceto os domingos!) são dias de penitência na alimentação. Cada um deve escolher uma pequena prática penitencial para este tempo. Por exemplo: renunciar a um lanche diariamente, ou a uma sobremesa, etc... Na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa os cristãos jejuam: o jejum nos faz recordar que somos frágeis e que a vida que temos é um dom de Deus, que deve ser vivida em união com Ele e para Ele. Os mais generosos podem jejuar todas as sextas-feiras da Quaresma. Farão muitíssimo bem! Recordemo-nos que às sextas-feiras os católicos não devem comer carne; e isto vale para o ano todo!

A esmola: Trata-se da caridade fraterna. Este tempo santo deve abrir nosso coração para os irmãos: esmola, capacidade de ajudar, visitar os doentes, aprender a escutar os outros, reconciliar-se com alguém de quem estamos afastados - eis algumas das coisas que se pode fazer neste sentido! É este cuidado, esta caridade para com os irmãos, sobretudo os necessitados, que dirá a verdade ou mentira da nossa procura de Deus e a autenticidade da nossa penitência!

A leitura da Palavra de Deus: Este é um tempo de escuta mais atenta da Palavra: o homem não vive somente de pão, mas de toda palavra saída da boca de Deus. Seria muitíssimo recomendável ler durante este tempo o Livro do Êxodo ou o Evangelho de São Mateus, que a Igreja está lendo nos domingos deste ano.

A conversão: “Eis o tempo da conversão!”, diz-nos São Paulo. Que cada um veja um vício, um ponto fraco, que o afasta de Cristo, e procure lutar, combatê-lo nesta Quaresma! É o que a Tradição ascética de Igreja chama de “combate espiritual” e “luta contra os demônios”. Nossos demônios são nossos vícios, nossas más tendências, que precisam ser combatidas. Os antigos davam o nome de sete demônios principais: a soberba, a avareza, a tristeza (hoje diz-se a inveja), a preguiça, a ira, a gula, a sensualidade. Estes demônios geram outros. Na Quaresma, é necessário identificar aqueles que são mais fortes em nós e combatê-los!

A liturgia da Quaresma

Este tempo sagrado é marcado por alguns sinais especiais nas celebrações da Igreja: A cor da liturgia é o roxo - sinal de sobriedade, penitência e conversão; não se canta o Glória nas missas (exceto nas solenidades e festas, quando houver); não se canta o aleluia que, sinal de alegria e júbilo, somente será cantado outra vez na Páscoa da Ressurreição; os cantos da Missa devem ter uma melodia simples; não é permitido que se toque nenhum instrumento musical, a não ser para sustentar o canto, em sinal de jejum dos nossos ouvidos, que devem ser mais atentos à Palavra de Deus; não é permitido usar flores nos altares, em sinal de despojamento e penitência (nos casamentos e outras festas as igrejas, devem ser enfeitadas com muita sobriedade!); a partir da quinta semana da Quaresma podem-se cobrir de roxo ou branco as imagens, em sinal de jejum dos sentido, sobretudo dos olhos.

O importante é que todas estas práticas nos levem a uma preparação séria e empenhada para o essencial: a Páscoa! As observâncias quaresmais não são atos folclóricos, mas instrumentos para nos fazer crescer no processo de conversão que nos leva ao conhecimento espiritual e ao amor de Cristo. Tenhamos em vista que o ponto alto do caminho quaresmal é a renovação das promessas batismais na Santa Vigília pascal e a celebração da Eucaristia de Páscoa nesta mesma Noite Santa, virada do sábado para o Domingo da Ressurreição.

Que todos possam ter uma intensa vivência quaresmal, para celebrarmos na alegria espiritual a santa Páscoa do Senhor!


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Fé e obras: somente no amor a Cristo

“Meus irmãos, se alguém disser que tem fé, mas não tem obras, que lhe aproveitará isso? Acaso a fé poderá salvá-lo? A fé, se não tiver obras, está completamente morta.Também os demônios creem, mas estremecem. Não foi pelas obras que nosso pai Abraão foi justificado ao oferecer o filho sobre o altar? A fé concorreu para suas obras e pelas obras é que a fé se realizou plenamente” (cf. Tg 2,14-23).

Muitas vezes, lemos estas afirmações de São Tiago pensando na controvérsia com os irmãos protestantes sobre a fé e as obras. Resultado: perdemos de vista o que o Apóstolo realmente nos quer ensinar.

De que fé nos fala São Tiago? De uma fé desprovida do amor ao Cristo Senhor, uma fé simplesmente teórica, fria, como a dos demônios, que sabem que Deus existe, sabem que Jesus Cristo feito homem é Senhor, mas não O aceitam nem O amam. Uma fé assim é morta, porque sem a sua alma, que é o amor, amor de Cristo em nós e amor feito nosso amor a Cristo. Este amor de que falo não é um sentimento, mas é o próprio Espírito Santo, Deus-Amor: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).
É o fogo do Espírito que afervora a fé como entrega a Deus pelo Cristo e se derrama em amor aos irmãos. Não é por acaso que São Tiago dá dois exemplos: o de Abraão, que sacrificou tudo quanto tinha de mais precioso sobre o altar por amor a Deus e o do cristão que, tendo fé, despreza os irmãos... Então, a fé amorosa tudo dá a Deus e, nesse amor, lava os pés dos irmãos em cuidado e ajuda.

Então, seja a fé quanto as obras somente servem para o Reino de Deus, somente salvam se forem fecundadas pelo amor a Cristo! Entre fé e obras não há oposição alguma, mas uma circularidade: a fé se mostra e aperfeiçoa nas obras e as obras somente são salvíficas se forem motivadas pela fé em Cristo e ambas, fé e obras, são fecundadas pelo amor, que é fruto do Espírito de Amor em nós (cf. Rm 5,5).

Toda esta temática apresentada por São Tiago nada tem a ver com a polêmica de São Paulo, que não pensa nas obras da fé em Cristo, obras fruto do Espírito de Cristo, mas nas obras, isto é, nas observâncias da Lei de Moisés! Estas sim, estão superadas pela fé em nosso Senhor Jesus Cristo, fé que age pela caridade (cf. Gl 5,6), isto é, fé ativa, fé que não se resume a teoria, a palavras ou a sentimentos. Em outras palavras: quem crê, entregue-se com o coração, proclame com a boca e demonstre com a vida concreta que acolheu Jesus como Senhor, que Nele caminha, Nele tem a esperança e Nele funda a sua vida; e quem trabalha pelos necessitados, que o faça pela fé amorosa em Jesus nosso Senhor e para proclamar o Seu Nome santo. Sem isto, a fé é morta, sem isto, as ações não servem para o Reino de Deus! E isto vale para todos!

Homilia para o VII Domingo Comum - ano a

Lv 19,1-2.17-18
Sl 102
1Cor 3,16-23
Mt 5,38-48

Caríssimos irmãos no Senhor, mais uma vez estamos reunidos para a santa Eucaristia dominical, na qual encontramos o Ressuscitado, alimentamo-nos da Sua palavra e nutrimo-nos do Seu Corpo sagrado. Com efeito, Ele está conosco, Ele nos fala, Ele Se nos dá, totalmente! Ouvir o Senhor, alimentar-se dele - pensai bem -, significa abrir-se para Ele porque Nele cremos. É isto crer, meus caros: viver abertos de verdade para o Senhor, deixando que Ele plasme a nossa vida, ilumine os nossos caminho, vá invadindo e transformando toda a nossa existência.

Se pensarmos bem, é a uma atitude assim que a Palavra de Deus hoje nos convida. O Senhor Deus nos diz: “Sede santos, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo”; depois, no Evangelho, insiste: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito!” Em outras palavras: sede como o vosso Deus, deixai-vos invadir por Ele, transformar por Ele! Deixai que Ele seja o lastro, o alicerce, o fundamento, o rumo da vossa vida! Crer Nele e deixar-se invadir por Ele, assumindo Seus sentimentos, Seus pensamentos, Seus desígnios: “Quem diz que permanece em Jesus Cristo, deve também caminhar como Ele caminhou” (1Jo 2,6).

Observai como, na primeira leitura, o Senhor Deus afirma: “Eu sou o Senhor!” Se Eu sou o Senhor para vós, sede santos como Eu, tende um coração como o Meu: não guardes ódio no coração, não te vingues, repreende o teu próximo com bom coração, ama de verdade o próximo como a ti mesmo!
Compreendeis, caríssimos? Não podemos dizer que Deus é o Senhor e, ao mesmo tempo, vivermos do nosso modo, como se nós próprios fôssemos o nosso Deus! Alguém que viva do seu modo,seguindo seus próprios critérios, alguém que se julgue o senhor do bem e do mal e veja, analise, julgue e aja de acordo com seus próprios pensamentos, gostos e prioridades, independente da vontade de Deus – e essa vontade de Deus não é teórica, distante, mas nos aparece nas Escrituras interpretadas pela Igreja com a autoridade de Cristo – alguém assim, mesmo que dissesse que acredita, não crê de verdade, não exprime na vida que Deus é seu Senhor! Ah, caríssimos, que há tantos crentes de nome e ateus de vida! Há tantos, como diz o Apóstolo, “que se comportam como inimigos da cruz de Cristo. O seu fim será a perdição; o seu deus, é o ventre; e sua glória, eles a põem na própria ignomínia, já que só levam a peito as coisas da terra” (Fl 3,18-19). Crer de verdade é viver na vontade do Senhor, abertos ao Senhor, àquele Deus Santo que Se manifestou como Poder, Santidade, Sabedoria e Salvação na fraqueza, na maldição, na loucura e na perdição da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo!

A mesma ideia aparece na segunda leitura de hoje: vede como São Paulo nos convida a ter plena consciência de que não nos pertencemos: “Irmãos, acaso não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós?” Somos santuário de Deus, isto é, somos templo, morada do Seu Santo Espírito, aquele Espírito que Jesus Cristo morto e ressuscitado derramou em nossos corações desde o nosso Batismo. Então, como poderíamos viver do nosso jeito? Como poderíamos seguir a lógica da moda, da maioria, do mundo atual, politicamente correto? Como poderíamos abraçar a louca e tola sabedoria do mundo atual? Que palavras claras e escandalosas as do Apóstolo: “Ninguém se iluda: se algum de vós pensa que é sábio nas coisas deste mundo, reconheça sua insensatez para se tornar sábio de verdade; pois a sabedoria deste mundo é insensatez diante de Deus!” O que significam tais palavras? É preciso deixar nossa lógica mundana para abraçar a lógica de Deus; e esta lógica – nunca esqueçamos, nunca deixemos de repetir - manifestar-se-á sempre e somente na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo! Era isto que o nosso bendito Salvador dizia no Domingo passado e continua a dizer neste hoje: a nossa religião tem que superar a dos escribas e fariseus! Lembrai-vos de oito dias atrás? “Se a vossa justiça, isto é, se o vosso modo de praticar a religião, de cumprir os preceitos, não for maior que a justiça dos escribas e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus!” Em que nossa prática deve ser maior? No modo de viver a religião: um modo interior, nascido do amor a Deus e aos irmãos; um amor que deixa de verdade Deus entrar, habitar em nós como num templo, nos questionar, nos transformar; uma prática da religião suscitada, sustentada, impulsionada, animada pelo Santo Espírito!
Observai, amados no Senhor, como o Cristo Jesus chama atenção não primeiramente para a letra do preceito, mas para o espírito, a intenção, a motivação com a qual se realiza o preceito: “Ouvistes o que foi dito: olho por olho, dente por dente” – tal preceito é justo, era a medida da justiça da Lei de Moisés e ainda hoje é a medida de todos os tribunais do mundo. Este preceito não é de vingança; é de justiça: um olho por um olho, um dente por um dente! “Eu, porém, vos digo: não só justiça, mas misericórdia, generosidade, porque vosso Deus é assim!” “Ouvistes o que foi dito: amarás a quem te ama, não tens obrigação para com teus inimigos. Eu, porém vos digo: amai a todos, amai sem esperar recompensa, porque o Coração do vosso Pai nos Céus é assim!” Abri-vos, pois, irmãos meus, abri-vos para Deus, aquele Deus que vos deu tudo quando vos deu o Filho Único, o Amado, até a morte e morte de Cr
uz!
Caríssimos, vivemos num mundo no qual o homem se colocou como o centro. Até mesmo na Igreja há tantas pessoas que pensam num cristianismo à medida do homem e do gosto das modas atuais. Há cristãos, há teólogos, há pastores que pensam assim: “Se fizermos como o mundo espera, vamos atrair o mundo para a Igreja; se fizermos adaptações no cristianismo e na Igreja ele se tornará atraente...” Não! É Cristo quem atrai, é Cristo crucificado e ressuscitado o critério! Não se trata de atrair para a Igreja, mas para o Jesus vivo e verdadeiro, com toda a Sua verdade, com todo o Seu amor, com toda a Sua exigência que nos liberta, nos tira de nós e nos dá a Vida em abundância! O resto é pensamento humano, vazio e estéril! Repito, caríssimos: o centro é Cristo Jesus que nos leva ao Pai: é Ele o critério, é Ele a medida, é Ele a única verdade! Quando nos deixamos transformar por Ele, somos livres de verdade e de verdade damos glória a Deus. Nunca esqueçais, amado meus: “Tudo vos pertence, tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus”. A Ele a glória pelos séculos. Amém.


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

O uso das sagradas imagens

Como ilustração, coloco, a seguir, algumas fotos para ilustrar o uso das imagens em todas as grandes comunidades cristãs da antiguidade.
Fiz questão de colocar comunidades que não estão em comunhão com a Igreja de Roma há cerca de 1000 anos - algumas há cerca de 1500 anos! Estas comunidades, como nós católicos, desde a antiguidade cristã utilizaram e utilizam imagens no seu culto. 
Esta é a verdadeira expressão da fé cristã, da qual não abriremos mão jamais, sob pena de falsear a autêntica Tradição da Igreja, recebida dos Apóstolos e mantida sob a guia do Santo Espírito do Ressuscitado! Ele inspira as Escrituras Santas e guia a Igreja na interpretação dessas mesmas Sagradas Escrituras!

Uma Missa na Igreja de Antioquia,
onde São Paulo viveu
e onde os discípulos de Cristo
foram chamados de "cristãos" pela primeira vez


Um ícone da Virgem Maria na Igreja Copta,
fundada por São Marcos Evangelista


As imagens sagradas na Igreja Armênia,
o primeiro povo a converter-se inteiro ao cristianismo


 A iconóstase numa igreja georgiana,
no coração da Ásia.





"Não farás para ti imagem esculpida..." (IV)

Depois de termos visto o Antigo e o Novo Testamento, vejamos agora a questão das imagens na Tradição da Igreja. 
Os cristãos, inspirados na Escritura, sobretudo no Novo Testamento, que é a plenitude a Revelação divina, sempre usaram pinturas e imagens.

Já nas antigas catacumbas cristãs da Roma antiga, no tempo dos mártires, podem ser encontradas imagens inspiradas em textos bíblicos: Noé salvo das águas do dilúvio, os três jovens cantando na fornalha, Daniel na cova dos leões, Susana, os pães e os peixes da multiplicação operada por Jesus, o peixe (= ICHTHYS), símbolo de Cristo. Na catacumba de Priscila, em Roma, pode-se ver ainda hoje uma pintura da Virgem com o Menino Jesus. Esta pintura é do início do século III, quando os cristãos ainda morriam torturados nos circos da Roma pagã para testemunharem sua fé no Senhor Jesus Cristo. Ainda dessa época é a pintura de um pastor tocando flauta, imagem de Cristo Pastor, Filho de Davi, e uma outra, do Bom Pastor, com a ovelhinha aos ombros.

As pinturas dos santos e das cenas bíblicas eram consideradas pelos cristãos não somente normal, como também educativa:

O desenho mudo sabe falar sobre as paredes das igrejas e ajuda grandemente (São Gregório de Nissa - séc. IV).
O que a Bíblia é para os que sabem ler, a imagem o é para os iletrados (São João Damasceno - séc. VIII).

Gregório Magno (séc. VII) repreendia o Bispo de Marselha:

Tu não devias quebrar o que foi colocado nas igrejas não para ser adorado, mas simplesmente para ser venerado. Uma coisa é adorar uma imagem, outra coisa é aprender, mediante essa imagem, a quem se dirigem as tuas preces. O que a Escritura é para aqueles que sabem ler, a imagem o é para os ignorantes; mediante essas imagens aprendem o caminho a seguir. A imagem é o livro daqueles que não sabem ler.

Entre os séculos VIII e IX surgiu, no entanto, a heresia iconoclasta. Influenciados pelo judaísmo, pelo islamismo e por seitas gnósticas cristãs, que negavam a verdade da Encarnação do Verbo divino e, portanto, que Cristo Se tivesse realmente feito homem de carne e osso, com um corpo material, os iconoclastas passaram a negar a legitimidade das imagens sagradas. Os Bispos da Igreja de Cristo, então, reuniram-se no II Concílio de Niceia, em 787, afirmando a legitimidade e validade do culto das imagens, condenando a heresia iconoclasta. O Concílio distinguia entre latréia (= adoração), devida somente a Deus e proskynesis (= veneração) tributável aos santos e suas imagens já que estas os recordam e representam. Na reta doutrina cristã, o culto às imagens é relativo: só se explica e é aceitável na medida em que é tributado indiretamente àqueles que as imagens representam. Note-se que nesta época do II Concílio de Niceia não havia outra Igreja cristã, a não ser a Igreja católica, com exceção de pequenas facções heréticas que não aceitavam a divindade ou a humanidade de Cristo na sua totalidade.

Eis o ensinamento desse Concílio, inspirado pelo Espírito Santo:

Definimos... que, como as representações da Cruz... assim também as veneráveis e santas imagens, em pintura, em mosaico ou de qualquer matéria adequada, devem ser expostas nas santas igrejas de Deus, nas casas e nas estradas... Quanto mais os fieis contemplarem essas representações, mais serão levados a recordar-se dos modelos originais, a se voltar para eles, a lhes testemunhar... uma veneração respeitosa, sem que com isto seja adoração, pois esta só convém, segundo a nossa fé, a Deus.

Esta é a doutrina da Escritura e da Igreja de Cristo sobre as imagens! E tal doutrina vem das origens! A Igreja permite as imagens de Cristo porque o próprio Deus Se fez imagem, em Jesus nosso Senhor: Ele, como já vimos é a imagem do Deus invisível. São João Damasceno (séc VIII) explicava:

Como fazer a imagem do Invisível?... Na medida em que Deus é invisível, não O represento por imagens; mas desde que viste o Incorpóreo feito homem (Deus feito homem em Jesus), podes fazer a imagem da forma humana; já que o Invisível Se tornou visível na carne, podes pintar a semelhança do invisível.

A ideia é clara: Deus fez-Se imagem para Si mesmo em Cristo, portanto, pode-se fazer imagem de Cristo! E a dos santos? Os santos são cristãos como qualquer outro, mas que tiveram a coragem de não se fechar para a graça de Cristo, fazendo de suas vidas uma imagem da vida de Cristo. Como dizia São Paulo:

Os que de antemão Deus conheceu, esses também predestinou a serem conformes à imagem do Seu Filho, a fim de ser Ele o primogênito entre muitos irmãos (Rm 8,29).
Assim como trouxemos a imagem do homem terrestre, assim também traremos a imagem do Homem celeste (1Cor 15,49).

A ideia de Paulo é belíssima, profunda e central no cristianismo: como o homem trouxe em si a imagem do homem pecador, do primeiro Adão, agora, convertido e batizado, traz em si a imagem do Homem celeste, o novo Adão, Cristo Jesus. E quanto mais se vive a Vida nova de Cristo, mas se é conforme à imagem de Cristo
:
E nós todos que, com a face descoberta, refletimos num espelho a Glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma Imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é Espírito (2Cor 3,18),
Vós vos desvestistes do homem velho com as sua práticas e vos revestistes do novo, que se renova para o conhecimento segundo a Imagem do seu Criador. Aí não há mais grego e judeu, circunciso ou incircunciso, bárbaro, cita, escravo, livre, mas Cristo é tudo em todos (Cl 3,9-11).

Os cristãos fazem imagens dos santos - particularmente da Virgem Maria - porque eles, com a sua vida, foram de tal modo abertos à graça de Cristo que se tornaram imagens vivas Daquele que é a Imagem do Deus invisível. Os santos tiveram a coragem de levar até às últimas conseqüências o apelo de Paulo: Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (Fl 2,5).

Vê-se, assim, que a Igreja tem motivos de sobra para venerar as sagradas imagens. Tanto que Martinho Lutero (séc. XVI) principal fundador dos protestantes, apesar de errar em muitas de suas doutrinas, escrevendo sobre as imagens, na obra “Sobre a Ceia de Cristo”, afirmava o seguinte:

Tenho como algo deixado à livre escolha as imagens, os sinos, as vestes litúrgicas... e coisas semelhantes. Quem não os quer, deixe-os de lado, embora as imagens inspiradas pela Escritura e por histórias edificantes me pareçam muito úteis... Nada tenho em comum com os iconoclastas!

Penso que estas informações sejam suficientes para explicar o uso das imagens e refutar decididamente a calúnia de quem afirma que os católicos adoram imagens. Certamente, contudo, é necessário reconhecer que há pessoas que abusam e exageram na sua prática. Tais pessoas, no entanto, e tais práticas abusivas não são de acordo com o sentimento nem com a fé da Igreja de Cristo. Elas, certamente, não adoram as imagens, mas podem, por ignorância e má formação, cometer excessos na veneração às sagradas imagens. Por isso, a necessidade de uma catequese paciente e constante, neste e em outros pontos da doutrina cristã.